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segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

OS DIAS


De manhã, os dias são sempre os mesmos, tão mesmos que parece que são sempre o mesmo dia. Fazemos tantas coisas, mas as coisas não nos pertencem, apenas fazemos. As coisas nos ensinam, elas lidam conosco porque o seu jeito é o jeito certo e nós praticamos para aprender e aprendemos o máximo das coisas porque não questionamos. As coisas são as coisas certas e isso basta.
De tarde são os anos o nosso terror! Um século inteiro se passa, mas nunca chegamos aso dezoito anos. Lidamos com as coisas como se elas tivessem que nos obedecer, elas até que tentam, mas somos tão indesejáveis para as coisas que acabamos sendo deixados de lado. Ficamos sempre procurando pessoas para substituir as coisas, mas as pessoas nunca estão certas, então acabamos olhando para frente como se além da nossa visão estivesse nos esperando alguma coisa que nos preencha o vazio. E quando o ano finalmente passa e nós não passamos de ano parece que nenhuma coisa se encaixa na nossa existência.
Ao entardecer, lidamos com tantas coisas que parece que as coisas que lidavam conosco de manhã se multiplicaram. Ensinamos as coisas e competimos com as pessoas. No meio das coisas selecionamos uma delas para ser o nosso deus. Esse deus ocupa toda a nossa mente e o nosso coração, damos adoração a ele e nos prostramos diante dele. Acumulamos o máximo de objetos sagrados na esperança de que nos valham na dificuldade e nos rendemos ao espírito do capitalismo. E os dias passam mais rápido do que conseguimos ver.
Quando a noite chega, gostaríamos de voltar para a manhã e refazer tudo de um jeito diferente. Não dá mais, as coisas já não nos querem mais e não nos aceitam como ao amanhecer. Ainda que a cabeça esteja na hora do almoço, os dias estão mais lentos do que as pessoas que passam pela rua. Já não há mais coisas e a noite virá e nós ficaremos com o deus ou o Deus que escolhemos quando nos foi dado o direito de escolher.
A noite vem....

E então....

É NATAL!

Elairton Paulo Gehlen

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

SÃO GRANDES AS CHANCES DE ME RECUPERAR


Eram oito da noite quando reuniu a família para explicar o quase inexplicável caso de loucura programada. O mal que me acomete, ele disse como se falasse de um carro novo que tivesse comprado, parece não ter nenhuma possibilidade de cura. Tal afirmativa soava meio como se o carro tivesse apresentado um problema mecânico e devesse ser devolvido à concessionária.  E, para dizer a verdade, prosseguiu, nem imagino que alguém em sã consciência queira mesmo ser curado do mal de sonhar com o infinito da liberdade!
Quando fui internado pela primeira vez, continuou, aos seis anos de idade, me disseram que o tratamento era necessário. Hoje, aos sessenta, não tenho dúvida que o remédio, ainda que amargo, foi bom. Claro que os métodos eram discutíveis, mas adquiri conhecimento e um mundo novo de possibilidades se abriu. Eu não sabia que junto vinha a doença da alma. Um processo de escravidão que se instala indelével, aprisionando a liberdade num modelo de sociedade hierarquizado e confuso.
Outra vez fiquei internado e mais outra e depois ainda outras vezes. É certo que os medicamentos alopáticos produzem efeitos rápidos contra as doenças visíveis. Uma surra aqui, um castigo ali e fui criando uma crosta contra os desejos. Mas esses remédios, depois produzem outras doenças como consequência de seus efeitos colaterais. Fiquei tímido e, mal sabia eu, revoltado! Não podia expressar minha revolta, então enchi o porta-malas da memória com algo que parecia um explosivo.
Acabaram-se as internações. Deram-me um diploma e fui levado para o mercado de trabalho. O mercado bem que tentou comprar minha mão-de-obra, mas ela invariavelmente dependia dos comandos mentais e a mente, cruelmente castigada pelas prisões em série, davam comandos não muito bem aceitos pelo mercado. Os professores tinham agora o nome de chefes, as listas de chamadas agora eram folhas de ponto e as notas se transformaram em moedas.
Por sessenta anos me disseram que eu ia ser livre. Era só obedecer!  O corpo escravizado foi incapaz de prender a mente. Não preciso mais do mercado, agora deixo minha loucura se livre. Acendi o estopim do porta-malas, vou explodir a hierarquia e nadar no mar da liberdade!

Elairton Paulo Gehlen

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

HISTORINHA (Do livro Histórias de Ana Maria e seu avô - capítulo 4)


