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domingo, 31 de outubro de 2021

CHUVA MENSAGEIRA

Está chovendo

Esta chuva há de chegar até aí

Quando chegar

Molha tua mão

Hei de mandar com a chuva um beijo

Toma-o para ti

Põe em teus lábios

E hás de sentir minha presença

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

RUBEM BRAGA E O PREFEITO DE DOURADOS

             Não sei de onde tirei essa ideia de ler Rubem Braga, mas certo é que pedi uns livros na Amazon e tenho gasto um tempo especialmente com suas crônicas. Algumas delas, escritas há setenta anos, parecem ser destinadas ao momento atual da política em Dourados, talvez ao próprio prefeito Alan Guedes. Teria ele, o Braga, uma bola de cristal ou, sendo um imortal da Academia, esteja ainda vivo e em sua imortalidade transite por tempos futuros para escrever no passado coisas do porvir!!! Ando pensando em me candidatar a uma vaga pela imortalidade. Será o presidente da ADL me aceitaria? Assim poderíamos deixar de lado coisas como a Farra da publicidade e focar em crônicas futuristas onde, quiçá, essa dinheirama toda seja destinada aos produtores rurais familiares e o povo tenha alimentos mais saudáveis.

A crônica ‘Bilhete a um Candidato’ parece ter sido escrita pessoalmente para o Barbosinha, em 1.960!!! Atualíssima! Se o Candidato do DEM tivesse lido, talvez não perdesse a eleição. Na época da eleição eu era presidente da Associação dos Produtores Rurais da Agricultura Familiar do Alto Café, provavelmente a Entidade que mais tenha se dedicado na construção de um projeto viável para o desenvolvimento da piscicultura neste município. Queríamos discutir o projeto com o candidato, mas ele lá não foi e seus representantes diziam que já estava sobrando votos, a eleição estava ganha. Alan Guedes, foi pessoalmente, acreditando na virada. Virou!

Virou Prefeito e rapidamente levou para seu gabinete o cara que fazia a farra, da publicidade, quando o agora alcaide ainda era presidente da Câmara de Vereadores. Talvez o mestre Rubem Braga, com toda a ironia de que era capaz, dissesse ao Alan Guedes que, não sendo tão sábio quanto o prefeito, seria incapaz de apontar todas as maracutaias, mas que elas existem, sim, existem. Eu não sei, mas tem um ditado que onde tem fumaça tem fogo! O Ministério Público, se mexer nessa fumaceira, há de encontrar o braseiro ainda em chamas.

Me permita, Rubem Braga, revolver no teu passado, tão presente, e dele copiar umas ideias críticas. Certamente não hás de revirar-te no túmulo, afinal és um imortal da Academia e as tuas críticas aos poderosos permanecem atualíssimas! Como dirias, não sou tão sábio quanto nosso Excelentíssimo Prefeito, mas em meu humilde entendimento, um milhão de reais, gastos sem nenhum benefício à sociedade, seriam suficientes para custear todo o projeto da tão sonhada piscicultura em Dourados, com produção de, no mínimo, cem toneladas de peixe por ano, processados e embalados com selo do SIM- Serviço de Inspeção Municipal, para o comércio, gerando emprego e renda a dezenas de produtores rurais da agricultura familiar, além de proporcionar a proteína a preços mais acessíveis aos consumidores e ainda girar o dinheiro dentro do município, desenvolvendo o comércio local.

Pois bem, Rubem Braga, não posso dizer que a sabedoria das prioridades seja exclusividade ao Alan Guedes. Herdeiro do Tal, o atual presidente da Câmara de Vereadores, estava animado para contratar uma empresa para transmitir as sessões do legislativo e outras notícias em redes sociais que ninguém, ou quase ninguém vê, pela bagatela de uns oitocentos e cinquenta mil reais por ano, valor suficiente para instalar pelo menos quatro abatedouros de peixe, o suficiente para atender toda a demanda dos agricultores familiares do município.

Bem, não estando eu em cargo algum dessa ou daquela gestão, talvez eu não consiga mesmo entender a importância de se gastar aí uns dois milhões de reais em publicidade. Se fosse na produção de peixe, então teríamos uma crise de superprodução, é isso???

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

AS LOUCURAS NO NEGÓCIO IMOBILIÁRIO

             Já pensou em comprar um apartamento de trinta metros quadrados, num resort de luxo, por um milhão e quinhentos mil reais? Pois é, tem quem compra, e não são poucos. Esse negócio é gigantesco e já se espalha pelo Brasil à fora com a promessa de um excelente investimento financeiro! Afinal, o que um cronista tem a ver com isso?

Às vezes as crônicas servem para se fazer uma denúncia grave de um jeito bem-humorado. Rubem Braga era mestre, escrevia críticas ácidas aos governos em forma de crônica, talvez na próxima eu faça uma referência a ele. Hoje vou relatar o acontecido comigo, já pela segunda vez, quando me fizeram essa proposta imperdível de investimento financeiro. Não que eu tenha um milhão e meio de reais, se tivesse comprava uma fazenda em vez de um apartamento.

As autoridades não ligam nenhum pouquinho para esse negócio, afinal, estamos num país capitalista e liberal, nada mais justo que tirar o dinheiro das pessoas, desavergonhadamente, e receber medalhas de mérito pelo sucesso alcançado nos negócios! Funciona mais ou menos assim: As moças bonitas fazem o papel delas, ficam pela orla, atraem visitantes, oferecem prêmios se algum desavisado concordar em entrar e ver a proposta. O prêmio é real, que me perdoem os malandros milionários, mas sabendo que ia mesmo ganhar o brinde, aceitei gastar uma hora de meu tempo inútil e conhecer o projeto.

Há uns três ou quatro anos atrás quando estive em Caldas Novas, ganhei um almoço, agora o brinde foi de oitenta reais para fazer um passeio turístico. Nada mal para quem tem consciência que não vai mesmo fechar negócio milionário em uma hora de conversa. Por questão moral, antes de entrar avisei que não faria qualquer negócio, a moça deu um sorriso amigável e disse que se eu entrasse, além de ganhar o brinde, ainda a ajudaria a cumprir sua meta, o seu salário depende de quantas pessoas ela é capaz de enganar, quer dizer, convencer a ser iludido, digo, ouvir o que os representantes da empresas tem a dizer. O salário deles também depende de quantos eles conseguem enganar, quis dizer convencer a assinar imediatamente o contrato de compra e venda de pelo menos uma parte de cinquenta e duas de um apartamento de trinta metros quadrados.

