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terça-feira, 29 de outubro de 2024

VEM


Vem ficar comigo

Nem que seja por um dia

Pra me fazer viver

 

Mas vem com saudades

Que eu te quero inteira

E boa como um dia de querer

 

E traz junto contigo

Aquele aroma gostoso do trigo

E o fermento que me faz crescer

 

Traz também o sonho

De viver comigo eternamente

E o impossível que dura para sempre

 

Então vem

E deixe eu te querer

Até que o impossível seja você!





sábado, 26 de outubro de 2024

A FESTA

 



Tinha um punhado de gente andando de um lado para outro e do outro para um, e era um punhado bem grande de gente, nem dava para contar, o Adriano pegou o celular e filmou aquelas gentes todas que estavam lá, indo e vindo e indo de novo, e tinha música e um montão de barracas vendendo de um tudo que se pode comprar em barracas que se enfileiram numa rua e ao redor da praça. Adriano continuou filmando porque era bem curioso ver tanta gente se agitando num sábado à noite, mas ele não sabia o que era, daí perguntou para um sujeito que tinha os cabelos bem compridos, trançados, estilo rastafári, usava calças bem largas, estilo oversized e uma camiseta, também de um número maior que o “normal”, destaquei porque agora já nem sei mais o que é normal, tantas pessoas pareciam usar camisetas e calças maiores que o número que até então me parecia normal que parece que o normal mudou. O de cabelos rastafári olhou meio desconfiado para Adriano e mostrou a enorme faixa sobre o palco, que dizia: FESTOP-FESTIVAL DE TODOS OS POVOS! Não falou nada. Nem foi preciso!

Adriano escutou um falatório bem alto do outro lado da praça e foi ver o que era, no caminho aquela gentarada toda se cruzando e era gente de todo tipo, uns branquelos como ele, outros negros, mulatos mestiços, índios, sei lá como se classifica os demais que estavam por lá, andando pela praça dava bem para entender a faixa sobre o palco. No meio da praça tinha uma fonte de água e do outro lado uma aglomeração de gente para ver uns escritores lançando livros. Não, eles não estavam atirando livros para cima, estavam dizendo que escreveram novos livros e que iam vende-los para quem quisesse comprar. Não demorou e eles já estavam cada um numa mesa autografando seus livros para quem quisesse adquirir. É bem chique ter um livro autografado pelo autor! Adriano saiu de lá com dois, um do Jaiminho e outro da Ana Cláudia Brida. Duas vezes chique!

No palco principal, uma cantora bonitona, toda vestida de preto, acompanhada por um guitarrista, um contrabaixista e um baterista, todos de preto, contava uma linda canção em guarani. Que voz! Adriano quis saber de onde ela era, talvez de Assunção, no Paraguai, ou de algum outro grande centro urbano. Mas não. Ela é de Dourados! Que talento! E é daqui! O nome dela é Dami Baz. Por esse mesmo palco passaram inúmeras apresentações, música, dança, contadores de história, ao lado da Tenda da Literatura também se apresentavam outros artistas. Parecia haver uma disputa entre o palco principal e a Tenda da Literatura para ver quem apresentava os melhores talentos artísticos.

O FESTOP, eu acho que é o evento cultural mais importante de Dourados, talvez até de Mato Grosso do Sul, são três dias de uma intensa programação congregando as mais diversas manifestações culturais da nossa cidade, trazendo para o mesmo local desde a música clássica trabalhada na Universidade até o funk, passando por pop rock e a música popular, muito bem cantada pelo jovem cantor João Martinelli, que ainda beira os dezesseis anos de idade.

O Festival de Todos os Povos está no calendário oficial de eventos da cidade de Dourados e de lá não deve sair nunca mais!

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

YOM KIPPUR

 



“As coisas sempre andam bem quando tudo está bem. Cara, essa foi de uma profundidade filosófica extraordinária! Eu amo filosofia e detesto adaptações, agora mesmo estou lendo um texto adaptado do livro Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Comprei pensando ser o original, mas quando chegou e os meus olhos brilharam e estava tudo bem, daí prestei atenção na capa e lá dizia “Texto Adaptado”, mesmo assim comecei a ler o livro e vou ler até o final, com uma sofrência igual ouvir música sertaneja universitária, esse tal de sertanojo, que é uma adaptação horrível da verdadeira e bela música sertaneja”.

“O Yom Kippur já passou”, disse o judeuzinho que viajava no carro comigo. Eu percebi que um carro diferente tinha passado em alta velocidade, só não entendi a observação do judeuzinho que ia de carona comigo. “Tá”, respondi e continuei andando a 90 quilômetros por hora na minha saveiro. “O Yom Kippur, é importante se você quiser ficar sempre bem”, insistiu o judeu. Olhei de soslaio, esse judeuzinho só podia estar me gozando. “Não estou disputando corrida com esse ianki não sei o quê. De saveiro vamos chegar ao nosso destino do mesmo jeito, não precisamos de um carro como esse ianki...” “Yom Kippur, é o dia do perdão, já passou, mas você ainda pode perdoar, senão Deus vai apagar o teu nome do Livro da Vida”. “De quê eu deveria pedir perdão?”

O judeuzinho que me perdoe, antes que seja tarde, chama-lo judeuzinho, mas ele é judeu mesmo, o nome dele é Yosef. Eu o chamo judeuzinho devido sua origem e a baixa estatura que não passa de 1,55 metro de altura, mas agora vou apenas chama-lo pelo nome, Yosef, parece que ele sabe a Torá de cor, isso às vezes atrapalha nossa conversação, pois eu sou cristão não praticante e pouco entendo da cultura judaica. Se há um trabalho a ser realizado na sexta-feira e se estende para além do pôr-do-Sol, o judeuzinho, quero dizer, Yosef, para imediatamente e não há quem o faça concluir o trabalho. “Por nada deste mundo. Shabat!”, é sempre a resposta. “Eu sou crente, nós guardamos o domingo” é minha argumentação. “Então peça perdão por não cumprir o quarto mandamento”.

Para que as coisas fiquem bem, eu evito confrontar a Torá, não adianta, é como mastigar pedra brita, você nunca vai conseguir tritura-la para engolir. Quer ficar bem com o Yosef, então é melhor guardar o quarto mandamento. “Mas, o que esse Yomki...?” “Yom kippur. Você disse: As coisas sempre andam bem quando tudo está bem. Para tudo fiar bem, tem que perdoar, até os textos adaptados e os que cantam sertanojo”. “Tá bom” eu disse “eu perdoo os textos adaptados e os que cantam sertanojo, só não me obrigue a ouvi-los”. Pronto, dei o assunto por encerrado e liguei uma música do Pink Floyd no blue tooth do rádio do carro.

Meia hora mais tarde parei a saveiro para abastecer e fomos tomar café na lanchonete do posto de gasolina. Yosef fez uma reverência ao Deus da Torá e comeu um pastel de queijo, eu comi um pão de queijo. “O queijo nos unifica” ele disse e propôs um brinde a isso. Rimos e tomamos nosso café com leite, que também nos unificava, e saímos conversando alegremente. Do lado de fora da lanchonete um casal fazia seus ajustes de alguma conta sentimental que não fechava. “Me desculpa, isso não vai mais acontecer” dizia o marido, ou namorido, seja lá o que for. A mulher ainda argumentava raivosa quando entramos na saveiro e partimos, havia trabalho a fazer e era sexta-feira, tinha que terminar antes do pô-do-Sol.

