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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

QUANTAS PERGUNTAS EU FIZ ANTES QUE ELA CHORASSE



Ela estava no semáforo com uma placa pendurada no pescoço que cobria quase todo se belo corpo moreno, no rosto uma máscara de pano escondia a tristeza, mas deixava dois olhos cansados verem o tamanho do desprezo  que a sociedade cristã capitalista tem pelos estrangeiros, contrariando o próprio texto base da fé que diz em Deuteronômio 10:19: “Amai, pois, o estrangeiro, porque foste estrangeiro na terra do Egito”.

Quando o semáforo abriu, andei mais alguns metros, estacionei o meu carro e fui ter um particular com a moça da Venezuela, não porque me lembrei do texto bíblico, mas porque certamente já fui um ‘estrangeiro’ neste lugar. Na década de 1980, quando aportei por estas bandas do Mato Grosso do Sul, não havia uma única pessoa conhecida a quem pudesse recorrer. Dei-lhe a moeda e ela me ofereceu um doce, não peguei o doce, ela me ofereceu um olhar triste, tomei para mim e devolvi-lhe um sorriso acanhado e algumas perguntas.

Quantas perguntas eu fiz? Não sei. As respostas que me deu são infinitas, ainda hoje, dez dias depois, encontro respostas dela para minhas perguntas, algumas que não compreendo, outras que fico curioso por saber mais e ainda algumas que não fazem o menor sentido numa sociedade dita civilizada. Enquanto conversávamos, o sinal fechou e abriu algumas vezes, os carros paravam e arrancavam e a moça estava sempre com o pote de doces na mão e a placa implorando ajuda, pendurada no pescoço.

Ontem recebi uma mensagem do meu amigo Maurício, venezuelano também, que veio ao Brasil há uns três anos, com a esposa, em busca de uma vida melhor. Está na Venezuela por uns tempos para cuidar de sua mãe, logo voltará para Dourados onde estão a esposa e o filho. Quando chegaram à esta cidade, ficaram três dias em nossa casa. Tempo preciosíssimo.

Lembrei do Maurício quando perguntei para a moça do semáforo pelo seu nome. Ela me respondeu e eu ainda estou procurando a resposta. Me disse que se chama Mari. Era ‘a’ resposta ou era ‘uma’ resposta? Não sei. Tanto faz. Essa pergunta veio no meio de uma conversa não muito difícil do tipo: como foi que tu vieste parar aqui.

 Minha dor estava nela, eu podia sentir, dor doída, de quarenta anos. Uma história arrastada pelas estradas, marcada pelo abandono, adoecida pela rejeição, gangrenada pela miséria, guiada por uma única estrela: esperança! E sustentada por uma força, que deu lugar ao choro incontrolável quando lhe fiz a última pergunta: E os teus filhos?

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