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quarta-feira, 9 de outubro de 2019

SÃO GRANDES AS CHANCES DE ME RECUPERAR


Eram oito da noite quando reuniu a família para explicar o quase inexplicável caso de loucura programada. O mal que me acomete, ele disse como se falasse de um carro novo que tivesse comprado, parece não ter nenhuma possibilidade de cura. Tal afirmativa soava meio como se o carro tivesse apresentado um problema mecânico e devesse ser devolvido à concessionária.  E, para dizer a verdade, prosseguiu, nem imagino que alguém em sã consciência queira mesmo ser curado do mal de sonhar com o infinito da liberdade!
Quando fui internado pela primeira vez, continuou, aos seis anos de idade, me disseram que o tratamento era necessário. Hoje, aos sessenta, não tenho dúvida que o remédio, ainda que amargo, foi bom. Claro que os métodos eram discutíveis, mas adquiri conhecimento e um mundo novo de possibilidades se abriu. Eu não sabia que junto vinha a doença da alma. Um processo de escravidão que se instala indelével, aprisionando a liberdade num modelo de sociedade hierarquizado e confuso.
Outra vez fiquei internado e mais outra e depois ainda outras vezes. É certo que os medicamentos alopáticos produzem efeitos rápidos contra as doenças visíveis. Uma surra aqui, um castigo ali e fui criando uma crosta contra os desejos. Mas esses remédios, depois produzem outras doenças como consequência de seus efeitos colaterais. Fiquei tímido e, mal sabia eu, revoltado! Não podia expressar minha revolta, então enchi o porta-malas da memória com algo que parecia um explosivo.
Acabaram-se as internações. Deram-me um diploma e fui levado para o mercado de trabalho. O mercado bem que tentou comprar minha mão-de-obra, mas ela invariavelmente dependia dos comandos mentais e a mente, cruelmente castigada pelas prisões em série, davam comandos não muito bem aceitos pelo mercado. Os professores tinham agora o nome de chefes, as listas de chamadas agora eram folhas de ponto e as notas se transformaram em moedas.
Por sessenta anos me disseram que eu ia ser livre. Era só obedecer!  O corpo escravizado foi incapaz de prender a mente. Não preciso mais do mercado, agora deixo minha loucura se livre. Acendi o estopim do porta-malas, vou explodir a hierarquia e nadar no mar da liberdade!

Elairton Paulo Gehlen

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

HISTORINHA (Do livro Histórias de Ana Maria e seu avô - capítulo 4)


Depois que a mãe se foi para casa, Aninha foi ‘convidada’ a tomar banho, depois foi o vô Júlio e só então a vó foi para o banheiro. Enquanto a vó tomava banho e se arrumava, Ana ficou no quarto arrumando suas roupas.  O vô queria ajuda-la na arrumação, mas ela disse que não precisava.
- Eu já sou grande – ela disse – já sei arrumar as minhas coisas, pode deixar que eu me viro.
 Então colocou as roupas que estavam na mala sobre uma cômoda e foi guardando as peças uma a uma nas gavetas. Quando concluiu, estava cansada da arrumação e das andanças com o avô e o sono ficou maior do que a vontade de assistir televisão, então deitou-se na cama e pediu para o vô contar uma historinha que ela queria dormir.
- Historinha? – Perguntou o vô como se isso fosse algo totalmente absurdo. - Isso é para crianças pequenas.
- Mas, será que meu vô não vê que eu ainda sou pequena? – Questionou Ana mostrando seu corpo ainda juvenil.
- Bem, – disse o vô – ainda agorinha você falou que não precisava de ajuda porque já era grande...
- Eu era grande para arrumar as minhas roupas porque eu queria arrumar elas sozinha, mas para contar historinha quem é grande é o vô, eu sou pequena.
- Ah, sim. Nesse caso eu vou contar. Pode ser a do gato de botas?
- Não, dessa eu já estou enjoada, meu pai contou ela um milhão de vezes, acho que ele só sabe essa.
- Então a da menina do chapeuzinho vermelho.
- Essa também não. Meu pai sempre conta essa também.
- Eu quero ouvir aquela que os macacos encontram uma plantação de chocolate.
- Ué, mas essa, teu pai, que só conhece a história do gato de botas, já não contou um milhão de vez para você?
- Não, vô. Essa, meu pai nunca me contou, mas a mãe disse que você sabe essa história e que é muito legal.
- Bom, para essa eu preciso da ajuda do autor. Vamos ver: Era uma vez, está ouvindo?
- Estou, vô. Era uma vez.
- Isso, era uma vez numa floresta que tinha aqui no sítio, lá perto do lago dos peixes onde fomos pescar hoje. Para baixo, tinha uma floresta grande e tinha muitos bichos do mato por lá. No meio da bicharada e morando na copa das árvores tinha um bando de macacos com cara de gente.
- Os macacos são gente? - Perguntou Aninha.
- Não – disse o vô – eles não são gente, são animais da floresta.
- Mas tem cara de gente. – Observou a neta.
- É, mas tem rabo como os outros animais. – Disse o vô estabelecendo uma diferença inquestionável.
- Às vezes a mãe faz um rabo de cavalo com meu cabelo. - Disse a neta e riu.
O vô riu e continuou:
-Então, aqueles macacos com rabo de animais da floresta estavam com fome, daí se reuniram e o chefe deles falou:
-Eu estou com fome e parece que não temos comida suficiente por aqui, então vamos empreender uma jornada para o interior da floresta para procurar alimentos. Vamos chamar essa jornada de Entradas e Bandeiras.
- Entradas eu entendi – disse um macaco – mas, bandeira? – Falou meio perguntando.
- Eu também não sei o que significa, - disse o chefe - mas eu sei que os bandeirantes quando foram caçar índios para serem escravos e procurar muitas riquezas minerais para Portugal eles entraram no mato e chamaram de Entradas e Bandeiras. Então vai se chamar assim.
- Nós vamos caçar índios? - Perguntou outro macaco.
- Não, seu burro, nós só vamos procurar alimentos.
- Eu não sou burro, sou macaco. – Disse o macaco.
- Deixa prá lá. – Disse o chefe. - Agora vamos enfrentar todos os perigos da floresta e trazer os alimentos de que precisamos. Todos em forma, podem ir que eu fico e espero vocês em dois dias.
Depois de perguntarem uns para os outros se não era o líder que deveria liderar a expedição, e depois de uns para os outros não saberem responder, foram em busca dos alimentos que estariam escondidos em algum lugar daquela floresta atrás de todos os perigos que a floresta oferecia.
Sem um líder que pudessem chamar de chefe, foram pulando de árvore em árvore até que de repente viram muitas árvores com frutas penduradas. Os que estavam na frente esperaram a chegada dos demais para perguntar se alguém conhecia aqueles frutos. Após alguns minutos de indecisão resolveram verificar mais de perto o que seriam aqueles frutos e logo um macaco gritou a todo pulmão: CHO-CO-LA-TE!
- Chocolate? – Perguntou um macaco faminto.
- Isso. Isso aqui é uma plantação de cacau e chocolate é feito de cacau.
- Oba, vamos comer chocolate no pé!
E assim os macacos atacaram a plantação de cacau que ficou totalmente destruída. No dia seguinte os macacos estavam comemorando a fartura de alimentos enquanto que o fazendeiro que plantava cacau chorava de raiva, doido para saber quem é que tinha destruído sua safra de cacau.

Elairton Pulo Gehlen

ESQUERDOPATA!

  Ontem eu estava fazendo minha caminhada vespertina pela praça do Parque Alvorada e ouvi uns amigos que caminhavam e conversavam animadamen...