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segunda-feira, 23 de março de 2020

O BOLO E A VIDA


Quando o bolo chegou, único, exclusivo, feito por encomenda a uma franquia nos Jardins, transportado na van refrigerada para que nada se perdesse da aparência, os familiares e os convidados puderam finalmente erguer as mãos ao alto e levantar as vozes em uníssono, ritmadas pelas palmas, e cantar os parabéns ao ilustre aniversariante que se encontrava tristemente bebendo uísque num canto da sala.
- Faça seu pedido, doutor!
Depois de gaguejar algo que não podia ser entendido pelos demais e de ser orientado sobre o absoluto segredo de seu pedido, olhou através dos milhares de milhas que pensava estar daquela realidade e pediu aos deuses do capitalismo que encontrassem um jeito de permitir que a festa fosse aberta aos muitos amigos em quarentena, que a banda pudesse tocar e as pessoas dançar livremente sem o incômodo medo desse vírus.
- Brindemos ao aniversariante!
Dez familiares e quinze convidados. Foi o máximo possível reunir sem a desconfortável visita dos representantes da ordem pública em tempos de quarentena obrigatória. Se pelo menos tivesse liberdade de cuidar de seu próprio quintal!
Já perdera dez milhões investidos na bolsa de valores, já perdera outro tanto pelas medidas restritivas do governo e ainda iria perder mais com essa paralisação quase total da economia. De que me serve um governo liberal? De que me serve o capitalismo se o Estado intervém para salvas as pessoas?
De madrugada, quase dia clareando, as duas garotas de programa que encomendara ouviam vozes sonolentas que falavam de algo como que um pedido aos deuses: “Eu quero um lugar, dizia o sonâmbulo entre lençóis e agarrado ao travesseiro como se agarrasse a última chance de ser feliz, eu quero um lugar onde eu possa gastar meu dinheiro livremente”. Daí suspirou, deu um salto na cama e olhou em redor: “Quem são vocês? Ah, claro, acho que tive um pesadelo. Dá para ir até a geladeira e pegar um pedaço de bolo para mim? ”.

Elairton Paulo Gehlen

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