A proposta não diz que tu estás comprando um apartamento por um milhão e meio. Também não diz que tu tens que assinar imediatamente o contrato. Mas, se concordares em assinar imediatamente irás pagar a bagatela de trinta mil reais, mais alguma coisa, por uma de cinquenta e duas partes, isso significa que o mesmo apartamento terá cinquenta e dois donos, cada um podendo utilizá-lo por, no máximo, sete dias por ano!

           Bendita hora que fiz o vestibular para matemática: Cinquenta e dois donos, cada um pagando trinta mil reais para ter direito a sete dias de utilização por ano, o apartamento, no fim das contas será vendido por nada menos que um milhão quinhentos e sessenta mil reais! E, ainda, o comprador terá que pagar sessenta reais por mês de condomínio, que, lógico, multiplicados por cinquenta e dois donos, dará para a empresa, a bagatela de três mil cento e vinte reais por mês em cada apartamento. É um negócio da China, quer dizer, do Brasil! E viva o liberalismo!!!!!!

domingo, 10 de outubro de 2021

CAMARÃO NO CARANGUEJO

             Não tenho absolutamente nada para fazer nestes dias de Natal, então fico observando gente, isso enche de ideias um escrevinhador que de repente resolve se perder nos cafundós do Nordeste. E gente não falta, nestes tempos de pandemia o avião falava repetidas vezes da necessidade de se manter o afastamento e tudo o mais para evitar a transmissão do vírus, mas os assentos estavam todos ocupados e o distanciamento era de aproximadamente cinco centímetros entre um passageiro e outro, lucrar é preciso! A refeição, ou seja lá como chamam aquilo que se serve nos aviões hoje em dia, não foi servida por motivo de cuidados com a saúde.

E por falar em refeição, ontem fui almoçar num restaurante chamado Caranguejo, pedi um prato com camarão e fiquei um longo tempo curtindo música nordestina ao vivo até que o garçom trouxe a comida. Podia demorar mais, nenhum problema na espera, além da boa música de forró, na mesa ao lado tinha uma atração mais que especial, daquelas que dá vontade de ficar ali só observando que não cansa. Também esperando pelo pedido, um senhor de uns oitenta anos tomava suco de melão enquanto procurava por algo no celular. Com o celular na mão, sua esposa, talvez com a mesma idade, se deliciava num copo de caipirinha, bebericava, olhava a telinha, esboçava um sorriso e voltava para mais um gole. Só por isso já valeu a espera, a música veio de brinde. Só espero que o Couvert especial que paguei tenha sido para esses artistas!

Do outro lado da rua um mar de gente atraídos pelo mar de Ponta Negra, parecia ter esquecido completamente os perigos da pandemia. Fiz umas contas com minha cabeça de matemático e calculei que seria impossível servir almoço para toda aquela multidão sem que acontecesse por ali o milagre da multiplicação dos pães e peixes, talvez camarão ou quem sabe caranguejos. Observando com cuidado dava para perceber que boa parte esperava mesmo por um milagre, mas pelo comportamento, acho que o Mestre teria ido logo cedo para a outra margem do mar do atlântico.

Muito parecidos com templos religiosos, os restaurantes escalavam seus ministros para receberem os visitantes na porta convidando-os a entrarem onde eram recebidos com alegria e júbilo, participavam do ritual dos pedidos, depois de ingerirem muita bebida muitos confessavam publicamente seus pecados, se fartavam de comida até transbordar e por fim deixavam na maquininha do cartão as suas ofertas abundantes.

Estávamos sem nenhuma pressa, o casal de idosos e eu, eles com suas bebidas e o celular, eu com eles. Meu almoço foi servido, olhei para a mesa ao lado, outro atendente servia uma panela de barro da qual nossa talentosa personagem tirou um caranguejo e foi destruindo no modo esquartejador, primeiro com as mãos e depois com um Socador. Finda a caipirinha, veio a cerveja e eu, que tomava água mineral, fiquei pensando que aos oitenta vou querer uma caipirinha e caranguejo com cerveja, se o destino me presentear uma velhinha de companhia. Talvez eu volte para Natal!

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

UM LUGARA NO MUNDO: ÁGUA RICA!

Hoje estou em Campo Grande, cidade Morena! por uma noite, amanhã me vou para o nascimento, não o meu, Natal, no Rio Grande do Norte, só que para chegar aqui, na Morena, vindo de Dourados, claro, tinha que ter uma parada na Água Rica. Os douradenses sabem muito bem o que é esse lugar, ninguém vai à Campo Grande sem parar na Água Rica, lugar meio mágico, lá tem, com certeza, a melhor Chipa do mundo! O que é Chipa? Todo Sul Mato-grossense sabe, o resto do mundo acho que não. Um dia eu estava em Brasília e pedi para a garçonete: dá uma ‘chipa’, ela disse: O quê?

Quisera eu voltar ao tempo em que parei pela primeira vez na Água Rica, ah, quem dera! Tinha eu então vinte e dois anos de idade e me ia num Maverick lotado de sonhos entre Campo Grande e Iguatemi onde meus pesadelos se transformariam em literatura pela primeira vez. Aquele lugar no meio do nada poderia ser só uma lanchonete no meio do caminho, não era, era a Água Rica! Meus sonhos de juventude se transformaram em escritos no jornal A Notícia e os cinco livros adquiridos em Iguatemi se multiplicaram na biblioteca de Amambai onde virei quase literalmente um ‘rato de biblioteca’. Jorge Amado me levou ao comunismo e este a muitas viagens à Cidade Morena, e cada viagem a uma parada na Água Rica: duas chipas e um pingado, café com leite.

Tomei um pingado e perguntei a idade da Água Rica: 63 anos! Os poetas todos que conheço, todos, comeram chipa lá. Muitos comunistas, durante a ditadura que tolerava a lanchonete, mas não as ideias; mitos cronistas que driblavam a censura que parecia nada entender de figuras de linguagem; alguns filósofos que insistiam em pensar quando isso era definitivamente proibido e até músicos que teimavam em ver o dia ser novo apesar de você!

Depois do pingado, entrei na Van como entrara dezenas de vezes na Parati do sindicato dos bancários quando era diretor da CUT MS. Todas segunda-feira saia atrasado de Dourados para chegar cedo em Campo Grande. Não tinha essa loucura de trânsito e andar a cento e setenta por hora era, digamos, natural para um revolucionário que tinha pressa em fazer a revolução! Uma senhora, talvez idosa, calculei uns sessenta anos de idade, sentou-se ao meu lado e não parava de passar o dedo indicador pela tela do celular parecendo adolescente.

