“As coisas sempre andam bem quando
tudo está bem. Cara, essa foi de uma profundidade filosófica extraordinária! Eu
amo filosofia e detesto adaptações, agora mesmo estou lendo um texto adaptado
do livro Dom Quixote, de Miguel de
Cervantes. Comprei pensando ser o original, mas quando chegou e os meus olhos
brilharam e estava tudo bem, daí prestei atenção na capa e lá dizia “Texto
Adaptado”, mesmo assim comecei a ler o livro e vou ler até o final, com uma
sofrência igual ouvir música sertaneja universitária, esse tal de sertanojo, que é uma adaptação horrível
da verdadeira e bela música sertaneja”.
“O Yom Kippur já passou”, disse o judeuzinho que viajava no carro
comigo. Eu percebi que um carro diferente tinha passado em alta velocidade, só
não entendi a observação do judeuzinho que ia de carona comigo. “Tá”, respondi
e continuei andando a 90 quilômetros por hora na minha saveiro. “O Yom Kippur, é importante se você quiser
ficar sempre bem”, insistiu o judeu. Olhei de soslaio, esse judeuzinho só podia
estar me gozando. “Não estou disputando corrida com esse ianki não sei o quê.
De saveiro vamos chegar ao nosso destino do mesmo jeito, não precisamos de um
carro como esse ianki...” “Yom Kippur, é
o dia do perdão, já passou, mas você ainda pode perdoar, senão Deus vai apagar
o teu nome do Livro da Vida”. “De quê eu deveria pedir perdão?”
O judeuzinho que me perdoe, antes que
seja tarde, chama-lo judeuzinho, mas ele é judeu mesmo, o nome dele é Yosef. Eu
o chamo judeuzinho devido sua origem e a baixa estatura que não passa de 1,55
metro de altura, mas agora vou apenas chama-lo pelo nome, Yosef, parece que ele
sabe a Torá de cor, isso às vezes atrapalha nossa conversação, pois eu sou cristão
não praticante e pouco entendo da cultura judaica. Se há um trabalho a ser
realizado na sexta-feira e se estende para além do pôr-do-Sol, o judeuzinho,
quero dizer, Yosef, para imediatamente e não há quem o faça concluir o
trabalho. “Por nada deste mundo. Shabat!”,
é sempre a resposta. “Eu sou crente, nós guardamos o domingo” é minha
argumentação. “Então peça perdão por não cumprir o quarto mandamento”.
Para que as coisas fiquem bem, eu
evito confrontar a Torá, não adianta, é como mastigar pedra brita, você nunca
vai conseguir tritura-la para engolir. Quer ficar bem com o Yosef, então é
melhor guardar o quarto mandamento. “Mas, o que esse Yomki...?” “Yom kippur. Você
disse: As coisas sempre andam bem quando tudo está bem. Para tudo fiar bem, tem
que perdoar, até os textos adaptados e os que cantam sertanojo”. “Tá bom” eu
disse “eu perdoo os textos adaptados e os que cantam sertanojo, só não me
obrigue a ouvi-los”. Pronto, dei o assunto por encerrado e liguei uma música do
Pink Floyd no blue tooth do rádio do carro.
Meia hora mais tarde parei a saveiro
para abastecer e fomos tomar café na lanchonete do posto de gasolina. Yosef fez
uma reverência ao Deus da Torá e comeu um pastel de queijo, eu comi um pão de
queijo. “O queijo nos unifica” ele disse e propôs um brinde a isso. Rimos e
tomamos nosso café com leite, que também nos unificava, e saímos conversando
alegremente. Do lado de fora da lanchonete um casal fazia seus ajustes de
alguma conta sentimental que não fechava. “Me desculpa, isso não vai mais
acontecer” dizia o marido, ou namorido, seja lá o que for. A mulher ainda
argumentava raivosa quando entramos na saveiro e partimos, havia trabalho a
fazer e era sexta-feira, tinha que terminar antes do pô-do-Sol.
Acho que o jud... Yosef queria falar
algo sobre a discussão do casal do pátio da lanchonete do posto. Acho que eu
não dei muito espaço para ele falar, primeiro aumentei o volume da música e
disse que amo Pink Floyd, depois reclamei dos livros adaptados e do sertanojo e
finalmente lembrei que deveríamos chegar logo porque era sexta-feira e o serviço
tinha que ser concluído antes do pôr-do-sol e que o tempo estava formando para
chuva e isso poderia atrapalhar. “Não vai atrapalhar, HaShem é poderoso e cuida
de tudo para os que são fiéis” Tenho que reconhecer, Yosef é mesmo um homem
fiel!