Acho que o jud... Yosef queria falar algo sobre a discussão do casal do pátio da lanchonete do posto. Acho que eu não dei muito espaço para ele falar, primeiro aumentei o volume da música e disse que amo Pink Floyd, depois reclamei dos livros adaptados e do sertanojo e finalmente lembrei que deveríamos chegar logo porque era sexta-feira e o serviço tinha que ser concluído antes do pôr-do-sol e que o tempo estava formando para chuva e isso poderia atrapalhar. “Não vai atrapalhar, HaShem é poderoso e cuida de tudo para os que são fiéis” Tenho que reconhecer, Yosef é mesmo um homem fiel!

Às dez e meia estacionei a saveiro no canteiro de obras e fomos direto ao escritório onde um engenheiro fazia a programação do sistema de automação. A obra da construção dos silos estava praticamente concluída, agora era hora de verificar se todo o sistema de automatização estava funcionando. Eu não entendo nada de automação de silos, mas vi Yosef e o engenheiro de programação discutindo sobre o tempo, algumas nuvens bem escuras ameaçavam a conclusão das obras e o pedreiro tinha cometido um erro que estava atrapalhando o funcionamento de uma correia de transmissão. O engenheiro esbravejava raivoso, Yosef, calmamente pedia que ele o perdoasse.       “HaShen está do nosso lado”. “É, mas se a obra atrasar e passar das seis da tarde você não trabalha e fica tudo para a semana que vem!” Dito isso, o engenheiro se desculpou e Yosef o perdoou, assim Deus não apagou seu nome do livro da vida.

Às seis da tarde a obra foi dada por finalizada, enquanto toda a equipe se preparava para um churrasco e muita cerveja, Yosef retirado para um espaço distante, iniciava suas orações. Não adiantaram os insistentes convites, já era Shabat e o judeuzinho não iria festejar. Tentei convence-lo de que ali, naquele lugar ermo, talvez o Shabat pudesse iniciar no dia seguinte, mas ele não cedeu e ainda me chamou a atenção perguntando se eu agora já não ligava de ouvir sertanojo. É, sertanojo rolava solto e o churrasco era servido em porções e a cerveja estava bem gelada e era infinita, assim dá para perdoar facilmente o sertanojo. Tentei argumentar que o proprietário da fazenda, que era também um grande empresário em Ponta Porã, iria chegar mais tarde para confraternizar pela obra concluída, ao que Yosef me respondeu: “Shabat Shalon”.

Eram nove e meia da noite quando foi anunciado que Hussein estaria chegando. “Hussein?” Perguntou Yosef, desconfiado. O mestre de obras, intrigado com a pergunta fez questão de explicar que Hussein provavelmente seria seu compatriota, já que ele viera da Palestina há anos e fixara residência em Ponta Porã onde abrira lojas e ficara rico, muito rico! “Palestina” disse Yosef e saiu para longe de todos. Logo em seguida chegou Hussein acompanhado de quatro seguranças armados, cumprimentou a todos e agradeceu pelo empenho de cada um, fez de conta que comeu e até pegou um copo de cerveja e bebeu. Passado algum tempo, despediu-se de todos e rumou com seus capangas para o carro blindado, antes que entrasse no carro ouviu-se um barulho, algo tinha sido atirado contra o carro de Hussein, era uma pedra, uma enorme pedra, a maior que um ser humano muito raivoso seria capaz de atirar de uma distância de dois metros. Quem mais poderia ser, senão ele, o judeuzinho Yosef. “Ele é palestino, é terrorista” e atirou outra pedra certeira na cabeça de Hussein, abriu uma cratera atrás da orelha do empresário.

Uma semana depois fui visitar Yosef no presídio estadual, ele não estava abatido, achava que tinha comprido seu dever religioso de eliminar um incircunciso que ocupava a terra prometida. Antes de sair, olhei com ar compreensivo e disse: “Yom Kippur”.

Agora penso: Faz algum sentido?

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

AS RUAS DE DOURDOS

 



Dourados é considerada uma cidade modelo por ter uma excelente qualidade de vida, infraestrutura completa e uma vasta oferta de lazer e entretenimento. Essa é a visão geral criada por IA, a tal da inteligência artificial. Essa visão da IA é bem animadora porque eu moro em Dourados há quase quarenta anos e ainda não tinha percebido que era isso tudo! De qualquer forma, fiquei feliz de saber que eu moro há tanto tempo numa cidade tão boa, fiquei feliz e fui curtir todas as possibilidades que a cidade oferece, segundo a IA.

Logo de cara fui para a avenida mais importante da cidade, a Marcelino Pires. Dizem que esse Marcelino teria doado partes de suas terras para a fundação da cidade de Dourados, lá pelos idos de mil e novecentos. Dizem também que ele não doou coisíssima nenhuma, porque as terras que ele teria ocupado eram públicas, as tais terras devolutas, e por tanto pertenciam ao estado que, aí sim, pelo Decreto nº 402, de 3 de setembro de 1915, fez a reserva das terras públicas para a criação do patrimônio de Dourados, foram 3.600 hectares, segundo o historiador Carlos M. Amarilha, publicadas no jornal Campo Grande News.

A avenida Marcelino Pires foi uma das primeiras ruas que conheci quando vim para Dourados nos idos de 1.985. É uma bela avenida! Quando desci do ônibus, na rodoviária, e meus pés pisaram pela primeira vez na Marcelino, meus sonhos encheram esse lugar com os mais lindos desejos de uma vida nova, próspera e feliz! Neste tempo, a cidade já era Modelo, reconhecida pelo Governador de Mato Grosso, Fernando Correia da Costa, através da Portaria nº 314, de 27 de dezembro de 1.965. Vinte anos depois, eu pisava este chão para estudar na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e trabalhar para sobreviver e quem sabe até viver um pouco se o dinheiro fosse suficiente.

A avenida Marcelino Pires corta a cidade de Oeste a Leste, dividindo-a praticamente ao meio. A metade ao Norte é mais aburguesada, onde se encontram conjuntos residenciais com casas maiores e mais luxuosas, cercadas por muros altíssimos e cheias de câmeras de segurança e empresas de vigilância atuando vinte e quatro horas por dia com medo de que os residentes em outros bairros lhes possas causar algum mal enquanto nadam em suas piscinas olímpicas ou praticam esportes ou, ainda, fazem suas festas em grande estilo.

No lado Sul, tradicionalmente se localizam bairros mais populares e algumas áreas de ocupação e, de vez em quando, algum princípio de favelização, um horror para os do Norte, uma ponta de esperança para os do Sul. Mas, uma avenida não é um muro. Por mais que se queira construir muros ideológicos e sociais, não se pode fazer leis que impeçam a ocupação geográfica urbana, assim, já não se pode afirmar que as classes sociais estão dividas pela Marcelino Pires. Antes que esta se prolongasse até o rodovia BR 163, bairros populares já tinham atravessado a linha imaginária da divisão e, hoje, a burguesia luta para se esconder atrás de muros e cercas elétricas, o pobres já se aproximam demasiadamente dos condomínios!

Deixei a Avenida e fui até onde onde ela termina, ou começa, e adentrei num enorme parque semiabandonado pelo poder público. É o Parque Antenor Martins. O Parque homenageia o pecuarista do mesmo nome, que foi também vereador por três mandatos. Um homem de posses, representante da burguesia douradense. Curiosamente (?) a burguesia que esse nome representa não frequenta o Parque. O local é apreciado por pessoas da classe trabalhadora que residem em bairros populares próximos. Andei pela borda do belo lago, por entre as árvores que sombreiam parte do gramado e fui me refrescar na pequena reserva de mata num canto do Parque, próximo de um posto de polícia da guarda municipal.