- Ooooi, bibibijuju, ela disse para o celular, onde aparecia uma imagem de criança. Que linda, titia tá com saudades, ela dizia para o telefone sem se importar comigo no banco ao lado. Não pude evitar a indelicadeza de olhar para a telinha, Julinana, do outro lado do telefone, parecida nem se importar com a encenação da tia, enfiou o dedo no nariz à procura de uma caquinha qualquer e deixou o dedo lá até que a tia pediu pela n-ézima vez para ela tirar, não tirou e a tia achou ela a sobrinha mais linda do mundo! Um minuto depois e eu olhava a paisagem que passava em alta velocidade pela janela da Van quando pensei estar alguém falando comigo, virei-me imediatamente para dentro e outra vez olhei quase sem querer para a imagem no smartphone e a minha vizinha de assento falava com a mãe, era um recado do Pedrinho. Aí lembrei do Pedro Vitor, meu filho, mas não liguei para ele. Água Rica estava ficando para trás, mas a riqueza da vida fluía em alta velocidade!

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O REFLORESTAMENTO

 


Dia 27 de setembro aconteceu um debate com as lideranças indígenas e o foco eram os jovens associados da AJI- Associação dos Jovens Indígenas das Aldeias de Dourados. Esse evento faz parte da mobilização anual que ocorre sempre em setembro para que se alcancem os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável definidos pela Assembleia Geral das Nações unidas.

Eu tive a alegria de ser um dos poucos convidados a assistir calado a cada uma das falas dos representantes dos povos originais. Fiquei sabendo, por exemplo, que o Brasil é um dos países que têm o maior número de línguas indígenas do mundo. Conheci a Graciela Guarani que é, talvez, a mais importante cineasta indígena da atualidade. A Lucimar e a Tatiane que são assistentes sociais e fazem um belíssimo trabalho nas Aldeias. A Diana e a Rosilene que são professoras e outros vários participantes, todos com seu saber e, ficar calado, para mim não foi nenhuma dificuldade, as duas horas do debate passaram muito rapidamente e só no final, no finalzinho mesmo, dei um pitaco de opinião.

Os jovens indígenas da AJI, através das suas lideranças, nos trouxeram para o debate, talvez a sua mais dura realidade. Herdeiros de povos de vida livre e historicamente preservadores da natureza, das quais sempre tiraram seu sustento, esses jovens agora são nascidos em Aldeias devastadas, não há matas, falta o alimento e até a água. O contato com o “branco” é inevitável. Daí entram para as Aldeias as doenças, as drogas ilícitas, a exploração da mão-de-obra, o preconceito, a miséria, a criminalidade, a política partidária, a violência e até o ódio de quem gostaria de lhes tirar até esta que é a última reserva de terras que lhes abriga o sonho.

Acrescentei aí acima alguns itens por minha conta. O debate foi de altíssimo nível e tratou de questões essenciais aos povos nativos. Dentre os temas apresentados para se visualizar uma perspectiva à essa juventude, o reflorestamento parece ter alcançado unanimidade, até porque essa palavra pode ter seu significado ampliado, além do plantio das árvores para devolver ao ambiente seu estado original de mata, também se pode pensar em reflorestar as ideias, devolvendo ao povo seu estado original de preservação da natureza e convivência equilibrada com os demais habitantes do ambiente, os outros animais, aves, peixes, insetos, enfim tudo que a natureza produz e com o que vive em harmonia.

Quando me deram a palavra, no último minuto, o Itacir, um dos coordenadores, me apresentou, dizendo que eu era escritor e poeta. Imediatamente me apropriei do debate e gastei meu minuto pensando alto e aí acabou o tempo e eu continuei pensando até de madrugada sobre esse tal reflorestamento. Sim, haveria de ser um reflorestamento com muitas árvores, frondosas para sombra e abrigo dos animais e aves; frutíferas para alimento; floridas para embelezar o ambiente e alimentar o beija-flor e dar sustento às abelhas; arbustos para proteção do solo e abrigo aos animais rasteiros.

Seria necessário que o reflorestamento invadisse as pessoas para que estas pudessem reaprender a viver livres na natureza. Livres de quê?? Da razão, pecado original descrito no livro de Gêneses quando Eva e Adão comeram do fruto da árvore do conhecimento e foram expulsos do Jardim. Reflorestar é a possibilidade de voltar ao Jardim. Só os jovens da AJI podem fazer isso, os “brancos” estão tão contaminados com a racionalidade que não suportam a ideia de preservação ambiental.

Reflorestar as ideias também é saber que no entorno estão os inimigos, beligerantes, estúpidos e absurdamente arrogantes. Sim, os “brancos”. Decididos a eliminar o último bastião de floresta, não saberão jamais o significado de reflorestamento até que a última gota d’água seque na última raiz de planta vendida em commodities internacionais. O homem “branco” expulso do Jardim do Éden, fatalmente sofrerá dos males do Apocalipse.

De repente fiquei me perguntando: Por que eu estava lá? Talvez como Cazuza, que dizia que a burguesia fede e que ele também era burguês, mas era poeta; não sei, talvez: Ser poeta, para Cazuza pode ter sido a sua tomada de consciência de que os seus burgueses já estavam apodrecidos, fedendo. Quem sabe este “branco” não tenha descoberto a mesma coisa. Pois bem, Cazuza, eu sou branco, mas sou poeta!


domingo, 26 de setembro de 2021

AS MALAS PARA VIAGEM

Estou pensando em tirar umas férias e já comprei as passagens e até fiz a reserva do hotel. Disse isso a um amigo e ele me perguntou, com uma certa cara de espanto, se eu estava trabalhando, disse que não, não formalmente, mesmo assim quero tirar férias. Férias de quê? Perguntou. Ora, férias é exatamente quando não se precisa ter um “que”, “de quê”, “por quê”, ou seja lá o que for. Em vez de ficar me questionando sobre trabalho, por que não pergunta por que não vou levar uma mala que caiba pelo menos o skate?

Da última vez que viajei com meu filho, fomos para Aracajú, em Sergipe. Lá tem, na orla da praia, um conjunto de quadras de esporte e uma belíssima pista de skate, tive que comprar um para meu filho e quando chegamos no aeroporto, para embarcar de volta, ninguém sabia o que fazer com o brinquedinho, na mala não cabia, estava cheia, na mão não podia levar, mas como não tinha essa bobagem de limite de dez quilos, o atendente do guichê achou por bem amarrar o skate sobre a mala com alguns metros de fita adesiva, ficou uma graça, mas o brinquedo chegou são e salvo.