Depois que a mãe se foi para casa, Aninha foi ‘convidada’ a tomar banho, depois foi o vô Júlio e só então a vó foi para o banheiro. Enquanto a vó tomava banho e se arrumava, Ana ficou no quarto arrumando suas roupas.  O vô queria ajuda-la na arrumação, mas ela disse que não precisava.
- Eu já sou grande – ela disse – já sei arrumar as minhas coisas, pode deixar que eu me viro.
 Então colocou as roupas que estavam na mala sobre uma cômoda e foi guardando as peças uma a uma nas gavetas. Quando concluiu, estava cansada da arrumação e das andanças com o avô e o sono ficou maior do que a vontade de assistir televisão, então deitou-se na cama e pediu para o vô contar uma historinha que ela queria dormir.
- Historinha? – Perguntou o vô como se isso fosse algo totalmente absurdo. - Isso é para crianças pequenas.
- Mas, será que meu vô não vê que eu ainda sou pequena? – Questionou Ana mostrando seu corpo ainda juvenil.
- Bem, – disse o vô – ainda agorinha você falou que não precisava de ajuda porque já era grande...
- Eu era grande para arrumar as minhas roupas porque eu queria arrumar elas sozinha, mas para contar historinha quem é grande é o vô, eu sou pequena.
- Ah, sim. Nesse caso eu vou contar. Pode ser a do gato de botas?
- Não, dessa eu já estou enjoada, meu pai contou ela um milhão de vezes, acho que ele só sabe essa.
- Então a da menina do chapeuzinho vermelho.
- Essa também não. Meu pai sempre conta essa também.
- Eu quero ouvir aquela que os macacos encontram uma plantação de chocolate.
- Ué, mas essa, teu pai, que só conhece a história do gato de botas, já não contou um milhão de vez para você?
- Não, vô. Essa, meu pai nunca me contou, mas a mãe disse que você sabe essa história e que é muito legal.
- Bom, para essa eu preciso da ajuda do autor. Vamos ver: Era uma vez, está ouvindo?
- Estou, vô. Era uma vez.
- Isso, era uma vez numa floresta que tinha aqui no sítio, lá perto do lago dos peixes onde fomos pescar hoje. Para baixo, tinha uma floresta grande e tinha muitos bichos do mato por lá. No meio da bicharada e morando na copa das árvores tinha um bando de macacos com cara de gente.
- Os macacos são gente? - Perguntou Aninha.
- Não – disse o vô – eles não são gente, são animais da floresta.
- Mas tem cara de gente. – Observou a neta.
- É, mas tem rabo como os outros animais. – Disse o vô estabelecendo uma diferença inquestionável.
- Às vezes a mãe faz um rabo de cavalo com meu cabelo. - Disse a neta e riu.
O vô riu e continuou:
-Então, aqueles macacos com rabo de animais da floresta estavam com fome, daí se reuniram e o chefe deles falou:
-Eu estou com fome e parece que não temos comida suficiente por aqui, então vamos empreender uma jornada para o interior da floresta para procurar alimentos. Vamos chamar essa jornada de Entradas e Bandeiras.
- Entradas eu entendi – disse um macaco – mas, bandeira? – Falou meio perguntando.
- Eu também não sei o que significa, - disse o chefe - mas eu sei que os bandeirantes quando foram caçar índios para serem escravos e procurar muitas riquezas minerais para Portugal eles entraram no mato e chamaram de Entradas e Bandeiras. Então vai se chamar assim.
- Nós vamos caçar índios? - Perguntou outro macaco.
- Não, seu burro, nós só vamos procurar alimentos.
- Eu não sou burro, sou macaco. – Disse o macaco.
- Deixa prá lá. – Disse o chefe. - Agora vamos enfrentar todos os perigos da floresta e trazer os alimentos de que precisamos. Todos em forma, podem ir que eu fico e espero vocês em dois dias.
Depois de perguntarem uns para os outros se não era o líder que deveria liderar a expedição, e depois de uns para os outros não saberem responder, foram em busca dos alimentos que estariam escondidos em algum lugar daquela floresta atrás de todos os perigos que a floresta oferecia.
Sem um líder que pudessem chamar de chefe, foram pulando de árvore em árvore até que de repente viram muitas árvores com frutas penduradas. Os que estavam na frente esperaram a chegada dos demais para perguntar se alguém conhecia aqueles frutos. Após alguns minutos de indecisão resolveram verificar mais de perto o que seriam aqueles frutos e logo um macaco gritou a todo pulmão: CHO-CO-LA-TE!
- Chocolate? – Perguntou um macaco faminto.
- Isso. Isso aqui é uma plantação de cacau e chocolate é feito de cacau.
- Oba, vamos comer chocolate no pé!
E assim os macacos atacaram a plantação de cacau que ficou totalmente destruída. No dia seguinte os macacos estavam comemorando a fartura de alimentos enquanto que o fazendeiro que plantava cacau chorava de raiva, doido para saber quem é que tinha destruído sua safra de cacau.

Elairton Pulo Gehlen

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

SIMPLES COMO O INGLÊS


Sabe! Claro que sabe, João sabe todas as coisas. Estudou inglês durante três meses e foi o suficiente para entender que se o caso é difícil, é só botar a língua entre os dentes ou não dizer a letra que atrapalha a fala. Simples assim! That é com a língua entre os dentes, thought é só por a língua entre os dentes e falar thót, pronto.
Foi simplificando na vida que João resolveu dar conselhos para os netos adolescentes. Cansado de esperar, ficou esperando só mais um minutinho, aí ergueu a tela do computador e escreveu todas as coisas que queira falar, mas não podia porque os meninos moravam muito longe e o telefone não tinha ligações infinity.
O primeiro conselho foi sobre o inglês que estudara com afinco nos últimos três meses. Olha, ele disse, vocês têm que ser como o inglês, não o sujeito que mora na Inglaterra, mas como a língua inglesa, é conhecida e reconhecida no mundo todo e tem muito valor para quem a conhece. Todas as línguas são muito importantes, assim também as pessoas, mas a língua inglesa é universal, seja um cosmopolita você também.
Depois aconselhou olhar no espelho pelo menos uma vez a cada manhã e repetir a assertiva de Steve Jobs: “Se hoje fosse o último dia da minha vida, eu iria querer fazer o que eu estou prestes a fazer hoje? ”. Isso, muitas coisas perdem o sentido se pensarmos que estamos vivendo o nosso último dia de vida e você pode ter certeza de que algum dia isso será mesmo verdade!
Então pensou que talvez já tivesse dado conselhos suficientes para toda a vida, mas lhe ocorreu que uma pequena comunidade que vivia feliz isolada do resto do mundo e falando um idioma próprio, então deu um último conselho: Se o inglês te parece grande demais, encha o teu coração com palavras simples de sabedoria.
Fechou o computador com a firme decisão de mandar por e-mail no dia seguinte. Não foi possível, “hoje” fora o seu último e, talvez ele devesse ter lembrado de seu segundo conselho.
Elairton Paulo Gehlen