Andando tão silenciosamente quanto é possível numa trilha, entre árvores e arbustos, ouvi uma conversa animada. Um grupo de pessoas pareciam estar se divertindo, eu reconheci algumas das vozes, eram pessoas amigas, aproximei-me e eles, ao me verem, nem tentaram disfarçar o que faziam, estavam fumando tranquilamente seu cigarro de maconha. Me chamaram para a roda e perguntaram se eu queria ‘dar um tapa”... Eu... disse... que sim.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

DE CONCHINHA

 



Eram cinco horas da manhã e o dia mal dava sinal que clareava pelas frestas da veneziana que protegia o quarto de amanhecer junto com o dia. Joana mexeu levemente o rosto, mas não abriu os olhos, não queria abrir, queria continuar dormindo, acordara de um sonho e queria continuar sonhando, era um sonho bom. Como qualquer sonho, esse também se parecia com um filme que estamos assistindo, mas do qual também somos atores em cena. Joana estava numa festa, dançando e bebendo, a música começou a tocar lenta e um homem que já a observava, veio dançar com ela, ele era lindo, falava coisas agradáveis e, do nada, lhe beijou na boca. Delícia de beijo!! De repente estava em casa e o cara da dança lhe falava coisas familiares, era o mesmo cara da festa, mas era o seu marido, e lhe dava flores e ela o beijou como mesmo beijo da festa e, então fizeram sua festinha particular, beberam cerveja e estavam alegres, andavam para o quarto deixando peças de roupa pelo corredor. Quando ela acordou e tomou consciência de estava mesmo no quarto e com pouquíssimas peças de roupa, o marido ainda dormia. Talvez dormia.

Joana passou a mão levemente pelo corpo e sentiu a presença da camisola de seda, sem abrir os olhos tirou-a lentamente pensando em como seria o sonho se não tivesse acordado. Talvez continuasse o sonho se o marido acordasse e colocasse sua perna esquerda entre a suas como ele gosta de fazer, encostando o peito nas suas costas e passando a mão por baixo do seu braço... Joana estava excitada. Quis acordar o marido, mas não queria mudar de posição, passou a mão por detrás de si para tocar levemente o marido, não o alcançou. Mediu a distância em sua frente, um braço, então estava no meio da cama e um braço para trás... não alcançou o marido? Esticou mais um pouco o braço e alcançou a lateral da cama. Então abriu os olhos sobressaltada.

- Marcelo? – Chamou Joana quase num susto.

“Deve ter ido ao banheiro”, pensou. “É isso que dá tomar cerveja antes de dormir, depois da primeira não sabe a conta da última”. Joana estava agora com os olhos bem abertos, sem nenhuma chance de o sonho continuar, “talvez ele volte do banheiro animado...”. Voltou a se deitar de lado, deixou a perna esquerda um pouco afastada para quando o marido voltar já ter o espaço para a sua perna entre as dela. Esperou assim por um tempo, mas nada dele aparecer. Nada, nem um barulho sequer que viesse do banheiro. Nada. Joana sentiu vontade de se virar na cama, mas queria que o marido a encontrasse ‘nessa’ posição, ele não resistiria e o sonho teria continuidade! Mas ele não vinha! Do banheiro não vinha nenhum ruído. “Será que desmaiou?”

Sentou na cama e olhou para o relógio no celular, cinco e meia. Já não adiantaria voltar a se deitar de lado com a perna esquerda um pouco afastada, angustiada como estava, mesmo que Marcelo voltasse para o quarto cantando Roberto Carlos, não adiantaria, a ansiedade acomodara os hormônios, cada um em seu berço. O que Marcelo estaria fazendo no banheiro até esta hora? Foi lá para ver, o banheiro estava vazio, ninguém por lá. Decerto estaria na cozinha. Joana olhou-se no espelho do banheiro e se achou muito bonita! Ensaiou uns passos de dança sensual e puxou levemente a calcinha para baixo como se fizesse um strip, os hormônios acordaram e saltaram do berço num pulo só, olhou em volta, estava só. Voltou ao quarto e vestiu uma calça de abrigo rosa e uma blusa de malha fria, pôs os hormônios de volta no berço e foi até a cozinha.

Os passos ligeiros e a pisada firme denunciavam o mau humor! A luz apagada indicava que não havia ninguém preparando o café da manhã.

- Marcelo? – Agora Joana chamava em voz alta.

Olhou o relógio da parede e viu os ponteiros marcarem quinze para as seis. O dia já estava claro. Dentro de casa ele não estava, então só podia estar no quintal. A brisa fresca da manhã apanhou Joana de frente, ela sentiu aquele ar puro com cheiro das plantas. Como é bom morar numa casa com quintal grande! Os pés de acerola cheios de suas pequenas flores, as jabuticabas carregadas de frutos maduros, delícia! A goiabeira esperando pelo fim do ano e as bananeiras dando cacho. Uma pequena horta produzindo verduras para as saladas e até umas galinhas proibidas já ciscavam o quintal, tudo cuidado pelo Josimar, trabalhador que há dois anos toma conta do quintal para Joana. De agora em diante quem vai mandar nele será o Marcelo. Marcelo? Cadê o Marcelo?

- Marcelo? – Joana perguntou, mas ninguém respondeu.

Joana sentiu fome, voltou à cozinha para o desjejum. Esquentou o leite, juntou uma colherinha de café instantâneo e tomou comendo duas fatias de pão integral com geleia de amora e uma fatia de queijo prato, comeu, também, uma banana e uma maçã e foi escovar os dentes. Quando entrou no banheiro foi olhar-se no espelho e lembrou da cena de streep que ensaiara há pouco. Não resistiu e foi tirando as roupas ao som de uma música imaginária, primeiro tirou a blusa de malha fria, depois a calça de abrigo, passou a mão suavemente pelo corpo e ameaçou tirar a calcinha. Joana sentiu-se muito atraente, os hormônios estavam outra vez acordadíssimos! Daí pensou em Marcelo, por que ele não estava ali? O telefone chamou, Joana saiu em disparada para atender. Era Marcelo.

- Marcelo? Onde você está? – A voz estava aflita!

- Bom dia meu amor! Como assim, onde você está? Estou em casa, acabei de acordar.

- Em casa, como assim, eu te procurei por todo canto.

- Estou em casa, na minha casa. Bom, minha, mas só até hoje. Logo mais à tarde, quando nos casarmos, então a minha casa será aí, na tua casa e a tua casa, então, será a nossa casa. Daí você não precisará mais me procurar, pois eu vou te acordar cada dia daquele jeito que te acordei antes de ontem, de conchinha, com a minha perna entre as tuas e minha mão passeando pelo teu corpo. Ah, não vejo a hora!

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

TAMBÉM SOU CANDIDATO

 



A eleição já passou, mas eu ainda estou em campanha.

Eleição é quase como uma prova de vestibular numa universidade pública, só que às avessas. Para entrar na universidade, pública, claro, o candidato tem que estudar muito e fazer a prova sozinho, deixando os professores do cursinho ou do ensino médio de fora. No processo eleitoral tudo se dá ao inverso, as questões das provas são geralmente respondidas pelos assessores e, candidatos incompetentes e sem nenhum mérito acabam sendo aprovados e ocupam vagas que deveriam ser ocupadas por pessoas mais competentes e comprometidas com a sociedade. Mais ou menos como nos cursos de Educação à Distância das faculdades privadas, onde as provas são aplicadas, também à distância, sem nenhum controle da instituição e o aluno é sempre aprovado porque as vagas são infinitas e o maior interesse da instituição é o valor da mensalidade que o aluno vai pagar a cada mês do curso, igualzinho os candidatos que estão comprometidos em receber, a cada mês do mandato, o salário destinado ao cargo eletivo. Mas, só alguns passam na prova das urnas.