Quero ir para Natal, no Rio Grande do Norte, e a operadora do pacote de viagem foi logo avisando que a bagagem tem regras que devem ser lidas no site da empresa aérea. Fui ver, diz que posso levar uma mala de mão com não sei quantos centímetros de comprimento, largura e altura e pesar no máximo dez quilos, com mala e tudo que tiver dentro. O skate não cabe na tal mala e se coubesse eu ficava sem roupas para usar durante o passeio. Pensei em pagar para despachar uma mala maior, fui pesquisar e vi que posso, é só pagar a passagem da mala e tudo bem, só que não tem assento para ela. Mas daí achei outro problema, o pacote de viagem inclui transfer do aeroporto até o hotel. Mandaram ler as regras e eu vi que se despachasse a mala, ela não seria levada do aeroporto para o hotel, nesse trecho, nem pagando passagem para a mala, eu teria que ir para o hotel com a mala de mão, depois contratar um Uber para levar a mala, ou deixar ela no aeroporto até a volta.

Não sei que pensamento é esse que vai sempre dando um jeito de tirar o conforto dos passageiros. Quando comecei a viajar de avião, e não era nem de férias, era a trabalho, podia despachar malas enormes sem nenhum incômodo e era até divertido esperar para pega-las no destino. As refeições eram servidas em bandejas enormes com tigelas de porcelana e talheres de metal, devo ter algumas comigo que peguei de lembrança. Servia-se bebidas a vontade, bebidas sim, uísque, cerveja, vinho, refrigerante, etc. e não era primeira classe que trabalhador não anda nisso. Agora, a moça passa e pergunta se a gente quer um salgadinho ou uma bolacha.

Não estou trabalhando, mas me dei ao trabalho de fazer uma pesquisa sobre isso. Queria saber o motivo desse comportamento nas empresas aéreas. A resposta foi animadora: tirando as refeições, as bebidas e as malas dos passageiros, as passagens ficariam mais baratas e o consumidor teria então a vantagem de viajar mais. Fiz os cálculos: Bebidas e refeição durante uma viagem, uns trinta reais, a passagem da mala, uns cinquenta reais, o que dá de economia oitenta reais. Uma passagem para o nordeste custa uns dois mil reais. Então, se eu economizar oitenta reais em cada viagem, para eu poder viajar “mais”, pelo menos uma vez, eu teria que primeiro, ter viajado umas vinte e cinco vezes! Sem mala, nem refeição e nem bebidas.

Sério, eu prefiro as malas!

terça-feira, 21 de setembro de 2021

A MORTA

Eu sou só um escritor. As pessoas me contam histórias e eu não me importo se elas são inventadas ou verdadeiras porque quando elas me contam, na cabeça delas as histórias são muito verdadeiras. Quando são contadas pessoalmente dá para notar na expressão das pessoas o tanto que aquilo faz sentido quanto o relato acontece. E essa que vou contar a seguir me foi contada pessoalmente e eu acredito que foi verdadeira porque o semblante, os gestos, o sorriso e até al lágrimas testificaram a verdade da história. Mas eu não estou interessado se era verdadeira ou não. O que importa é a história que eu vou contar.

Meu nome é Quinto, ele disse. Meu pai queria ter cinco filhos, o primeiro nasceu e foi batizado com o nome de Primo, depois veio a Marlene, daí os gêmeos Mario e Maria. Eu nasci e meu pai foi ao cartório para me registrar, o cartorário perguntou pelo nome e ele estava feliz, disse que ia ter cinco filhos e a meta fora alcançada eu era o “quinto”. O cartorário não perguntou mais nada.

Na minha infância, continuou, eu sempre fui muito tímido, na adolescência também, mas isso não interessa. Agora sou adulto, já tenho emprego e vivo no meu apartamento por minha conta. Tenho trinta anos e só agora encontrei a garota dos meus sonhos. Ela é linda! Sempre fiquei sozinho, em casa, ou seja lá onde quer que eu fosse numa festa, sempre estava só. Logo que chegou, dei-lhe o nome de Shepe que um site da internet, mas agora eu a chamo de Morta. Não é uma morta qualquer dessas que se não enterrar logo começa a cheirar mal. Não, a minha Morta é uma morta que acabou de morrer eternamente.

Depois que comprei a Shepe, duas colegas do escritório onde trabalho quiseram saber se eu namoro com ela. Sim, eu disse, comprei ela para dormir comigo, ela é minha namorada! Acho que elas ficaram com ciúme, mas não tem nenhuma necessidade, eu nunca fui namorado delas. A Celeste até falou que queria namorar comigo. Não quero, eu disse, agora tenho a Shepe. A Shepe, ela disse, é morta! Não tem importância, eu disse, acho que ela sendo morta pode ser até melhor. E, eu gostei de trata-la por morta. Gostei tanto que daí em diante passei a chama-la assim.

Quando saio do escritório, tenho pressa de chegar em casa e saber se minha Morta ainda está lá à minha espera. De manhã, antes de sair deixo ela confortavelmente sentada sobre umas almofadas a um canto da cama contra a parede e coloco um livro aberto sobre suas mãos para que ela não fique entediada pelo dia todo da minha ausência. Chego em casa ao entardecer, tomo-lhe o livro e vamos juntos tomar um banho na banheira.

Semana passada recebi a visita do João e a Mara. Eles são casados há uns dez anos e nunca tinham vindo me visitar. Agora vieram e eu estava jantando com a Morta quando a campainha tocou. Eles riram de mim e acho que não entenderam porquê eu jantava com a Morta. Pedi que sentassem e coloquei mais dois pratos e repartimos a comida que era mesmo suficiente pois eu gosto de fazer comida a mais, daí sobra para o dia seguinte. Durante o jantar eles queriam falar somente da Morta, tentei mudar de assunto, mas eles sempre diziam: ‘A tua morta, ela é boa companhia?’, ou coisas assim. Eu respondia que sim com a maior naturalidade. Só pararam de falar da minha Morta quando a Mara desconfiou que seu marido havia mentido para ela sobre qualquer coisa que não entendi. Ela olhou para ele com aquele olhar que a Morta nunca fez para mim e ficou longo tempo em silêncio dando empurrõezinhos na cadeira para se afastar dele.