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

(Do livro Histórias de Ana Mara e seu Avô, Capítulo 3) DESPEDIDA


Eram quatro horas da tarde quando Nanci levantou-se da cadeira dizendo que estava na hora de ir para casa. Chegara às nove horas da manhã na casa dos sogros somente para deixar a filha que veio passar as férias na casa dos avós e ficou só mais um pouquinho porque a sogra pediu.
Às dez da manhã disse ia para casa porque o marido ia chegar para o almoço e ela ainda não tinha preparado nada e tinha uma rodovia pela frente, ou para trás, já que viera de lá e agora ia gastar pelo menos uns cinquenta minutos no caminho de volta.
Ficou mais alguns minutos porque a sogra disse que ia passar uma receita na televisão que ela estava esperando fazia bem uns dois dias.
- Vi a propaganda – ela falou – você precisa ficar mais um pouquinho.
Às onze da manhã terminou de passar a receita e a sogra disse que ela deveria ficar para ajudar no almoço.
- Você viu que fácil! – Exclamou Nanci. – Vou para casa preparar para o almoço!
- Fica – disse a sogra – vamos fazer juntas, aí você chama o João e a gente almoça todo mundo junto.
João é o marido de Nanci.
Fizeram a receita que às onze e meia foi ao forno alto por trinta minutos.
Quinze minutos depois de colocar a forma no forno o celular chamou, era João dizendo que não ia almoçar em casa, tinha um compromisso com o pessoal da empresa onde trabalhava e só voltaria mais tarde. Com a notícia, Nanci ficou despreocupada e chamou a sogra para irem ao pomar colher algumas frutas da época.
Andaram pelo pomar cada uma com uma faca na mão. Primeiro chuparam laranja, depois uns poncãs, daí viram umas canas caiana e resolveram colher e se sentar perto do curral para chupar. Chuparam cana e falaram muito mal da vizinha que é uma fofoqueira. Decerto a orelha do vizinho estava pegando fogo porque ele também entrou na conversa por mais de meia hora. Não só ele, mas também as três amantes que ele tem. E se não tinha, agora tem. Tem porque tem! Tem gente que não tem vergonha da cara!
Lá pela uma da tarde chegaram os boiadeiros Ana Maria e o vô Júlio com as vacas e os bezerros. Quando viram eles chegando de longe, a sogra lembrou da comida no forno e gritou: Jesus Amado! A essa hora o forno já pegou fogo!
Correram para a cozinha, tiraram os restos queimados do forno para jogar bem longe e recomeçaram o almoço, agora com receitas conhecidas feitas na panela na boca do fogão sob os olhos vigilantes de duas atentas mulheres prendadas.
Das duas até às três da tarde foi a hora do sono e não dava para sair sem tomar um chimarrão até às quatro. Pronto, agora estava na hora de ir. Nanci já estava em pé decidida.
A sogra ofereceu mais um chimarrão que foi prontamente aceito. Enquanto tomava o chimarrão, a sogra disse que ia preparar algo para ela levar para a janta.
- Não é justo que o João fique sem experimentar essa comida deliciosa que fizemos para o almoço.
Nanci foi também para a cozinha. Na marmita entrou o arroz à grega, a mandioca bem cozidinha, o macarrão ao alho e óleo e um generoso pedaço de carne de porco frito.
- Pronto. Cadê a Aninha para eu me despedir? – Disse Nanci procurando pela filha.
- Ué - disse a sogra – estavam ali agora mesmo!
- Aninha – chamou a mãe.
Nada, Aninha já tinha ido com o vô para longe da casa. Não dava para ir sem se despedir da filha, então ficou mais um pouquinho.
- Quem sabe voltam logo.
Às seis da tarde, já escurecendo o dia, chegaram Aninha e o vô arrastando as varas de pescar e um balde com peixes que pegaram no lago.
-Aninha do céu – disse a mãe – estou esperando você para me despedir. Já está ficando de noite.
- Espera um pouco mãe que nós vamos limpar os peixes. Eu quero que você leve pelo menos um desses que eu pesquei para o papai.
Limparam os peixes e quase seis e mia da noite Nanci pegou as chaves do carro para sair. Aninha parou em sua frente e dedo em riste falou:
- Vai levar os peixes cru, é? O pai não vai gostar.
- Mas filha...
- Mas filha digo eu – Seu Júlio entrou na conversa – ficou até agora fica mais um pouco, vamos fritar os peixes.
- Às sete da noite estavam jantando e às oito da noite, depois de se explicar longamente no celular, Nanci entrou no carro meio chateada com a bronca do marido que não entendia como ela tinha ficado tanto tempo sem voltar para casa.
- Não saiu de manhã só para deixar a Aninha e voltar?

Elairton Paulo Gehlen

sábado, 6 de julho de 2019

(Do Livro: Histórias de Ana Maria e seu avô. Capítulo 2) - MODELO


(HOJE PUBLICO O SEGUNDO CAPÍTULO DO MEU LIVRO INTITULADO HISTÓRIAS DE ANA MARIA E SEU AVÔ,  QUE SERÁ LANÇADO EM OUTUBRO. 

Ana e o vô Júlio andaram com seus cavalos pelo pasto e o petiço que nunca fora bravo, era manso devido a autoridade da menina no controle absoluto desse animal.
- Tem que ser bom para controlar um cavalo como esse que eu estou, hem vô? – Disse Ana muito segura de si.
- É, minha neta, eu fico tranquilo quando você está por perto. – Disse o vô.
- Deixa que eu vou na frente, é mais seguro. – Disse Ana e conduziu seu cavalo adiante da montaria de Júlio.
Assim foram até o lago onde pararam para tomar água da bica. Ali ficaram descansando e conversando enquanto os cavalos comiam grama.
- Sabe, vô... – Ana começou a falar da escola. Contava detalhes das aulas, dos colegas, dos professores e de como ela era boa nos estudos. Parece que queria falar tudo de uma só vez, emendava um assunto no outro e o vô ia escutando pacientemente. Quando ela parava para respirar, o que era raro, o vô tentava em vão falar alguma coisa. Ana não deixava e já ia falando outra vez. Até que de repente ela parou e ficou olhando para o vô e disse:
- Ué, vô e você não vai falar nada?
Aí o vô aproveitou a deixa e perguntou como estavam as notas.
- Estão ótimas, fiquei de recuperação em cinco matérias, mas passei em todas!
Com o assunto ainda pela metade, resolveram montar seus cavalos pois já estava na hora de recolher o gado para depois ir almoçar. Foram tocando as vacas com os bezerros para o cercado do curral, daí separaram as vacas dos bezerros e orgulhosamente consideraram o serviço concluído para essa manhã que encostava nas 13 horas do dia. Tiraram os arreios dos cavalos e foram se gabar na cozinha onde estavam a mãe e a avó fazendo o almoço.
- Cheguei na hora, vó. Acho que o vô não ia conseguir separar os bezerros das vacas se eu não ajudasse. – Disse Ana orgulhosa da contribuição que dera na labuta do campo.
Depois do almoço o vô e a vó foram dormir que ninguém é de ferro, enquanto que Ana foi assistir televisão que ninguém é de ferro mesmo e a mãe repassou as mensagens do WhatsApp que ninguém é de ferro mesmo, mesmo.
- Como a Aninha está linda! – Disse a vó para a nora enquanto tomavam chimarrão no meio da tarde.
Ana não ouviu esse elogio porque estava com o vô arrumando o cercado das galinhas que se estragou quando um boi fugiu há dois dias e acuado foi de encontro a cerca e derrubou um palanque arrebentando a cerca de bambus.
- Essa minha neta está muito linda! Disse o vô intuitivamente quando terminaram de consertar o cercado. Bonita e eficiente, agora as galinhas não vão mais fugir.
Ana era mesmo bonita. Aos dez anos de idade ainda lembrava que da última vez que passara as férias no sítio a boca tinha uma janelinha que agora estava fechada por dentes bem cuidados. A pele jovial, os olhos azuis e cabelos loiros bem tratados. Dava para confundir com uma boneca bem grande.
- A mãe diz que eu vou ser modelo quando eu crescer. Por isso que eu não gosto de estudar. Para ser modelo a gente não precisa estudar.
- Quem não estuda fica burrinho. – Observou o vô.
- Burrinha, mas bonita e cheia da grana! – Justificou Ana, e emendou: - As modelos... – parou por um instante, ia dizer algo depreciativo sobre as modelos... – as modelos – repetiu - também não são lá muito inteligentes..., mas são ricas... - parou a frase como se fosse prosseguir, mas só riu olhando para o vô com uma expressão de dúvida, os olhos bem abertos e as mãos meio abertas na frente do peito, uma mais próxima do queixo a outra um pouco abaixo.
O vô riu e pegou na mão da neta para irem até onde estavam as modelos, quer dizer as mulheres tomando chimarrão. Ele queria tomar umas cuiadas.