Eu já fui candidato a muitas coisas: no movimento estudantil, associação de moradores, sindicato, produtores rurais da agricultura familiar e até a vice-prefeito da minha cidade, só esta última não fui eleito, a única em que seria remunerado! Acho isso uma grande injustiça. Me candidatei a marido algumas vezes, mas aí só deu despesas, e grande! Ultimamente ando me candidatando a ganhador da mega-sena, é uma eleição difícil, eu sei, mas se ganhar, ah, se ganhar, até para marido me candidato outra vez, mesmo sabendo do prejuízo. Nem ligo!

Sábado joguei na mega-sena, domingo votei para prefeito e vereador, não ganhei em nenhum dos pleitos, nem eu nem meus candidatos. Dizem por aí que se apostar muito dinheiro na mega-sena a probabilidade de ganhar aumenta, dizem também que para ganhar uma eleição se gasta muito dinheiro, às vezes mais até do que o valor total do salário durante o mandato. Sei lá, é o que dizem. Pela estrutura de algumas campanhas, eu até acredito neste dito, cada um que se explique. Ontem me disseram que era dinheiro do fundo eleitoral. Então a dinheirama que gastam nas campanhas é meu também? Pera aí, se parte desse dinheiro é meu, então que seja gasto com os candidatos que eu apoio. Que história é essa de pegar dinheiro do orçamento público para fazer campanha contra o público! Será que tem dinheiro público para campanha de candidato a marido? Depois é só se inscreve no Bolsa Família...

Administrar uma cidade e quase como administrar uma família, é preciso cuidar para que todos sejam atendidos em suas necessidades e ela, a cidade, é como uma esposa, gosta de estar bonita e receber o carinho do administrador, em suma, é bem um casamento. E família é mesmo um negócio complicado, tem gente que não dá conta de administrar a família e se candidata a administrar a cidade! Quando ganha a eleição e toma posse faz festa e começa a Lua de Mel, mas quando os problemas surgem, logo dá um jeito de juntar os amigos correligionários e começa a pensar no divórcio, é preciso organizar outro relacionamento, outro cargo, deputado, talvez, daí o dinheiro que seria para a saúde, educação e segurança vai para a jogatina. Milhões de reais do dinheiro público são gastos na aposta de uma nova eleição. Isso é traição?

Me disseram que aqui em Dourados isso não acontece. Eu acreditei, mas que seja a última vez! Agora vou me dedicar a minha candidatura, eu quero ser marido, mas primeiro vou ganhar na mega-sena.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

A VIDA NÃO É GENTIL

 



Algumas pessoas são extremamente gentis. O Padre Júlio Lancelotti parece ser uma dessas. Pelo seu trabalho diário em atenção às pessoas que tem necessidades muitas pelas ruas e avenidas de São Paulo, dá para se dizer que Padre Júlio é um sério candidato à Santo da Igreja Católica. Sua gentileza produz dezenas de milagres todos os dias. Gentileza é o produto mais valioso que alguém pode dar a um ser humano perambulando pelas ruas, com fome, com sede, vestindo trapos, cabelos e barba do ano passado e cheirando a cachorro molhado. Em determinado período da minha vida eu já estive bem perto disso. Nessa hora, quando alguém trata um ser desses, quase desumano, com alguma dignidade, isso parece um ato revolucionário. E é. Pessoas fedendo e sem nenhuma capacidade de alimentar o sistema capitalistas não devem ser tratadas com dignidade, elas atrapalham a vida de quem produz riquezas materiais. ....??.... .

Mulheres boas são as perfumadas, sorriso pronto nos lábios pintados de batom e rosto enfeitado por cabelos alisados na chapinha, tratados com shampoo e condicionar, sem contar a pele bem hidratada e a lipoaspiração em algumas partes do corpo. E a gentileza? Mulheres tem que ser bonitas, os homens é que tem que ser gentis! Em geral não são. E quanto mais poderosos, mais se tornam uns brutamontes. É bíblico que os seres humanos nascem maus, e continuam sendo maus porque o meio onde vivem é mau, o sistema social é excludente e concentrador. Ficamos maravilhados com o capitalismo Norte Americano, onde o país mais rico do mundo patrocina o horror que está sendo cometido por Israel contra os Palestinos. Quem se importa? O Estado Judeu investe aproximadamente US$ 270 milhões, isso mesmo, de dólares, o equivalente a R$ 1,3 bilhão, por dia na guerra contra um povo que nem sequer um país é. Se, gentilmente, investisse metade disso, ou ainda mentos, em projetos de desenvolvimento daquele povo, jamais teria que fazer guerra nesse local.

As guerras são a vitrine do sistema, juntos Israel e Rússia gastam o equivalente a aproximadamente 8 bilhões de reais por dia nas guerras atuais. Dinheirama que vai para a indústria bélica, me faça a gentileza de entender que isso não tem nada a ver com gentileza! Tem a ver com gentileza o pãozinho que o Padre Júlio distribui nas ruas em São Paulo, mas isso não dá lucro para a indústria de armas e nem poder aos que se acham os donos do mundo. Padre Júlio é um pouco daquilo que gostaríamos de ser, mas não somos. Somos muito mais os brutos que jogam bomba em cima das pessoas pobres, das mulheres e crianças, para alimentar o sistema que mata e exclui.

Estou escrevendo este texto com raiva, então faça a gentileza de me perdoar, estou com raiva de ver a instituição religiosa que canoniza pessoas gentis se transformarem em defensoras de uma elite estúpida que odeia as pessoas que mais precisam de gentileza. Estou com raiva de ver instituições religiosas que dizem amar o salvador dos mais pobres e das viúvas, pedindo, exigindo o dízimo de quem não tem pão para comer e construindo templos luxuosos onde Deus não habita, pois Deus não habita em santuários feitos por mãos humanas. (At 17-24). Estou com raiva de ver um povo que se diz povo eleito matar milhares de homens, mulheres e crianças inocentes e ainda ter coragem de se prostrar diante de um muro e lamentar a maldade humana com o texto sagrado nas mãos. Estou com raiva, muita raiva de saber que as igrejas estão cheiras de pessoas gananciosas que dizimam povos originários e no domingo batem no peito dizendo: Minha culpa, minha máxima culpa, mas na segunda-feira continuam cultivando o ódio. Eu estou com muita raiva desse sistema que dá mais valor ao capital que às pessoas e à natureza de Deus. Eu estou mesmo com muita raiva!

Gentileza é uma pequena ilha num oceano de estupidez. Quero fazer morada nessa ilha, plantar canteiros de desejos, alimentar bichinhos de estimação, cultivar o fruto proibido e morrer de amor pela pessoa que se disponha a ser a mais próxima. Estou de malas prontas!

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

AS PESSOAS E AS ABELHAS (Conto)

 



Marisvaldo é um sitiante e tem uma propriedade rural no distrito de Vila Vargas, próximo do Córrego que passa pelo distrito, onde planta uma roça de mandioca que é o principal produto de comercialização. Diariamente ele arranca os pés de mandioca e leva para casa na carreta do trator Massey Ferguson 50X que comprou há três anos quando o preço da mandioca estava elevado e a safra foi muito boa, juntou o lucro da safra com as economias de anos anteriores e realizou o sonho de comprar o trator, para o que ainda faltou, fez um financiamento em 24 parcelas no Banco do Brasil. Que maravilha! Agora o trabalho está mais fácil, mais ágil e Marisvaldo  não precisa contratar trabalhadores para tantas diárias como antes.

Sentado ao volante do seu Massey Ferguson 50X, Marisvaldo vai alegremente para casa, onde Dona Marilei o espera na sombra do pé de manga para lavar as mandiocas, depois descascar, daí lavar outra vez e separar em pacotes de um quilo cada. É serviço para o dia todo. Vários dias, até o congelador se encher e Marisvaldo levar para os mercados onde os vende por R$ 3,50 o quilo, o mercado vende ao consumidor por R$ 6,50 sem ter o trabalho que Marisvaldo teve de arar a terra, plantar, capinar, colher, descascar, embalar, congelar e ainda transportar até o mercado.