Depois que eles se foram, a Mara saiu na frente quase sem se despedir enquanto o João tentava disfarçar, eu bati a porta e liguei o computador numa dessas rádios pela internet que toca música romântica, estava tocando Lullabay. Convidei a Morta, daí dançamos e o rádio cantou mais e mais músicas, então levei a minha Morta para o quarto e fizemos amor. De manhã, quando deixei a Morta sobre as almofadas com o livro do Camus, fiquei pensando na Mara, será que fizera amor com o João?

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

CASADOS PARA SEMPRE

             Josenildo é desses sujeitos que se pode chamar de douradense da gema! Seu bisavô fora soldado na Guerra do Paraguai, lutou ao lado de Antônio João na Retirada da Laguna, que ficou conhecido como o Combate da Colônia Militar de Dourados. Foi uma batalha difícil onde apenas quinze valorosos soldados brasileiros enfrentaram três mil e quinhentos paraguaios, morreram todos e os paraguaios ocuparam a colônia militar.

Foi bem aqui, dizia Josenildo ao lado da estátua do herói da Laguna, foi bem aqui onde está a estátua do Antônio João, que meu bisavô morreu lutando pelo Brasil. A estátua fica na praça central da cidade de Dourados a uns 170 quilômetros de onde ocorreu a tal batalha, mas nada disso importa para o bisneto do herói desta nação. Josenildo quer mesmo é se casar e o sangue do heroísmo de Laguna que lhe corre pelas veias, pode bem ajudar, não pode? Melhor casar que viver abrasado!

A viúva do bisavô Juanito teria chorado a morte do valente marido até o exército brasileiro liberar o pagamento das pensões às viúvas de militares mortos em combate, ou não. Marli Ojeda, viúva de Juanito, decidiu nunca mais se casar para não perder o direito, mas teve outros três maridos informais e do terceiro nasceu José Ojeda, avô de Josenildo. Depois de ser condecorado por três vezes durante as comemorações do aniversário da heroica Retirada da Laguna, José casou-se com a paraguaia Marilisse de Atagua. O Prefeito de Bela Vista propôs à Câmara de Vereadores a cassação das homenagens. Aprovado por unanimidade, José não compareceu para devolver os diplomas, fugiu com Marilisse para Ponta Porã onde, dizia, poderia facilmente atravessar a fronteira e seria herói de um país estrangeiro.

Em Ponta Porã lhe nasceram quatro filhos: Ramon, Rodrigues, Júlio e Pablo, este muitíssimo aplaudido quando desfilou vestido de Antônio João pelas avenidas da cidade num 7 de setembro. Era ano eleitoral e Pablo foi eleito vereador. Em discursos inflamados exaltava o heroísmo dos bravos soldados liderados por Antônio João. Logo o reconheceram como o herói da Pátria e elegeu-se facilmente prefeito com o apoio do ainda incipiente comércio ilegal de produtos contrabandeados do Paraguai para o Brasil.

Não podendo conciliar a legalidade exigida pelo mandato e as concessões ilegais exigidas pelos traficantes, caiu em desgraça. Fugiu para o Paraguai levando consigo as menções honrosas concedidas ao seu Pai José em Bela Vista. Lá lhe nasceu Josenildo à uma pobre paraguaia pestilenta que lhe servia as refeições e limpava a casa, além de atender-lhe os desejos sexuais. Pablo morreu miserável deixando a pobre serviçal sem seu emprego e ainda grávida. Ao lhe nascer o filho, pôs-lhe o nome de Josenildo, este cresceu com graça e alguma sabedoria, mas era feio tal qual a mãe. Aos catorzes anos decidiu recuperar a honra da família, juntou os méritos concedidos ao seu avô José e rumou à Dourados, disposto a se casar e tornar-se político influente.

Dia após dia punha-se na praça denominada Antônio João, ao lado da estátua do herói em discursos patrióticos à espera da bem-amada que lhe seria a esposa até que a morte os separe. Na semana da pátria, enquanto fanáticos bolsonaristas desfilavam seus carros de luxo, um anjo lhe apareceu ao lado da estátua. Era o anjo da medida de uns três metros, um pouco maior que a estátua de Antônio João, por isso Josenildo lhe respeitou quando pôs à frente a mão direita com o dedo indicador ao rosto do bisneto do heroico soldado e lhe disse com voz segura:

- Três mentiras hão na tua história; primeira: Teu bisavô Juanito era paraguaio; Segunda: A Colônia Militar de Dourados nunca foi em Dourados, mas em Antônio João que fica a 170 quilômetros de Dourados e, finalmente a terceira: tu és muito feio, como tua mãe, e nunca te casarás!

Mal o anjo se foi e os olhos de Josenildo ainda estavam postos nas nuvens quando Milena, uma das mulheres mais lindas da cidade, bandeira do Brasil aos ombros, tomou sua mão e, olhos molhados, mãos trêmulas, mal conseguiu gaguejar:

- Você é Josenildo?  Bisneto do herói da Pátria? Casa-se comigo?

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

DÊ SUAS DICAS DE VIAGEM PARA NOSSA COMUNIDADE

             Desde fevereiro deste ano ando cumprindo missão no Paraná, mas volta e meia, venho para Dourados onde tenho meus filhos e trinta e seis anos de história. Não tenho casa aqui, mesmo tendo duas. Quer dizer, não tenho moradia, já que levei a mudança, dado que a missão deve se prolongar por um tempo ainda não definido, então, quando venho à Dourados, hospedo-me em algum hotel. Da última vez, fiquei no Alphonsus, que agora não mais se chama Alphonsus, mas Bravo City Hotel, uma rede de hotéis que jura vai revitalizar o Alphonsus e, parece, já implementaram algumas melhorias em áreas importantes como a academia e a sauna, além de outras que não me chamam muito a atenção.

Estou fazendo propaganda do Bravo City? Sim, tanto quanto faço da cerveja bohemia! Não tenho nenhum compromisso com um e nem com outro, só gosto de gastar um tempo com quem me faz bem. Já fiquei hospedado no Ellus, no Figueira Palace e estou com vontade de reservar o Delírio Motéis e Pousada ou quem sabe o Céu do Mato - Eco Hostel para próxima viagem que já se aproxima, mas tem algo que no Bravo City parece peculiar.

Fiz a reserva pelo Booking.com, e booking significa exatamente reserva, então, fiz a reserva no reserva.com.  Deixemos os estrangeirismos de lado e vamos ao que interessa: Nem todos os hotéis podem oferecer o mesmo atrativo que o Bravo City! Além do atendimento que, como em todos os hotéis é cortês, um café da manhã bom e apartamentos aconchegantes, tem uma piscina com atrativos que só ali pude constatar. Muitos hotéis em Dourados nem piscina tem e eu acho isso um diferencial, não porque me deleite em me banhar em águas frias de piscina, mas porque gosto do ambiente para escrever minhas crônicas que vão diretamente da piscina para o meu blog e o Jornal Folha de Dourados, onde publico meus escritos.