Elairton Paulo Gehlen

segunda-feira, 1 de julho de 2019

FELICIDADE


Sai da murmúria do tempo, o próprio tempo de que se murmura. Tem uma felicidade chegando no horizonte às seis da manhã e traz o raiar do sol num colorido quase indescritível de tantas cores que precedem o dia cheio de oportunidades e possibilidades que até me atrapalho. É balbúrdia nos meus pensamentos e por uns instantes fico a admirar tanta beleza disponível justamente para mim, pobre coitado despido de capacidade para interpreta-la. Me sinto seduzido, por pouco que o horizonte não me abduzia, não fosse a louça suja em cima da pia a despertar a indignação da minha mulher que acaba de entrar na cozinha sem entender porque eu ainda não pusera o leite para ferver e o café no coador.
Ainda ouço as vozes, mas não decifro seu significado. São vozes do tempo que se fez e desfez. O café da manhã estava com jeito de felicidade, farto na mesa, esbanjando sabor no prato e aroma na xícara. O pão caseiro falando aos sentidos sobre relacionamento de um dia inteiro desde o preparo do fermento natural até sair quentinho do forno. O melado traz histórias que remontam ao ano passado quando a cana foi plantada até a semana passada quando foi feito no tacho. A nata é do leite que fui buscar no curral do fornecedor acompanhado de pelo menos meia hora de sonhos de uma vida melhor que vem com o aumento na produção. Essa felicidade me invadia por osmose quando de repente sofro um solavanco nas ideias: ‘Está ouvindo? Depois reclama que eu falo muito, mas você fica aí calado! ’ É uma voz conhecida, mas totalmente estranha aos momentos de felicidade.
Quando dou por mim, o sol está a pino e as garças-boieiras dançam livremente junto aos bois no pasto. Não foi preciso pensar para me escorar no cabo da enxada, num repente minha mente ficou livre, livremente. Os tucanos que logo de manhã pulavam nas árvores exibindo seu enorme bico colorido, agora voam pelos pensamentos caçando insetos e se alimentando de frutas, a fruta proibida da árvore do conhecimento do bem e do mal!
Larguei a enxada e fui pescar. Não foi necessário dar palavra porque a natureza ocupou todos os segundos para mostrar o tanto de felicidade disponível. O lago formado nas nascentes liberou água em cascata entre as pedras com uma música plenamente compreendida pelos sentidos. Seguindo a correnteza fui parar à beira do lago. Ah, o lago! Espelho da natureza refletindo a graça divina. O céu ao meu alcance na lâmina d’água! Joguei o anzol e pesquei uma patinga no meio de uma belíssima nuvem de algodão.
O entardecer descortina no horizonte o privilegio da beleza, trazendo após si um mar de estrelas e a lua nova. Lua nova... vida nova... nova....nova....
- Que foi, homem, acorda. A vida é dura!
Elairton Paulo Gehlen

sexta-feira, 14 de junho de 2019

AS FOLHAS FICAM VERMELHAS NO OUTONO.


E numa dessas tardes friazinhas do outono, o sol a pino e as nuvens desaparecidas, até o cheiro do frio irrita as narinas e o aroma do relacionamento ocupa um bom espaço nos pensamentos alimentando a ideia de que o calor vai voltar para compor o cobertor do entendimento enquanto as mãos tecem as roupas de dormir.
Não é frio quando os ventos do Sul trazem um chimarrão rodeado de amigos para uma conversa calorosa.  A prosa e os versos, no verso e no reverso da conversa que atravessa os muros da discriminação põe por terra a ignorância que impera e emperra, esfria e congela a humanidade em tempos de cura e libertação.
Encostado ao muro, sol na cara, chapéu por sobre os olhos. Tem coisas que é difícil de ver, entender então, quase impossível, O frio da espinha dorsal do preconceito não tem sol que aquente. Quase dormia quando ouviu um grito do outro lado do muro: Negro filho da puta! Era domingo, tinha mal chegado da igreja. Não o negro. Este ficara trabalhando.
Não é frio quando o que aquece são os corações. Orações são necessárias, mas quando o friozinho do outono vem e as folhas ficam avermelhadas buscamos refúgio onde há uma bela palhada, o aconchego de corações que palpitam e compartilham uma bela poesia para aquecer o dia e uma vida inteira de amizade.
Bateu forte no peito: Era um filho da puta! Não o negro, ele mesmo. Nascido na zona do meretrício, agora tem que ouvir as baixarias de quem talvez seja mesmo seu pai. Não o negro, o que voltara da igreja. De reza em reza busca arrependimento e confessa os pecados, depois peca para encher o vazio da alma que não se alimenta. Tem nada não, domingo que vem confessa de novo!
Elairton Paulo Gehlen