- Se os humanos fossem como as abelhas, não seria desse jeito – disse Marisvaldo, no outro dia, para Dona Marilei, enquanto tomavam chimarrão antes de ir para a cidade entregar as mercadorias.

- Abelhas não plantam mandioca – respondeu Marilei, rindo e sem entender o que o marido queria dizer.

- O mercado, - disse Marisvaldo - depois que apareceu essa palavra, os animais humanos se diferenciaram dos outros animais, e para pior. Quem dera fôssemos como os outros animais, ou como as abelhas.

- O que tem as abelhas? – Perguntou Marilei ocupada com a leiteira que já fervia o leite.

O que tem as abelhas? A resposta era tão óbvia que Marisvaldo até se irritou. Será que a mulher não é capaz de pensar? Basta observar as abelhas! Enquanto a mulher esperava por uma resposta, o marido puxou do bolso uma palha de milho, encheu com o fumo cortado, enrolou a palha sobre o fumo, pôs na boca e acendeu com uma brasa do fogão, deu uma baforada bem longa e olhou para a fumaça que se ia por cima das panelas. Estava mais calmo, até sorriu.

- As abelhas, elas são insetos voadores que produzem mel com o alimento que elas tiram das flores...

- A água está quente, - observou Marilei - puxa a chaleira mais para o canto.

Marilei levantou-se da cadeira e foi coar o café, a leiteira já tinha fervido o leite e estava na beira da chapa do fogão para não derramar por cima.

- As abelhas, Mari, você me perguntou sobre as abelhas...

- Eu sei, elas fazem mel, aqui na mesa tem um pote do que você colheu em junho, ainda tem mais lá dentro, na dispensa.

- É uma metáfora, Mari. As abelhas, elas têm uma filosofia de vida melhor que os humanos.

- Filosofia? Plantar mandioca para vender e comprar coisas boas para nós e você me agradar que eu dou par você, isso é filosofia, isso é a vida!

- Antropização...

- Também não precisava me xingar, eu estava brincando, eu gosto de dar para você porque você sempre me agrada, quando vai no mercado e vende as mandiocas, sempre traz um presente para mim. Vamos tomar café que tem muita mandioca para vender.

Marilei ficou em casa e aproveitou que o marido foi para a cidade e ia demorar por lá e fez uma limpeza geral, botou roupas na máquina, limpou o banheiro e passou pano por todos os cômodos. Embaixo da cama encontrou um livro que Marisvaldo estava lendo: Introdução à Sociologia. “Esse homem ainda vai endoidecer com esses livros que anda lendo, agora deu de falar coisas que não entendo. Filosofia! E aquele palavrão, antro... não sei o quê”. Abriu o livro e ficou um tempão olhando as palavras diferentes que estavam lá. Elite, Capitalismo, Instituição, Sociedade Estamental, Alteridade, Antropologia... “Antropologia? Foi essa a palavra que o Mari me falou?” Sentou-se na cama e foi ver significado de antropologia. Leu, releu, mas não achou o que queria achar. “Que que isso tem a ver com as abelhas?

- Oi Mari, já estou de volta. Eu trouxe um presente para te agradar!

- O que tem a ver Antropologia com as abelhas?

- Antropização, a palavra é antropização, que é como o ser humano se relaciona com o meio onde vive... Deixa prá lá, depois, mais tarde, eu te agrado com o presente.

sábado, 21 de setembro de 2024

A CADEIRA

 



A cadeira é um objeto muito útil para se descansar, ou cansar quando se trabalha sentado por um longo período de tempo. Serve também para pendurar bolsas, casacos ou blusas e até subir em cima para alcançar móveis mais altos, como armários ou guarda-roupas. Outra utilidade, descoberta recentemente, em São Paulo, é que pode ser usada para esculhambar com um candidato a prefeito provocador.

A cadeira também serve para um bom bate-papo, e é disso que eu gosto, uma cadeira aqui outra ali e outra acolá e a conversa rolando entre elas fazendo amarras que só a vida sabe dar. Nada como uma cuia de chimarrão cheia de assuntos passando de mão em mão. Duas cadeiras na varanda podem suscitar segredos que não devem ir além do telhado, especialmente se rolar uma cervejinha entre o bem e o mal, o profano costuma vencer o divino nessas horas, mas é quase divino quando o chão empurra as cadeiras para unir os corpos!

Mas, se a cadeira está vazia é porque alguém a deixou lá. Alguém que se foi, talvez para nunca mais voltar, talvez para voltar algum dia com saudades, talvez para pedir perdão, talvez para tomar satisfação, talvez para se vingar. Talvez, só para tomar chimarrão. Uma cerveja. Talvez...

A cadeira da candidata Marina Helena, foi arremessada pelo candidato Datena contra o candidato Marçal. A cadeira poderia ter ficado ali e o Datena ido embora. Se o Marçal fosse mais coerente, nada teria acontecido e cada um teria sua cadeira em paz. Eu tenho a minha cadeira, mas tem uma cadeira vazia do meu lado, ela está cheia de memórias confusas. Não tem chimarrão, não tem cerveja, só um vazio cheio de emoções difusas.

Que faço com essa cadeira? Às vezes ela é mais importante que tudo que há na casa! Que amarras do passado ainda estão sentadas nessa cadeira vazia? A televisão reza um terço em volume altíssimo, denunciando surdez do ouvinte que quase não ouve. Não me acorde que estou dormindo, a voz vem da cadeira que dorme octogenária. Tem uma saudade sentada numa cadeira vazia. Cadeiras vazias não enchem o auditório da vida, elas apenas ocupam o espaço.

Tem muitas cadeiras esparramadas por aí, e eu ouço vozes de cada uma. Seriam fantasmas? Almas penadas? Vozes do além assentando no passado para lembrar duras lições que não aprendi? Uma confusão de murmúrios, risos e choro. Quem sou eu entre tantas cadeiras? Quem há de sentar na cadeira vazia ao meu lado? Brindaremos a novidade de vida ou choraremos o arrependimento eterno das incompreensões?

Quem, quem há de preencher o vazio das cadeiras imaginárias!

sábado, 14 de setembro de 2024

UMA LOUCURA POR MIM! (conto)

 



- Boa noite senhor!

O garçom cumprimentou o cliente que estava à porta. Tinha ainda a bandeja na mão, pois acabara de atender uma mesa próxima, pôs a toalha sobre o ombro e se dispôs ao recém-chegado oferecendo um lugar para que pudesse sentar-se.

- Eu estou procurando por uma mulher bonita, de uns cinquenta anos, ela já deve ter chegado.

- Como é o nome dela?

- Ela tem cabelos castanho-claro, compridos até os ombros...

- Por favor, me acompanhe.

Pode-se dizer que o bar estava lotado, diz-se lotado quando todas as mesas estão ocupadas. No caso, havia ainda algumas poucas mesas disponíveis, para uma delas o garçom ia encaminhar o cliente antes dele perguntar pela ‘mulher bonita de uns cinquenta anos”. Enquanto andavam por entre as mesas, José dos Santos, o cliente, pensava em que situação estava se metendo, tinha mesmo uma ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’ sozinha numa mesa à sua espera? Bem, à sua espera já era querer demais, dissera-o ao garçom sem muito pensar, simplesmente disse, era o que desejava, encontrar uma ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’, conhece-la, fazer amizade, talvez iniciar um namoro...

- Aqui, senhor!

José teve um sobressalto, como se acordasse atrasado com o despertador tocando ao ouvido. O coração acelerou, as mãos tremeram. Olhou para o garçom e queria se desculpar, mas ele já estava atendendo outra mesa que o chamara. José estava atônito, estacado diante da mesa ocupada pela ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’, ela tinha cabelos castanho-claros, parecia simpática e era muito, muito atraente.