O site Booking.com pediu para eu avaliar o hotel e dar algumas dicas da viagem para divulgação a outras pessoas que possam eventualmente se interessar por Dourados. Pensei imediatamente em dizer que Dourados é o lugar onde o tempo pode deixar de existir quando se toma uma bohemia na beira da piscina em companhia da belíssima Marina, exclusividade deste lugar. Pensei também em dizer que esta cidade, que se chama Modelo, tem tudo par ser uma das mais mal administradas que conheço, políticos corruptos e comerciantes gananciosos, mas seria redundância. Então me lembrei da piscina do hotel e da Marina, que não está disponível para quem quer que se interesse em fazer turismo por esta cidade.... Modelo! Ela só não é exclusiva por causa do Mia Couto, impossível concorrer!

Mesmo não sendo um escritor admirável, me dispus a escrever na piscina do Alphonsus, ou Bravo City, como quiser. Mal comecei minhas mal traçadas linhas e um Urubu, isso mesmo, um Urubu, veio voando em direção à piscina e pousou sobre a viga acima da grade, olhou-me com algum interesse que não compreendi muito bem, desceu até o piso, andou como se desfilasse e aproximando da água, bebeu como quis, olhou-me outra vez como a perguntar qualquer coisa e foi-se embora.

Onde, eu pergunto, um Urubu é atração turística se não na piscina do Bravo City Hotel?

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

OS POBRES DEVEM ECONOMIZAR

Hoje, vi na televisão que se deve economizar energia elétrica porque os preços aumentaram. Quase me incomodei. Deixei para lá, afinal o sistema político e econômico é liberal e nesse modelo de governo, cada um ter liberdade de fazer como quiser. O governo diz que a culpa é de São Pedro que tomou a liberdade de não mandar as chuvas necessárias para encher os reservatórios, assim, além de economizar luz também se deve economizar a água. Aí tudo faz sentido, o segredo é não tomar banho!

O que eu não entendi bem foi a atitude de São Pedro. O Brasil está sob o comando de um governo terrivelmente evangélico, que se diz fiel seguidor da palavra divina e de todos os seus preceitos. Sendo são Pedro o chefe da portaria do Céu, certamente conhece muito bem a literatura celestial e, sendo ele mesmo o comandante das torneiras, deixa nosso país, terrivelmente evangélico, sem as chuvas temporais e até mesmo a serôdia. Haveria de São Pedro ter reivindicado cargo no governo e o Centrão recusado?

Mesmo o presidente tendo dado mostras, em tempos pretéritos, de que seria ele quem manda, agora, na prática já não manda mais. O presidente, no caso, o da Câmara dos Deputados, o Arthur Lira é, de fato, o chefe de governo. Nem sei porquê escrevi deputados com letra maiúscula. Teria ele dado um golpe de estado e deixado uma figura decorativa no planalto? Bem, pelo menos em termos de nomeações de assessores disso, daquilo e daquiloutro parece que sim, o Lira indica e o Bolsonaro diz sim, sim e assina a nomeação com a caneta Bic.

No dia da Independência, os dependentes agro negociantes vão à Brasília dar seu grito de dependência! Nunca antes neste país se distribuiu tanto dinheiro a pessoas tão ricas! Não vi os termos do acordo entre governo e o agronegócio, mas suponho que talvez se ofereça um carguinho qualquer ao chefe da chuva. Talvez uma filiação ao PP com promessa de vultosos recursos do fundo eleitoral, sei lá. Se não tiver acordo desse governo com a equipe de São Pedro, o agronegócio sai do apoio, isto é certo. Não adianta financiamento barato e preço alto de mercado se não tiver produção!

E a televisão noticiou outra vez que é necessário economizar energia. Fez até uma reportagem mostrando uma casa de pessoas bem pobres que só tem duas lâmpadas dentro de casa e, se desligarem uma, não tomarem banho e nem abrirem a geladeira mais que duas vezes no dia, então o governo dará um desconto na conta de energia.

As pessoas mais pobres precisam economizar, disse o repórter, para que não falte para os ricos que precisam ligar o ar condicionado para ter conforto para sua família, seja de dia ou de noite. Ah, isso o repórter não disse!

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

OS VENDILHÕES DO TEMPLO

Antes de começar a escrever este conto, devo dizer que sou Cristão, ainda que eu não siga nenhuma denominação em especial. Também diria que sou Crente, esse nome que dão para crentes não católicos romanos, ainda que discorde veementemente de muitas denominações que se autodenominam evangélicas, mas que mais parecem empresas capitalistas e que não têm nenhum pudor em adorar a dois deuses ao mesmo tempo, ainda que a bíblia o proíba. Dito isto, vamos ao texto propriamente.

Eu tenho um amigo que mora num país Sul Americano e ele diz que por lá as igrejas são muitíssimas ricas. O segredo, disse, está na liberdade religiosa. Não me espantei, pois aqui no Brasil também temos liberdade de organização religiosa e igrejas muito ricas, ao que ele acrescentou o que seria o tal segredo. O segredo, repetiu como se fosse realmente algo muito secreto, é que lá no meu país, qualquer um pode abrir uma igreja, fazer-se pastor, cadastrar na Receita Federal e com o CNPJ em mãos reivindicar até o terreno junto ao poder público sem ter que pagar nada, e daí vender a promessa do Céu para aqueles que pagam o dízimo e pronto, logo a igreja se enche de esperançosos miseráveis, assim como enche também a conta bancária do pastor.

Como falava à sério, cenho franzido e tudo, pensei tratar-se de um pequeno país administrado como um fazendeiro cuida de uma fazenda de gado. Sim e não, disse. O presidente administra mesmo como se fosse uma fazenda de gado, ele berra para um lado, grita para o outro e o gado o segue fielmente, mal sabe que vai para o matadouro. Mas, não é um pequeno país, é um dos maiores do continente, prá lá de duzentos milhões de habitantes, incluído os bovinos que seguem os gritos e os berros!