sexta-feira, 7 de junho de 2019

(Do Livro: Histórias de Ana Maria e seu avô. Capítulo 1) O CAVALO METUSALÉM


Quando Ana Maria abriu os olhos e viu a mãe que sorria e acariciava seus cabelos, foi logo perguntando:
- É hoje que eu vou para casa do vô passar as férias com ele?
A mãe, na esperança de que a filha acordasse animada para ir à escola, parou as carícias por um instante e ficou pensativa. Ainda não era o primeiro dia das férias, então disse que estava na hora de levantar, lavar o rosto, se vestir e tomar café que ainda tinha uma semana de aulas.
- Uma semana! – Disse Aninha e ergueu as mãos para o alto para demonstrar o tamanho do tempo que isso era. Abriu também os olhos bem abertos para reforçar a medida do tempo. - É muito tempo e eu aprendo mais com o meu avô do que na escola. Bem que as férias podiam começar hoje. Você não acha?
- Acho. Acho que estamos em cima da hora. Pula da cama que o café está na mesa e vai ficar muito triste se você não der atenção a ele.
Aninha levantou-se, foi ao banheiro e disse ao espelho que no próximo final de semana ela teria que o abandonar por uns tempos pois tinha que dar atenção ao vô Júlio. “Ele está muito ansioso e se eu não for talvez ele fique doente, então é melhor eu ir. ” O espelho se conformou. Para essas frases tristes ele não dava nenhuma resposta, mas quando Aninha se arrumava e perguntava se estava bonita, então o espelho devolvia um sorriso largo de confirmação. 
Aquela semana passou lentamente e os cadernos de Aninha voltaram para casa cheios de desenhos do sítio. Uma casa grande, o galinheiro, o curral, a horta, galinhas pelo quintal comendo o milho que a vó tratava. Tinha árvores, bois pastando, um cachorro e o vô com o laço na mão querendo pegar um bezerro.
Quando finalmente chegou o dia, chegando no sítio, foi correndo para perto do vô e parou estática à uns três metros de distância com as mãos na cintura, a perna esquerda um pouco à frente da outra, a cabeça levemente inclinada para a direita e um sorriso incontido no rosto. O vô olhou e ela estava linda, vestindo calças jeans, camisa quadriculada, chapéu de cowboy e botinas nos pés.
- Ouhhh!! Finalmente chegou a minha boiadeira! – Disse o vô com um sorrisão no rosto.
- E aí, vô. Cadê o meu cavalo, eu vim ajudar a separar o gado. – Disse a neta com a segurança de um peão de boiadeiro.
- O cavalo está encilhado, mas antes vem cá que meu pescoço está doendo e só um abraço de Ana Maria consegue curar. Também estou sentindo uma dor aqui nessa bochecha...
- Oh, vô, eu dou um beijo e vai sarar!
Então pulou no pescoço do vô e ficou rodando no ar, abraçou o vô com os braços ao redor do pescoço para tirar a dor e com as pernas ao redor do tronco para ficar mais firme. Deu um beijo bem carinhoso e a dor sumiu das bochechas. E assim, cavalgando firme no peito do vô foram em direção ao curral onde o petiço já estava encilhado para Ana Maria enquanto que ao seu lado estava prontinho para ser montado pelo vô, o cavalo Metusalém.
- Ma-tu-sa-lém - disse a neta querendo corrigir o avô.
- Fui eu que batizei ele e dei o nome de metusalém, então ele se chama me-tu-sa-lém.
- Então tá. É como a mãe sempre diz: manda quem pode, obedece quem tem prejuízo.
Na verdade, nenhum dos dois sabia quem fora ou o que significava Metusalém ou Matusalém. Isso também não tinha a menor importância. O vô dissera que havia colocado esse nome no cavalo depois que alguém o havia xingado desse nome quando, meio desengonçado, saiu da loja da CERGRAND e atravessou a rua sem prestar atenção ao trânsito.
- Ô velho Matusalém – gritou um sujeito de dentro de um carro bacana – saí daí seu velho gá-gá – emendou.
- Metusalém é o cavalo que te criou. – Respondeu Júlio num acesso de raiva.
No dia seguinte comprou o cavalo num negócio que fez com um vizinho. Chegando em casa lembrou-se do cavalo que criara o motorista e, para nunca mais esquecer do episódio, deu nome de metusalém ao cavalo que comprou dizendo que talvez ele crie também um dono de um carro daqueles de luxo que o outro irmão estava guiando.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

O QUE IGUALA SÃO JUSTAMENTE AS DIFERENÇAS


À noite, diante do meu computador, tomando meu café com açúcar orgânico e comendo umas bolachas maria, fui escrever minha crônica. O silêncio noturno parecia não trazer nenhuma inspiração, liguei o som e deixei tocando Pink Floyd, liguei também a TV e deixei num filme da net flix, em japonês que é para não entender nada do que estavam falando. O som psicodélico e o filme em japonês eram tão diferentes que eu nem sequer tentava entender um ou outro. Deixei o barulho tomar conta do ambiente e fixei os olhos na tela do computador. Já estava escrevendo sobre o frio do inverno que se aproximava quando ouvi gritos na rua, gritavam tão alto que parei minha escrita e prestei atenção, poderia ser só mais um barulho se misturando aos outros, mas não era, falavam em português e eu entendia o que falavam. O fato de falarem uma língua compreensível para mim fazia com que os gritos, ainda que irritantes, fossem familiares e aceitos ou pelo menos acolhidos em minha memória de forma diferenciada aos outros barulhos da sala. Fui até a janela e abri-a lentamente. Dois homens discutiam energicamente um com o outro por ciúmes, a mulher de um teria dado trela para o outro. A janela aberta deixou o som da sala invadir a rua e os que brigavam interromperam sua luta para olharem para minha janela. Por um momento ficamos assim, olhando um para o outro em silêncio. Fechei a janela e voltei ao computador, os dois intensificaram a luta e se agrediram, a polícia foi chamada e ambos foram levados pelo camburão.
Voltei ao texto que estava escrevendo. Eu não sentia frio, mas sentia que por um instante que seja, eu, o ciumento e o traidor nos igualamos quando abri a janela.