- Sim?

A ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’ disse “sim?”, então era uma pergunta. José queria responder, mas como responder uma pergunta que diz simplesmente: Sim?

- Ugh... eu, eu...

- O garçom disse que o senhor estava me procurando.

- É, desculpe, acho que eu fiz uma besteira.

José não teve coragem de prosseguir com seu plano mirabolante. Nem dá para afirmar que era um plano, enquanto dirigia seu Ford Ka pelas ruas da cidade pensava que seria legal encontrar uma ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’ hoje. Tem um ditado que diz que o pecado é como um pássaro que voa sobre a cabeça, não há nenhum problema em o pássaro voar sobre tua cabeça, mas deixa-lo fazer ninho, aí já é o mal. Não que fosse pecado deixar uma mulher bonita de uns cinquenta anos voar sobre a cabeça de José, mas pedir ao garçom para fazer ninho na mesa dessa mulher...

- Senhor?

José sentiu uma mão delicada a segurar seu braço.

- Vem, sente-se. Acho que o senhor precisa de um pouco de água. Garçom, um copo de água, por favor.

José tomou a água num gole, a mulher bonita de uns cinquenta anos tomou um copo de cerveja, ela esboçou um sorriso, era o sorriso mais lindo que José já vira na vida, era o sorriso que desejava enquanto dirigia seu Ford Ka.

- Diga, como é teu nome? Por que estava me procurando?

- Meu nome é José, José dos Santos. Essa parte não é difícil, mas, por que eu estava te procurando... isso é bem difícil... isso foi uma loucura minha...

- Uma loucura? Eu estava precisando mesmo de uma...

Ela estava também precisando de uma loucura. Que loucura! O bar estava lotado agora, nenhuma mesa estava disponível e havia clientes aguardando na porta. Em cada mesa parecia ter alguma loucura acontecendo. José desviou os olhos à esquerda da mulher bonita à sua frente e olhou para a mesas diante de si, na mesa mais próxima todos bebiam um brinde a alguém ou a alguma coisa, na outra tinha dois casais e o marido de uma colocava disfarçadamente um dos pés por debaixo da mesa, entre as pernas da mulher do outro enquanto conversava animadamente com o marido dela. O pássaro estava fazendo seu ninho!  Se olhasse cada mesa tinha lá um pássaro querendo fazer ninho... sim tinha lá suas exceções! José era uma exceção. Era?

- Qual foi a tua loucura? Me conte.

- É que, na verdade, eu não estava procurando você, quer dizer, estava, mas não era você, não era você, mas era você.

- Daí você me achou.

- Sim, daí o garçom me trouxe até aqui.

- Então vamos brindar a tua loucura, garçom um copo, não precisa, toma nesse da água mesmo.

Então brindaram à loucura, depois brindaram ao seu primeiro encontro, daí brindaram alguém ter feito uma loucura por uma mulher bonita de uns cinquenta anos, brindaram à vida, ao amor, aos desejos sexuais dos idosos, à filosofia, à literatura e ao marido da mulher bonita de uns cinquenta anos.

- Marido?

- Sim, olha ele aí, ele é escritor, vai amar essa história, certamente amanhã estará publicada na Folha de Dourados.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

MILAGRES

  


Experimentar o sobrenatural de um milagre é extraordinariamente bom. E, neste caso, chamamos de bom a uma sensação indescritível, fora do comum, maravilhoso. Milagres são sempre bons, são sempre extraordinários!

Extraordinário é só um modo de dizer, os milagres acontecem o tempo todo, basta entrar numa igreja, dessas ditas pentecostais, e você verá, em cada culto ou missa, relatos de livramentos, curas que a ciência não é capaz de explicar, restauração de casamentos e, nas denominações que apregoam o culto da prosperidade, milagres de sucesso empresarial e enriquecimento financeiro. Tudo vem do altíssimo!

E não é só nas igrejas, tem uma leva desses chamados ‘influencer digital’ ganhando, milagrosamente, rios de dinheiro fazendo rifas onde ninguém é sorteado. É a fé que move montanhas, e o processo de enganação é muito semelhante, primeiro se promete o Céu, seja ele o que vem depois da morte, seja ele agora apresentando os atrativos carros de luxo que serão sorteados, depois se pede o dízimo, as contribuições e as doações, pronto o milagre está realizado, igrejas e influencers se tornam empreendimentos milionários.

Um milagre! Só um milagre para fazer as igrejas se afastarem da idolatria do capitalismo e cumprir as determinações bíblicas de priorizar e acolher os mais humildes. Enquanto escrevo estas linhas, milhares de pessoas se reúnem na avenida paulista, liderados por pastores evangélicos riquíssimos, para declarar seu apoio ao homem mais rico do mundo que disse que não cumpriria as leis do nosso país.

É sobrenatural pensar que o amor possa ser vendido e comprado! Se ama mais as aparências do que o ser. Cirurgias plásticas transformam milagrosamente pessoas feias em bonitas, aumentando ainda mais o fosso entre o belo e o bonito. Nem sempre um rosto bonito é um rosto belo. Belo é aquilo que harmoniza e dá equilíbrio, bonito é aquilo que atrai. Cirurgias plásticas meramente estéticas desarmonizam o equilíbrio natural, substituindo o conceito de beleza pelo de boniteza.

Neste mundo de aparências, estamos todos precisando de um milagre. E fé não nos falta! Somos capazes de acreditar na lâmpada do Aladim e seus três desejos, acreditamos no poder do pé-de-coelho, na ferradura, na vassoura atrás da porta, chinelo de cabeça para baixo, a escada do azar, gato preto, quebrar o espelho, ver a noiva antes do casamento. Acreditamos no Papa, no Silas Malafaia, no R, R. Soares, Magno Malta. Tudo isso e todos eles fazem milagres. Milagre é a fé que move montanha, alguns movem montanhas de dinheiro!

Eu, eu preciso de um milagre chamado Serendipity!

terça-feira, 3 de setembro de 2024

QUINZE MIL!!!!!!!!!!!!!!!!

 

Ta aí a cara do meu blog. Desde 2017 eu publico nele meus escritos, Crônicas, Contos e Poesias. São mais de 430 postagens. Às vezes dá vontade de publicar um elogio para mim mesmo, dessa vez não aguentei, quando vi que tinha alcançado 15.000 visitas ao meu blog... Me desculpem aqueles que acham que devo ser sempre humilde, mas hoje vou me engrandecer!

Tudo bem que quinze mil visitas ao meu blog não é nada se comparado aos tais influencers que tem milhões de seguidores. Essa comparação também não serve, eu sou escritor, escrevo textos e o leitor é que vai formar sua opinião, diferente dos tais influencer que tem sempre uma receita prontinha, os seguidores não precisam nem pensar, quanto mais ouvem, mais ficam embrutecidos! Cá para mim, é hora de comemorar!

 


Mas, não sou só eu que escrevo, nesses anos de publicações, os leitores também participaram com, que maravilha! 408 comentários. Eu leio cada um e tenho vontade de responder, mas a maioria não se identifica, então fica meio difícil. Eu amo ler os comentários.


E é assim que a roda da vida de um escritor vai girando. Estou escrevendo meu quarto livro, que por enquanto, tem o título provisório de MUDANÇA DE FASE. Espero concluir ele até o início de 2.025. Os outros três, já publicados estão representados ali na primeira foto: JOSAFÁ, HISTÓRIAS DE ANA MAIRIA E SEU AVÔ e DOCE VENTURA.

Escrever é o que eu gosto de fazer, além de ler bons livros, muitos livros.