Perguntei-lhe sobre o governo do país e sua relação com as igrejas, já que aqui isso parece tão evidente. Respirou fundo, ergueu as mãos ao ar em pequenos círculos, olhou-me com aquele olhar intrigado de quem quer, não querendo, responder uma pergunta, fechou a mão esquerda diante de si e com direita espalmada em direção ao meu peito, afirmou com segurança e tristeza no olhar que, se não fosse o Superior Tribunal Federal, o presidente já teria colocado placa de igreja em frente de seu palácio e se autonomeado pastor titular da igreja com o nome do país. Pelo sim, pelo não, apresentou uma reforma tributária prometendo instituir o dízimo. Para ser ministro, disse, não importa a idoneidade, basta ser terrivelmente evangélico!

E o povo, perguntei, está feliz? Feliz? Sim. Os banqueiros e os latifundiários estão felicíssimos! E o gado pasta! Pensei ser isso uma metáfora. Não é possível que banqueiros e latifundiários paguem o dízimo. Não!!! Quase berrou. Banqueiros e latifundiários não pagam impostos, eles são tidos por deuses, são adorados pelos do povo. Quando um destes aparece em público, o que é raro, normalmente ficam reclusos em seus templos, mansões, resorts, casas de praia, fazendas, etc., mas quando aparecem no meio do povo são reverenciados como a santos da igreja católica, o povo põe-se de joelhos diante deles.

Então perguntei: E os católicos, por lá devem ter muitos, eles também adoram deuses relacionados às riquezas? Eu sou suspeito para dizer, falou abaixando a cabeça. Não me confesso católico, mas, se Martinho Lutero voltasse, seria imediatamente mandado vivo para a fogueira, tamanho é o empenho em vender objetos santificados pelas redes de televisão da igreja.

Dito isso, danou a chorar como criança. Chorou um vale de lágrimas. Depois de algum tempo em silêncio, tomamos de um livro de Albert Camus e conversamos por um longo tempo sobre o absurdismo.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O CASAMENTO DA BRUNILDA

- Mãe, estou tão feliz!!

Mais que feliz, a Brunilda estava radiante! Novo Sarandi é uma cidade pacata, onde todos se conhecem e não dá para fazer um evento sem que a notícia se espalhe.

- A Vó, mãe, ela vai na festa?

- Não, filha, não fica bem, ela nem fala mais. Melhor ela ficar em casa, já contratei uma cuidadora.

Brunilda olhou-se no espelho e viu a Lua, e o mel escorrendo. Tão distante a Lua quanto o tempo que haveria de durar a paixão; tão doce o mel quanto o amor que espreme os corpos e retorce o favo, colhe o doce sabor em cada gota nas entranhas do bem querer. Já colhera o fruto, é verdade! Contratado em Cartório. Não fosse a pandemia e o padre já os teria abençoado há tempos! Mas, como, se não for acompanhado de uma grande festa? Agora, sim, diante de Deus e dos homens, o mesmo Deus que não faz acepção de pessoas e homens que se acham melhores que os outros, Brunilda irá se casar!

- Que bom que o tio chegou. Uma viagem tão longa, pensei que talvez não viesse.

A distância e o parentesco têm quase a mesma medida. Laços que amarram o tempo, nós que seguram sentimentos de pertencimento. A Vó que agora já não fala palavra, gerou o tio, as tias e o pai, é a mesma que, ainda garota, viera do Sul em aventuras da família para recomeçar a vida por esse descampado. Se ela falasse, o que diria?

- Olha, mãe! - Brunilda tirara os olhos do espelho para pô-los através da janela. – Um bem-te-vi, está fazendo seu ninho onde até ontem uma pomba rola chocava seus filhotes...

O seu ninho haveria de ser original. Nada de bem-te-vis, nem de chupins. Os filhotes haverão de ser chocados em brumas de Avalon.

- O Padre vai nos abençoar, mas ele não há de mandar na minha casa. É bom ser mãe?

A mãe passava as mãos pelos cabelos da filha, puxando um cacho por sobre o ombro. A mão espalmada acolhia a mecha de loiros cheia de sonhos de meninice. Um filme se lhe passa na memória. É bom ser mãe? Fechou a mão e virou-se para a janela, queira esmurrar parte do passado. A filha vai se casar.

- Sim, filha, é bom...

- A Vó não vai na festa, já não pode mais. A tia que mora ali do outro lado da rua, a irmã da Vó, ela vai?

- Não filha, ela também já está muito velha, não a convidei, ela anda bengala, não ia ficar bem lá na festa.

- Quando meus filhos se casarem, vai ser feio se eles te convidarem para a festa?

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

A DANÇA

             Genilson chegou ansioso, passou os olhos aflitos pelo ambiente na esperança de não ver conhecidos por ali. Entre as mesas, desalinhadas, atravessou risos e conversas soltas, copos sendo cheios e esvaziados, um jovem casal trocava um beijo rápido, a moça da outra mesa acariciava a mão do namorado e olhares cúmplices indicavam que algo poderia acontecer mais tarde. Um jovem tímido corou as bochechas quando a garota disse que queria namorar.

No balcão, pessoas avulsas davam conta da solidão bebendo cerveja. Um verdadeiro quebra-cabeça onde peças poderiam se encaixar perfeitamente não fossem os muros construídos entre os jogadores.

- Uma cerveja, por favor....  Posso sentar?

- Não sei, pergunte para o dono do bar...

- Bem, acho que isto significa que posso, você é muito gentil, obrigado.

- Se pensa que vamos conversar, esquece. Só quero ficar aqui, calada.

- Com pouca espuma. Obrigado. Não quero. Se quisesse conversar estava lá na mesa com os amigos. Não quero os amigos. Só quero uma cerveja...

- Aai, disse a moça, atropelada por um cliente. Virou rapidamente a cabeça, palavrão escorrendo pelo beiço, recolhido rapidamente pela língua e devidamente engolido diante dos lindos olhos azuis que se desculpavam enquanto o corpo balançava alcoolizado.

- Desculpe..., eu... só quero mais uma... uma... cerveja.

- Eu quero mais do que uma cerveja...

- Achou... o cara certo.... Foi tudo o que conseguiu dizer antes de cair completamente desacordado.

Genilson tomou a cerveja totalmente alheio. Eu sei o que você sente, disse olhando para dentro do copo como se conversasse com a cerveja.

- Falou comigo? Perguntou a moça voltando para a banqueta ao balcão, passando as mãos pelos cabelos e ajeitando a blusa. Antes de sentar puxou a mini-saia para baixo, esfregou as mãos uma contra a outra e quase sorriu.

- Não, não falei contigo. Você não quer conversar. Só disse que sei, também perdi meu sorriso para um olhar brilhante.

- Eu ia me vingar. Tomara que não tenha morrido.

O bar, que assumira um silêncio sepulcral, voltara a vida. Não se faz velório no bar.