Elairton Paulo Gehlen

sexta-feira, 24 de maio de 2019

LIBERDADE


Há mais de trinta anos que a liberdade procura guarida em mim. Não que eu não a queira, muito pelo contrário do contrário do contrário. Com trinta anos, há trinta anos atrás, meu sonho de liberdade entrava definitivamente em contradição. Ao entrar em um emprego público, fiquei definitivamente preso por quase outros trinta anos que é o prazo máximo que um detento pode ficar detido neste país. Esse foi o meu segundo ‘contrário’, isso, o segundo, o primeiro fica para depois do terceiro.
Pelos últimos trinta anos, evidentemente não há que se falar em liberdade, mas agora estou definitivamente aposentado e aquele sonho de liberdade adormecido em berço esplêndido parece acordar em longos bocejos espiando em volta se a babá se encontra desencontrada. Não, não se encontra... desencontrada. Se encontra como se ficasse de plantão por vinte e quatro horas, todos os dias da semana, inclusive sábados, domingos e feriados a me dizer que ‘agora’ é hora de pensar na estabilidade porque a velhice bate à porta e é preciso estar à porta para atende-la e parece que ela vem carregada de dores e remédios para dores, doenças e remédios para doenças e um papel muito comprido com todas as parcelas do seguro sepultamento que devem ser pagas antes de morrer.
Antes que as parcelas vincendas se tornem vencidas, vamos ao primeiro contrário. Claro que é antes dos trinta anos! O que era mesmo que eu estava procurando naquele tempo? Ah, sim: Liberdade... sem medo! Depois de ser vigiado pelos pais, torturado pelos professores e explorado pelo patrão, descobri algo fantástico que alimenta sonhos de liberdade: L I V R O S! Você já leu Summerhill, Liberdade sem medo? Pois é. Encontrei esse livro quando eu já era um ‘rato de biblioteca’. Quanto mais eu dedicava tempo para os livros, menos eu procurava emprego. As ideias fartas e a barriga... com fome, muita fome.
Eu ia morrer se eu ficasse livre, o sistema não aceita pessoas livres. Esse foi o primeiro contrário. Eu sei que é uma péssima ideia ficar olhando para trás, mas tem uma pergunta que não cala: Não seria melhor ter morrido livre?
Elairton Paulo Gehlen

sexta-feira, 17 de maio de 2019

O PRESENTE

 Não sei como alguém recusa um presente que alimentaria seus sonhos mais lindos. Aquilo que seria como combustível para a máquina da existência. Ou será que estou enganado?

Natan é um presente a ser entregue. Especial. Cheio de magia e poderes. Natan está pronto. Só lhe falta aquele momento especial. Momento para ser aceito e repetido. A emoção procurando caminhos nas veias e saindo pelos poros. E o presente ali para ser entregue.

Mara nunca está pronta. Tão ocupada está em seus afazeres que nem percebe Natan. Já é tarde da noite, a casa ainda desarrumada. É preciso dormir.

O presente não pode ser entregue assim. Existe uma condição. Para ser entregue, o presente tem primeiro que ser aceito. Natan se esforça. Ele sabe que o presente deve ter prioridade. O presente tem poderes inimagináveis. Só o fato de recebê-lo faz com que todas as coisas fiquem belas. Tudo fica bonito. É a magia do presente.

Mara vai dormir. Natan não pode dormir. Precisa cuidar. Toda sua atenção está voltada para ele. As outras coisas só fazem sentido se o presente for entregue.

Mara está dormindo. Há dias que ela dorme mais cedo para repor as energias. As ocupações do emprego, da casa, academia, salão. Tantas coisas. É preciso dormir. Natan pode esperar. Por que será que ele não sossega e vem dormir? Bem que ele poderia ajudar com a arrumação da casa.

  • - Vem dormir Natan!

Natan não pode dormir. Está cuidando o presente. Já não sabe mais o que fazer. Quando fala do presente, Mara desdenha. Agora não . Estou cansada, preocupada. Outra hora... O presente precisa ser entregue. Está sufocando a vida de Natan. Sai da cama, olha o quintal. Vai jogar fora. Liga a TV, oferece-o à personagem da cena. Vai para a rua encontrar alguém que queira. Em algum lugar acha. Não dá para entender. Aquele presente não parece ter sido feito para ser entregue ali. Natan vai embora. Volta para casa.

Mara vai trabalhar, ganhar dinheiro necessário para as despesas de convênio médico, roupas novas, calçados, academia para ficar mais atraente, salão de beleza para ficar mais bonita. Tão dedicada ela é que fica irritada quando os filhos desobedecem suas orientações. Mal Natan acaba de chegar e Mara já vai relatando sua indignação com as coisas que não deram certo. Ela parece um leão. Quer tudo à sua maneira. Ela queria que a casa estivesse perfeita.

Natan fora trabalhar e acaba de chegar com o presente para ser entregue. Não pode entregar se Mara estiver reclamando. Mais tarde, quem sabe. Melhor seria não ter esse presente para entregar. O sábado vem e Natan vai se distrair, tomar sauna, beber cerveja. Depois carrega seu presente pelas ruas da cidade.

Mara volta do salão de beleza. A casa está arrumada. A roupa escolhida. Hoje está tudo bem. Mara agora é Maravilhosa. Não sei por que mas a paz apareceu. Já estou com saudades de Natan...

Natan se distrai com seu presente e acaba reencontrando aquele local que outrora achara. Nenhuma preocupação, nenhuma reclamação..., nem sono. Ali está alguém de braços abertos para receber o presente. Natan resiste. Não podia ser. Ainda resiste. Não resistea mais. Entrega o presente.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

CARPE DIEM


No princípio não havia nada. Nem o dia se fizera de todo, só alguns raios de luz se faziam anunciar vindos de muito além do horizonte e a Terra era sem forma e parecia vazia. Um galo cantou, outro respondeu enquanto as galinhas se remexiam num barulho quase silencioso. O dia estava sendo acordado e João ligou o rádio, como de costume, para ouvir moda sertaneja e as primeiras notícias do dia. Abriu a porta e ali estava o jardim e as árvores do conhecimento e da vida eterna. Reviu, em sua memória, todo o bem e todo o mal que lhe sobreviera em toda sua vida.
Abriu os braços como que tateando o infinito das abcissas na linha das coordenadas cartesianas depois procurou alcançar todos os pontos das ordenadas, ficando na ponta dos pés. Fora do plano viu um morcego seguindo atrasado para seu esconderijo. A claridade às vezes incomoda! No horizonte o sol pintava o céu de um colorido maravilhoso. E o dia lentamente trazia toda a bondade sobre a Terra.
Desceu ao jardim para observar as belezas que havia de cuidar e observou os frutos deliciosos e proibidos. No curral soltou o bezerro depois de tirar o leite da vaca mimosa, jogou o trato das galinhas e voltou para o café da manhã. O filho sonolento reclamando da mãe que o acordara muito cedo para a escola. Um dia normal se fazia enquanto a humanidade se perdia nas entranhas do capitalismo.
O sol ardido anunciava a seca do relacionamento depois que a cobra atiçou o desejo de consumo desenfreado. Experimenta, é bom e vai abrir os teus olhos para um mundo maravilhoso! A conta encerrada por falta de fundos e o cartão de crédito bloqueado. João foi expulso do jardim com a sentença do juiz determinando o leilão do sítio.
Carpe Diem! Em fadigas encontrou o sustento, enquanto a maldade do mundo se tornou conhecida. Errante andou, vendo que as filhas dos homens eram formosas, o coração corrompido, olhou para trás e viu a Torre de Babel. Enquanto a carne militava contra o espírito, ouviu outra vez aquela voz que vinha do além. Virou a esquina e viu o pregador que repetia: ‘Carpe Diem, aproveite o dia, faça tudo que o teu coração mandar, mas não te esqueça que de tudo terás que prestar contas um dia’.