 


Volto a este assunto quando chegar a 20.000!!!

sábado, 31 de agosto de 2024

E SE EU APOSTASSE EM VOCÊ

 



Uma aposta é uma aposta. Já apostei na Mega-Sena umas dezenas de vezes, apostei também que seria Padre, mas enquanto estudava no seminário me vieram os hormônios e perdi a aposta me distraindo nas matinês, até que finalmente fui parar noutro colégio interno, num jogo quase ao contrário daquele do espaço intemporal.

À Mega-Sena fui quase fiel, outros jogos aos quais me entreguei esporadicamente foram de menor valor sentimental, um bingo aqui, uma rifa ali, coisas que só dão prazer momentâneo. Até ganhei alguns prêmios, mas ainda espero confiante na Mega! Ela é especial, tem muito valor!

O valor da Mega nem pode ser medido, e se for da Virada, então! Quanto é trezentos milhões de reais? Minha vida inteira parece ter passado muito ao largo de qualquer valor sentimental que se pareça com um prêmio desses. Nas matinês da minha adolescência o Silvio Santos distribuía dinheiro e as garotas dançavam o carnaval no salão e eu ia fazendo minhas apostas. A natureza punha as cartas todas na mesa, mas o medo de perder o jogo me fazia corar de vergonha só de pensar num insucesso e eu ia pro canto lamentar minha derrota sofrida por mim mesmo.

Ainda imberbe, pensei ter ganho o primeiro prêmio. Estava lá o troféu, ele brilhava e eu acreditei ter vencido. As regras não me eram conhecidas, eu só sabia que tinha apostado depois de ter apostado. A roleta girava ao som de Os Vikings. Entre o sobrenatural e a legião, os olhos falavam uma língua só compreendida pelos anjos. Enquanto o Internacional ganhava o campeonato brasileiro de futebol eu parecia ter feito os treze pontos da loteria esportiva. O campeonato acabou com a vitória do Inter e olhos não mais viram o prêmio.

Às vezes o jogo é sujo. Ainda que as luzes sejam coloridas e as caras pareçam amigáveis, uma aposta pode ser alta demais para um jovem amador. Essa palavra: amador, ou ama dor, parece resumir todo o desencanto de uma ilusão que vem das cores. A inocência enfrentando o colorido das casas e o amor, que não é do Céu, que não é do Inferno, penetra nas veias e inflama a vida. O remédio é amargo, absinto. Dor! A escuridão vem, mas ela termina exatamente quando a luz acende.

Trezentos milhões de reais! Dá para comprar o amor e aniquilar a dor. Com muito menos esbarrei em sentimentos que navegavam por águas mansas. Até que uma tranqueira aqui, uma pedreira ali e sempre tem uma corredeira que leva à cachoeira, muita emoção e um afogamento seguro no fim.

Se eu ganhasse na Mega-Sena, eu apostaria em você?

Se eu apostasse em você, ganharia na Mega-Sena?

domingo, 25 de agosto de 2024

EU QUERIA SABER

 


Quando deixei de querer saber só das coisas de casa e me interessei por conhecer o mundo, a primeira fonte de conhecimento foi a Enciclopédia Trópico que meus pais tinham adquirido. O mundo estava ali, dentro daqueles livros coloridos e interessantes. Tudo que eu lia era absolutamente verdadeiro, as outras verdades sobre o mesmo assunto ainda se encontravam escondidas alhures. Não se sabia da existência desses outros lugares, a verdade era única, absoluta, indiscutível, bíblica.

Daí vieram outros lugares, eles eram muito agradáveis, eu sabia, mas eram totalmente desconhecidos. As amizades não eram como as descritas nos Trópicos e a escola era um lugar muito estranho onde o conhecimento vinha das varas de vime e das bordoadas dadas pelo professor. Esse lugar era pavoroso e, mesmo assim, diziam que eu era inteligente. Talvez porque a escola me era totalmente estranha.

Eu só queria saber onde eu estava, mas ninguém me dava essa resposta. Três anos num seminário buscando a Deus e mais três num Colégio Agrícola encontrado o inferno. A paternidade dos padres e um diretor furibundo foram o bastante para me habilitar a muitos anos no purgatório. Eu só queria saber onde eu estava. Um dia li Dante Alighieri. A minha vida era uma Divina Comédia!

Nos bailes da vida eu via o Sol iluminando as noites de música e prazer. O mundo rodando aos meus pés arrastava complexas garotas que sorriam e dançavam. Uma cuba-livre e um Minister. A onda eram os filmes de Hollywood, dançar nas discotecas e ter uma Honda, com ela eu me agarrei até parar na farmácia. Eu só queria saber o que era a vida e os relacionamentos. Ninguém nunca me ensinou que o mundo não ensina, o mundo só aprende e rápido demais.

Me perdi nos lugares mais amáveis, onde pensei que iria me encontrar. O amor custa caro e o preço do pecado é a morte. Entre a Auréola e as luzes coloridas a pureza do amor desbota e o amor fica puído. Eu não sabia, mas o amor delirava. Como manter a pureza se o amor pede o pecado? Isso eu queria saber! O amor que era puro não me dava o amor que o pecado me dava. O pecado me dava o amor que o mundo conhecia, o mundo aprende rápido demais! O amor são as luzes coloridas?

Quando pensei já saber o bastante fui ser professor. Eu só queria saber se já sabia mesmo o bastante. Por vinte anos apliquei provas aos meus alunos. Quando descobri que todos os meus colegas, professores de outras disciplinas, reprovariam em qualquer das minhas provas e eu nas deles, descobri que meus alunos não tinham mais nada para me provar e desisti de lecionar. Eu queria saber por que as escolas cobram dos alunos o que os professores não sabem.

Por trinta e cindo anos trabalhei para alimentar um sistema que não concordo e agora já estou velho demais para lutar contra. Eu queria saber por que, por que eu tenho que ser a favor de um sistema que é contra mim? O mundo aprende rápido demais. O mundo contrata os pobres para trabalhar para os ricos e os filhos dos pobres para defender uma elite que rouba os trabalhadores, os filhos dos pobres são policiais, os filhos dos ricos são empresários. Os policiais defendem os empresários.

Eu queria sabe por que eu ainda escrevo.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

É PRA HOJE!

 


Eu quero para hoje porque estou com pressa. Ontem já não tive e nem a semana passada, não posso esperar mais uma semana. Estou ansioso, talvez necessitado. O tempo, tão precioso para ganhar dinheiro, permite tantas alegrias aos nossos olhos, mas depõe contra nossa felicidade.

Se não houvera o tempo, então tudo seria sempre hoje! Nada teria acontecido no passado que gerasse os traumas do presente, simplesmente porque o passado não existiria. Também não existiria o futuro e seríamos livres da ansiedade, esse mal que atormenta a alma. As contas não venceriam e ninguém seria condenado à prisão por ter cometido algum delito, não se pode atribuir uma pena sem definir o prazo de tempo e não podemos definir um prazo de tempo se o tempo não existe. E eu não estaria tão ansioso...

O Drummond sorri para mim da parede onde o tempo já não conta mais. Despejei sobre ele minha cara carrancuda e recebi de volta aquele mesmo sorriso de alguém que não se importa. Um dia, quando o tempo deixar de existir, nada mais será importante. Ficarei preso até lá? É essa a minha pena? Quem foi mesmo que me condenou? A culpa é da Eva, foi ela que comeu do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal e o deu a Adão. Se eu não conhecesse o mal, não ficaria tão apreensivo pela sua existência. Eu espero pelo bem, mas até quando? Se o tempo não existisse, o mal e o bem estariam diante de mim e eu poderia escolher.

