Quando
o bolo chegou, único, exclusivo, feito por encomenda a uma franquia nos
Jardins, transportado na van refrigerada para que nada se perdesse da
aparência, os familiares e os convidados puderam finalmente erguer as mãos ao
alto e levantar as vozes em uníssono, ritmadas pelas palmas, e cantar os
parabéns ao ilustre aniversariante que se encontrava tristemente bebendo uísque
num canto da sala.
-
Faça seu pedido, doutor!
Depois
de gaguejar algo que não podia ser entendido pelos demais e de ser orientado
sobre o absoluto segredo de seu pedido, olhou através dos milhares de milhas que
pensava estar daquela realidade e pediu aos deuses do capitalismo que
encontrassem um jeito de permitir que a festa fosse aberta aos muitos amigos em
quarentena, que a banda pudesse tocar e as pessoas dançar livremente sem o
incômodo medo desse vírus.
-
Brindemos ao aniversariante!
Dez
familiares e quinze convidados. Foi o máximo possível reunir sem a
desconfortável visita dos representantes da ordem pública em tempos de
quarentena obrigatória. Se pelo menos tivesse liberdade de cuidar de seu
próprio quintal!
Já
perdera dez milhões investidos na bolsa de valores, já perdera outro tanto
pelas medidas restritivas do governo e ainda iria perder mais com essa
paralisação quase total da economia. De que me serve um governo liberal? De que
me serve o capitalismo se o Estado intervém para salvas as pessoas?
De
madrugada, quase dia clareando, as duas garotas de programa que encomendara
ouviam vozes sonolentas que falavam de algo como que um pedido aos deuses: “Eu quero um lugar, dizia o sonâmbulo
entre lençóis e agarrado ao travesseiro como se agarrasse a última chance de
ser feliz, eu quero um lugar onde eu
possa gastar meu dinheiro livremente”. Daí suspirou, deu um salto na cama e
olhou em redor: “Quem são vocês? Ah,
claro, acho que tive um pesadelo. Dá para ir até a geladeira e pegar um pedaço
de bolo para mim? ”.
Elairton Paulo Gehlen
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