Elairton Paulo Gehlen

sexta-feira, 3 de maio de 2019

A MORTE ................... DO ENTENDIMENTO

       He was a writer. Já não tinha mais as letras porque elas simplesmente não estavam. Muito barulho atrapalha o sonho. The dream is over! A morte lenta aprecia o vento frio e vai sendo anunciada a cada palavra em vão. O coração não sabe da morte e continua batendo infinitamente, jorrando sangue sobre a vida banhada na miséria do relacionamento.

He died. Não há dúvida. Morreu. Morte anunciada no primeiro dia de vida. Em comum. Nada em comum. O trator barulhento revira a terra e poda na raiz da planta que daria sementes de vida. Os outros já são mesmo mais importantes e não há espaço para o cultivo, as outras vidas estão florescendo e não devemos deixar de aprecia-las. As outras vidas sufocam a lavoura como uma infestação de ervas daninhas. A vida continua e ele respira as mazelas acumuladas desde sempre. Alimenta-se no monturo.   

O entendimento das palavras que não se entendem faz o desentendimento ser melhor, cheio de palavras, vazio de entendimento. Carroça vazia faz muito barulho. O forte trovão que ressoa de longe até longe e a certeza da escuridão tenebrosa que vem depois da luz. Raio de luz. Suddenly the lights went out. Letras que se arranjavam luminosas, frases que tinham sentido, personagens que se amavam. Suddenly. Para onde foram... Went out.
 
It’s me!

Elairton Paulo Gehlen

sexta-feira, 26 de abril de 2019

LAURA


Pensei já ter todas as informações que precisava para escrever um livro, pois o relato parecia ter terminado. Procurei por um título: A Visão de Laura, A Viagem, Segredos de Laura, mudança de fase... . Deixei a escolha do título para depois e iniciei o relato. Laura tinha me falado sobre sua visão e eu pensei que isso me bastava, mas Erico veio me dizer que o Flávio, estagiário homossexual do seu escritório, era uma lagarta porque seus pais criaram um filho e ele parece ter se transformado em uma espécie diferente, nascera menino mas crescera menina e se passasse por uma metamorfose, como as lagartas, quem sabe não seria então um homem em vez de mulher, homem/mulher, homossexual sei lá ele disse. - Isso é preconceito.- Não – ele disse – não há discriminação contra ele, nós somos bons amigos e ele é uma excelente pessoa. Temos uma boa política de inclusão e todos aprendemos a conviver com ele. Eu só estava pensando, se ele se tornou homossexual por causa da influência do meio onde viveu ou se já nasceu homossexual. De qualquer forma, o natural dele é ser homem.- Você já perguntou para ele? - Não, claro que não. São só conjecturas da minha cabeça.
- Se a tua vida fosse um jogo de vídeo game, em que fase você acha que estaria? - Como assim, um jogo de vídeo geme? - Um jogo, onde se muda de fase quando se cumpre determinadas tarefas. - Não tenho a menor ideia...
- Então veja, numa determinada fase da nossa vida, vamos recebendo informações que, logo que as recebemos ficam por algum tempo em nossa memória, chamada de consciente, que segundo estudiosos da psicologia tem em torno do dez por cento de todas as informações que acumulamos em nossa memória. Aos poucos, essas informações vão se deslocando para o subconsciente e se juntam a outros noventa por cento da memória. - Isso não é só ‘numa determinada fase’...
- Aí é que está o jogo e as mudanças de fase. As crianças precisam brincar para aprender a se relacionar com as outras crianças, com os adultos e com tudo que as cerca, mas quando deixam de ser crianças e se tornam adultas, precisam mudar de fase. - A criança precisa brincar para mudar de fase. – Disse Érico.
- Isso. Não temos ideia do que possa ter acontecido na infância de uma pessoa. Quando ela ‘muda de fase’ carrega no subconsciente todas as informações que recebeu. Quando passa pela adolescência, mesma coisa, juventude, mesma coisa e assim por diante. Que condições temos de julgar uma pessoa se ela nasceu homossexual ou se tornou depois em alguma fase da vida? - Isso vale para os ladrões, corruptos, criminosos, etc... - Vale?
Eu não queria entrar em questões específicas, então fui buscar uma cerveja e começamos a falar de futebol, meu time havia ganho o campeonato estadual, fiz um brinde, Érico brindou, meio sem graça porque o seu time do coração fora eliminado no primeiro jogo da fase de mata-mata. Enveredamos para a política e dali para a poesia que nos esperava há anos na biblioteca. Pablo Neruda, poeta chileno, ‘um dos maiores’, como disse Érico, ainda encanta muita gente sensível por aí. Tomei da prateleira um exemplar de ‘Confesso que vivi’, e me surpreendi ao saber que o engenheiro que só falava de metas conhecia tão bem esse poeta. - Um dos maiores! – Ele disse e tomou da prateleira um livro que ainda não tinha lido: ‘O Rio invisível’.
Começamos a ler as poesias e as crônicas escritas durante a adolescência e juventude do poeta. O tempo passou sem ser notado e o estoque de cerveja também. Às duas e meia da madrugada anunciei, com a voz arrastada, a última garrafa. Já não tínhamos olhos para as letras e há algum tempo compúnhamos versos que enchiam a sala de harmonia, de alegria, melancolia e tristeza num cantarolar sem fim, entre risos e lágrimas íamos falando do que pensávamos e também daquilo que as palavras vão produzindo por si próprias, sem a nossa vontade. - E eu nem sabia que era poeta! Era. O engenheiro percebera que havia poesia em cada segundo de sua vida. Pediu papel e caneta. Escreveu, literalmente, as mal traçadas linhas. - Não estou enxergando muito bem, mas acho que depois dessa brincadeira eu estou mudando de fase!

Elairton Paulo Gehlen

quarta-feira, 17 de abril de 2019

FELIZ PÁSCOA!