Às dez e meia estacionei a saveiro no
canteiro de obras e fomos direto ao escritório onde um engenheiro fazia a
programação do sistema de automação. A obra da construção dos silos estava
praticamente concluída, agora era hora de verificar se todo o sistema de
automatização estava funcionando. Eu não entendo nada de automação de silos,
mas vi Yosef e o engenheiro de programação discutindo sobre o tempo, algumas
nuvens bem escuras ameaçavam a conclusão das obras e o pedreiro tinha cometido
um erro que estava atrapalhando o funcionamento de uma correia de transmissão.
O engenheiro esbravejava raivoso, Yosef, calmamente pedia que ele o perdoasse. “HaShen está do nosso lado”. “É, mas se a
obra atrasar e passar das seis da tarde você não trabalha e fica tudo para a
semana que vem!” Dito isso, o engenheiro se desculpou e Yosef o perdoou, assim
Deus não apagou seu nome do livro da vida.
Às seis da tarde a obra foi dada por
finalizada, enquanto toda a equipe se preparava para um churrasco e muita
cerveja, Yosef retirado para um espaço distante, iniciava suas orações. Não
adiantaram os insistentes convites, já era Shabat e o judeuzinho não iria
festejar. Tentei convence-lo de que ali, naquele lugar ermo, talvez o Shabat
pudesse iniciar no dia seguinte, mas ele não cedeu e ainda me chamou a atenção
perguntando se eu agora já não ligava de ouvir sertanojo. É, sertanojo rolava
solto e o churrasco era servido em porções e a cerveja estava bem gelada e era
infinita, assim dá para perdoar facilmente o sertanojo. Tentei argumentar que o
proprietário da fazenda, que era também um grande empresário em Ponta Porã,
iria chegar mais tarde para confraternizar pela obra concluída, ao que Yosef me
respondeu: “Shabat Shalon”.
Eram nove e meia da noite quando foi
anunciado que Hussein estaria chegando. “Hussein?” Perguntou Yosef,
desconfiado. O mestre de obras, intrigado com a pergunta fez questão de
explicar que Hussein provavelmente seria seu compatriota, já que ele viera da Palestina
há anos e fixara residência em Ponta Porã onde abrira lojas e ficara rico,
muito rico! “Palestina” disse Yosef e saiu para longe de todos. Logo em seguida
chegou Hussein acompanhado de quatro seguranças armados, cumprimentou a todos e
agradeceu pelo empenho de cada um, fez de conta que comeu e até pegou um copo
de cerveja e bebeu. Passado algum tempo, despediu-se de todos e rumou com seus
capangas para o carro blindado, antes que entrasse no carro ouviu-se um
barulho, algo tinha sido atirado contra o carro de Hussein, era uma pedra, uma
enorme pedra, a maior que um ser humano muito raivoso seria capaz de atirar de
uma distância de dois metros. Quem mais poderia ser, senão ele, o judeuzinho Yosef.
“Ele é palestino, é terrorista” e atirou outra pedra certeira na cabeça de
Hussein, abriu uma cratera atrás da orelha do empresário.
Uma semana depois fui visitar Yosef
no presídio estadual, ele não estava abatido, achava que tinha comprido seu
dever religioso de eliminar um incircunciso que ocupava a terra prometida.
Antes de sair, olhei com ar compreensivo e disse: “Yom Kippur”.
Agora penso: Faz algum sentido?
Eduardo
ResponderExcluirSobre a pergunta final, "Faz algum sentido?", a resposta talvez dependa de como interpretamos a história. Pode ser uma meditação sobre como crenças e ações moldam nosso destino e nossas relações com os outros, mesmo quando as intenções são boas. O que você acha: seria o perdão, ou a falta dele, o que realmente nos coloca em conflito com os outros – e, em última instância, com nós mesmos?
ResponderExcluirSobre a pergunta final, "Faz algum sentido?", a resposta talvez dependa de como interpretamos a história. Pode ser uma meditação sobre como crenças e ações moldam nosso destino e nossas relações com os outros, mesmo quando as intenções são boas. O que você acha: seria o perdão, ou a falta dele, o que realmente nos coloca em conflito com os outros – e, em última instância, com nós mesmos?
Sobre a pergunta final, "Faz algum sentido?", a resposta talvez dependa de como interpretamos a história. Pode ser uma meditação sobre como crenças e ações moldam nosso destino e nossas relações com os outros, mesmo quando as intenções são boas. O que você acha: seria o perdão, ou a falta dele, o que realmente nos coloca em conflito com os outros – e, em última instância, com nós mesmos?
Olá Eduardo. Boas observações. Eu não tenho uma resposta fechada sobre isso. Perdoar liberta o perdoador, mas não necessariamente evita o conflito. Não perdoar, realmente aumenta a tensão.
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