O bem e o mal estão na razão, mas o amor está no coração. O coração não conta o tempo, apenas ama! O coração vaga por momentos que estão sempre no presente. O sentimento circula pelas veias e não tem prazo para chegar outra vez ao coração, está sempre circulando poesias e alimentando a alma que é eterna. Na eternidade o tempo não existe. O amor é eterno!

Eu amo eternamente a vida, estou acampado no meio do deserto da humanidade vivendo de Oásis em Oásis. Em cada um deixo um pouco do infinito do amor. Se sou acossado pelas asperezas da humanidade, entre uma eternidade e outra, deixo o coração eternamente sepultado no isolamento da vida. Penduro as delícias do amor na linha do horizonte para onde vou, ainda que ela recue enquanto me aproximo e tenha que demorar uma eternidade par alcançar. O que é a eternidade se o tempo não existe?

Eu não existo de fato, sou apenas uma representação da vida humana que não deveria existir, uma casa temporária para os sentimentos eternos. Afinal, quem sou eu? Essa matéria humana desagradável que destrói a natureza ou o sobrenatural que extrapola a matéria e se faz amor?

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

EU QUEIRA NÃO SENTIR SAUDADES

 



Saudades é uma daquelas coisas ruins que são boas de sentir. É uma ausência que se faz presente para trazer uma tristeza da alegria que se foi, mas ficou para ser lembrada quando a saudade sente um desejo incontido de atenção. É como a esposa quando quer que o marido perceba que ela cortou o cabelo, ela penteia-os enquanto olha para ele, ajeita de um lado, depois do outro, então vira de costas e joga os cabelos para trás. Se o marido não diz nada ela vai embora e ele fica na saudade, o que ele queria não eram só os cabelos, mas o corpo todo que acaba de se ir. A saudade é assim, o desejo de um todo que se foi.

Eu tenho muita saudades das coisas que não fiz. É um incômodo que traz imagens tão generosas das coisas que poderia ter feito! Ah, que saudades! Eu podia ter escolhido morar numa cidade litorânea e, lá escolher ver o pôr do sol junto da pessoa amada. Aliás, eu poderia mesmo ter escolhido a pessoa amada. Tenho saudades do pôr do sol que não vi com a pessoa amada que não amei. E o pôr do sol estava ali, só para me provocar, como uma mulher que penteia os cabelos e depois ajeita de um lado e de outro, daí joga os cabelos para as costas e se vai porque eu não fui ver o pôr do sol.

Quisera eu nunca sentir saudades do futuro do passado. Esse tempo verbal da gramática parece existir só para alimentar a dor da saudade daquilo que poderíamos ter feito e não fizemos. Não posso ter saudades do futuro. Se bem que já ando tendo esse sentimento de que as coisas que ando planejando vão se distanciando das possibilidades, de um tanto, que só de pensar em quão bom seriam se se realizassem já ando tendo aqueles sentimentos que apertam o coração e nos fazem chorar por dentro fazendo rugas no rosto e misturando a alegria do que deveria ser com a tristeza do que não será, e isso me faz ter saudade de um futuro incerto.

Tenho saudades de quando tinha fé. Isso mesmo, saudades de ir para o Céu quando morresse! Seria tão lindo morrer e ir subindo através das nuvens vestido em roupas brancas, um sorriso de absoluta felicidade expresso no rosto e olhar para baixo e ver o mundo em trevas ficando para trás, daí erguer o olhar e ver a porta do Céu se abrindo e um coro celestial cantando uma canção na língua dos anjos. A cidade celestial seria de ouro puro e os fundamentos da cidade de pedras preciosas. Eu não morri e as promessas do Céu se misturaram com a ganância mundana e o altar ficou manchado pela idolatria. Minha igreja agora sou eu. Irei para o Céu?

Saudades é a ilusão do amor que ficou quando o sonho se foi. Temos o direito de amar e de sonhar e o destino tem o direito de transformar isso em saudades. Eu sou responsável pela saudade que sinto das coisas que não fiz, mas o destino, ah! Bem que o destino poderia assumir sua responsabilidade e permitir que eu não sinta saudades do amor que ainda sonho ter!


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

FELICIDADE

 


Hoje me arrisco a escrever qualquer coisa sobre um assunto que não entendo bem. Já ouvi tanto falar em felicidade que fui buscar na internet o conceito. Apareceram 280 resultados para a pesquisa. Olhei um, outro e mais outro e descobri que cada um tem seu conceito para a felicidade que não alcançou, mas que de alguma forma gostaria que alguém alcançasse para, então, ser feliz com a comprovação do seu próprio conceito. Olhei para o espelho e perguntei para a imagem refletida por detrás do vidro: Você já foi feliz?

Um silêncio brutal me olhou através do espelho e quando eu quis me mover ouvi uma voz absolutamente silenciosa que gritava aos meus pensamentos: “Se o que eu vou te dizer pode, de alguma maneira, trazer-te, ainda que seja uma pequena dose de felicidade, sim, já fomos felizes”. Quando? Eu quis perguntar. Meus lábios tremeram sem balbuciar palavra.

É claro que eu já fui feliz, quer dizer, devo ter sido feliz algum dia. Talvez eu tenha mesmo sido feliz. Se eu fui feliz, então eu quero me lembrar. Andei pela casa arrastando pensamentos idosos de uma infância infeliz e fui até o portão que se abriu e fechou estalando contra a parede. A rua me levou até a praça onde as crianças brincavam felizes no parquinho que eu nunca tive. Talvez eu tenha sido feliz na infância, não me lembro.

Um vento repentino levou meus pensamentos para um lugar florido. Era a primavera cheia de música em discotecas. Corpos balançando de um lado para outro ao som das guitarras e baterias, a cabeça jogando a bola da felicidade para os lados. Uma cuba livre e o sonho de rebeldia, isso era a felicidade! Dancei todos os Rock And Roll que pude e acordei ralado num tombo de motocicleta. O mundo real não perdoa quem quer ser feliz.

Um carro estacionou no meio fio e tinha música tocando. Não dá para negar, o som era de boa qualidade, amplificava para se ouvir a uma grande distância. Seu Jorge cantava dentro do carro para dizer que a felicidade é viver na sua companhia e estar junto todo dia. Lá, dentro do carro, Seu Jorge se calou e um modão balançou o carro com uma bebedeira, uma multidão gritava a felicidade pelos alto-falantes.

Fiz um filme da minha vida estrelando Júlia Roberts, ela é uma mulher linda. Por mais que eu estivesse apaixonado por mim mesmo, era necessário que eu amasse uma mulher. Mulheres lindas trazem felicidade. Depositei meu tesouro em vasos carnosos enquanto o amor dormia e o desejo vigiava. O maior desejo era trabalhar para conquistar todas as alegrias do mundo e transforma-las em um único instante de felicidade. Quem tem um instante de felicidade tem todas as alegrias porque a felicidade é para onde tendem todas as alegrias.

O amor é a felicidade, quem ama é feliz! Tá lá na internet, é o centésimo octogésimo terceiro resultado da pesquisa. E o amor tem pernas roliças, corpo de academia, cabelos de salão, cheiro de boticário, é cliente do JPMorgan Chase Bank N.A. e anda de Rolls-Royce Limited. Eu queria me banhar na piscina olímpica do amor. Entre as pernas roliças e o cheiro de perfume me casei quatro vezes. O amor ainda estava no futuro, era preciso trabalhar. Trinta e cinco anos de carteira assinada, 420 holerites com promessa de felicidade e quando me aposentei e pensei que seria feliz percebi que a felicidade tinha ficado no passado.

Onde mesmo?

QUANTO É MESMO ETERNAMENTE?

  Num sábado à noite não sei como mensurar o quanto é eternamente, o próprio sábado já me parece eterno, então, se somo a esse eterno a an...