Parece que estamos iguais, ele disse olhando a imagem de Jesus pregado na cruz do calvário. Já estou virando uma caveira de tanto sofrimento. Os malfeitores estão por todo lados só que eles não estão pregados numa cruz. Vivem cada dia como se uma redoma de vidro os protegesse, e eu aqui doido para jogar uma pedra e despedaçar essa vidraça!
Parece que estamos iguais, disse olhando para a imagem de Jesus, loiro, olhos azuis, cabelos de salão de beleza, túnica lavada com homo total e amaciante, pele macia e olhar despreocupado sobrevoando os céus enquanto seus seguidores depositam fielmente o dízimo no gazofilácio.  É bênção, disse enquanto observava a pintura encomendada a peso de ouro a um renomado artista pagão.
Está chegando a Páscoa e eu estou chegando aos meus setenta anos como se fosse mesmo um cordeiro indo para o matadouro. Para trás ficaram os pastos verdes, cheios de gado gordo do patrão, por onde andei trabalhando duro e sem lá muitos direitos. Ganhei cada dia como se fosse o único, sem saber se teria o seguinte para ganhar.
 Páscoa é tempo de vitória! Repousando em verdes pastagens e me banhando em águas tranquilas. Olho em redor e em derredor e só me vejo como um leão rugindo. Eu é que dou as ordens. Não quero nem saber quem foi que cuidou do pasto e menos ainda quem fez aquele lago maravilhoso para eu passar dias festivos com meus amigos em águas límpidas.
Comi o pão que o diabo amassou, afinal ele é mesmo o príncipe deste mundo. Agora vou deixar esse sofrimento, já não tenho mais forças, deixei-as todas com o senhor deste lugar. Se juntar tudo que passei, talvez seja como ser pregado na cruz. Cada dia fui açoitado, cada dia o madeiro ficava mais pesado. Olho em volta e só vejo os ladrões que roubaram minhas energias. Agora estão sorteando minha força de trabalho e se regalando no lucro que produzi. Só me resta pensar na ressurreição.
Quem diria, dia após dia comendo do melhor desta terra. Da sabedoria fiz as coisas deste mundo para meu prazer, da miséria do povo fiz o templo e da ignorância minha riqueza material. Quisera eu poder viver mil anos e ainda assim não gastaria tudo que acumulei. Mas, agora parece ter chegado ao fim. Essa é a minha cruz, toda minha riqueza está sobre ela e eu a tenho que carregar para a morte. Quem dera pudesse ressuscitar!
 
Elairton Paulo Gehlen
        
FELIZ PÁSCOA!

sexta-feira, 12 de abril de 2019

DROGA


O pensamento atropela as ideias e mais uma... só mais uma baforada... o mundo se descortina apresentando todas as evidências. Telúrica, a vida passa a 1.600 quilômetros por hora para dar a volta ao dia apresentando o show da hipocrisia humana por toda a superfície.

A fumaça abafa o entendimento dos olhos. Espraia sobre as veias abertas da América Latina, sufoca o apetite de liberdade superficialmente tratado como democracia. É a magia do entendimento. A verdade e o baseado são partes da mesma coisa.

Enquanto o pulmão degenera, os olhos veem a chuva tóxica de verdades levando de enxurrada o entendimento. Conhecereis a verdade que aprisiona, que mata, que exclui. Conhecereis a verdade que liberta. A verdade gera lucro e o lucro é infinito porque a ganância não tem limites. O infinito do lucro vem do infinito da miséria. A verdade que liberta vem das veias abertas da América Latina.

Olhos se fecham, a boca se abre. Por que chamam a isso de droga? Se é o que eu quero e me faz bem, é droga? O sistema é uma droga! Alucina as pessoas, vicia, excita. Eu sou contra essa droga. A lei permite que o capitalista roube, todos os dias, os trabalhadores. Eu não roubei o meu baseado!

Droga!

 

Elairton Pulo Gehlen

sexta-feira, 5 de abril de 2019

CALENDÁRIO


Quando as ideias vem do calendário, eu fico olhando os dias esperando que após dezembro me venha todos os meses dos anos passados. Passo por cada aniversário depositado na folhinha e me lembro dos anos, muitos anos, jogados no lixo poucos minutos depois da eterna celebração de cada dia. As horas e os minutos estão de fora, são detalhes e detalhes não importam para uma vida civilizada onde as aparências são feitas de grandes realizações. Cada dia é uma realização e as manchetes são claríssimas para cada mês. Acabou? Acabou! Mês que vem tem mais e você deixou de existir.

Viro a folhinha e me vem o mês de abril: mentira! verdade! Nem vi a revolução passar porque nesse golpe eu tinha seis anos de idade. O orgulho do militar que perseguia comunistas era como um conto de fadas falando de um tempo bom que nunca chega. Esqueceram de jogar essa folhinha no lixo! Não fui buscar saudades onde havia remorsos, só via meu pai, cooptado, procurando prender que só queria ser livre. Agora escrevo um livro, mas não sei os detalhes, são como os minutos, não contam no calendário.

Achei na gaveta uma fotografia para a carteira de trabalho: 04/01/1978. Trabalhei quarenta anos para o capitalismo, agora me vem o sistema dizer que não posso mais ser sustentado por que sou um peso para a previdência. Não é possível que um aposentado sobreviva por tanto tempo! Se eu pudesse, não faria tudo de novo. Alimentei um sistema que quer me comer.

Não gosto das ideias que vem do calendário, elas trazem um horizonte cheio de muitas sombras que se projetam sobre a vida impedindo o futuro de aparecer.

 

Elairton Paulo Gehlen

terça-feira, 2 de abril de 2019

É DE MANHÃ


Faço planos para meu dia
Faço anos a cada dia
Rompo em tristezas e alegrias
À noite, finjo ter sido feliz o meu dia!

Tenho uma nova tarefa a fazer
Tenho muitos motivos para não fazer
Tenho muitos motivos para viver
E muitos outros para não viver!

Meu livro está aberto
Meu personagem espera
Por dezenas de primaveras
Que o final seja feliz!

É de manhã
Faço planos incertos
No meio da história
Uma tragédia infeliz.

Elairton Paulo Gehlen




CHIFRE EM CABEÇA DE CAVALO. EXISTE? EXISTE!

  Já botei no título o que poderia ser uma mentira, a ciência diz que cavalos não tem chifre, nem as éguas, mas na fazenda do Romero, que ...