- Você a amava?

Genilson rodou o copo e o líquido dentro fez ondas que iam e voltavam acompanhando as bordas. Na parede, atrás do balcão, acima da portinhola que dava acesso à cozinha, uma pintura mostrava um casal dançando ao som de uma banda de música.

- Eu não sei dançar.

- Não precisa, eu dançava muito bem. Não sei fazer ondas.

Um carro do Conselho Tutelar encostou no meio fio. Uma senhora uniformizada entrou no bar acompanhada de dois policiais. Duas garotas tentaram se esconder no banheiro, foram levadas à força.

- Também fui presa, três vezes, disse a moça, mas onde deviam fiscalizar nunca foram.

- Eles pagam bem?

- Sim.

- Então é melhor eu me conformar!

- Como é o nome dela?

- Salete.

- Eu já vou, talvez eu a encontre no meu trabalho.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

AVES DE MAU AGOURO

             Às nove horas da manhã ainda tem sombra na piscina, no quinto andar do hotel. Uma espécie de mezanino onde fica o bar, impede que os raios solares chegarem até a água que permanece morna, aquecida pelas muitas tardes de sol que antecederam esse dia em que Joaquim parece ter percebido aquele sentimento de extrema solidão. Alguém precisa filtrar essa água, pensou.

Por cima dos telhados vê a rua, lá embaixo, onde pessoas tristes andam em frente das lojas. Coloca os dedos polegar e indicador diante dos olhos para medir o tamanho dos transeuntes, três milímetros, calculou. Um carro estacionado mede um pouco mais, talvez meio centímetro. A loja, só o térreo, um centímetro. Ergue os olhos uns dois centímetros e encontra um prédio de apartamentos, há duas quadras de distância. Contou as janelas, doze andares, dois centímetros. Se pudesse ver as pessoas dentro dele, não teriam sequer um milímetro. Não significam nada!

Às nove e quinze chegou um moço vestindo uniforme de trabalho, disse bom dia, abriu uma tampa metálica num canto e desceu por uma escada de ferros fixos numa parede. Desapareceu por baixo do piso. Algum tempo depois subiu de volta. Roberto, disse e seguiu seu caminho desaparecendo numa porta atrás. Joaquim perguntou seu nome, mas não lhe pediu nada mais. Só o nome. Antes que desaparecesse pela porta, mediu-lhe a altura, oito centímetros. Este piso está sujo. Um urubu aterrissou próximo da piscina, bicou as penas das costas, abriu e fechou as asas, aproximou da borda e tomou da água. Andou um pouco sobre o piso sacudindo o corpo e arrepiando as penas, voou por cima do cercado e desapareceu.

Ruídos da cidade sobem até o quinto andar do hotel. Joaquim está em pé. Ao lado da piscina o esperavam quatro mesas, cada uma rodeada por quatro cadeira. Espreguiçadeiras, também quatro, se ofereciam ao seu descanso. Joaquim tem quatro filhos. Teve quatro casamentos. Acumulou quatro milhões em patrimônio. Roberto foi embora, desapareceu por detrás da porta. Não tem ninguém na piscina. Só um quadrado. O horizonte não pode ser visto, só os prédios ao redor do hotel, prédios de apartamentos, todos altos, doze andares, ou mais. Não se poder ver ninguém dentro deles. Assim, vazios, não tem nenhum valor. A cidade é muito barulhenta.

Pronto Seo Joaquim, os sanitários estão limpos e desinfetados! Roberto? Então ele estava ali? O tempo todo? Ele viu o urubu? Sim Seo Joaquim, eles sempre vêm. Dizem que são agourentos. Tomam da água da piscina e vão embora. Para a liberdade. Não fazem mal a ninguém. Roberto? Não estava mais ali, ninguém está, todos desapareceram. Pela porta? O barulho da cidade aumentou! O que querem as pessoas como todo esse barulho? Se é o meu dinheiro, podem pegar, quatro milhões em patrimônio. A água da piscina está limpa, num tom azulado refletindo o céu absolutamente limpo. Joaquim aproxima-se da borda, abre os braços como se abrisse as asas. Sacudiu o corpo, então abaixou-se bebeu um pouco da água. Andou pela borda da piscina, daí subiu sobre a cerca e voou. Dizem que os urubus são agourentos. Eles não fazem mal a ninguém.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

BILHETE PARA A SANTINHA

             - Se tem uma coisa que essa pandemia fez bem, disse meu amigo Joaquim, é que acabou com as novenas! Joaquim não era jovem e isso se percebe claramente pelo nome. Não só o nome, Joaquim tinha belos cabelos brancos, ainda fartos apesar da idade em torno de setenta anos. Diariamente frequenta a academia ao ar livre instalada pela prefeitura na praça central do distrito, logo depois vai ao bar do Zé para umas cervejas com os amigos, eu, eventualmente, um deles.

-Agora está uma paz!, disse brindando com um copo de Antárctica e pediu que todos brindassem com ele, afinal, ninguém mais aguentava aquela rezação cada vez que aparecia uma data religiosa importante. E quando não era importante inventava uma, que dia de santo é todo dia, se fosse feriado, ninguém mais trabalhava. E ainda tem a capelinha que vai de casa em casa todo mês. Agora a Clarinda só reza o terço quando ela vem, depois é a televisão, todos os dias, mas daí eu não ligo, tô aqui tomando minha Antárctica.

Entre o terço da Clarinda, o programa do Datena e a missa da TV Aparecida, Seo Joaquim toma bem umas quatro garrafas, sem contar o que bebem os amigos. Quando casei na Igreja, falou entre a terceira e a quarta garrafa, achei bonito aquele lugar, as coisas que o padre falou, todo mundo sabia responder quando o padre rezava e tal. Depois continuei indo, decorei tudinho da missa, todas as falas, dá até para prever o que o padre vai dizer no sermão, é só prestar atenção nas leituras. Tem uma hora bem importante que o padre pede dinheiro para a igreja e no fim da missa a gente sai e só lembra de tudo de novo no outro domingo quando vai lá na igreja outra vez. Agora não vou mais.

Quando o Zé do bar veio com a quarta garrafa de Antárctica, Joaquim contou a história da santinha, a da capelinha que vai todos os meses na casa deles. É uma imagem de santa, disse. Feita de argila ou cerâmica, não sei, ela é trazida por alguém que tinha ela em casa e quando chega tem lá as rezas que se deve fazer. Tudo bem. Rezar é até bom. Mas da última vez que rezei com Clarinda, aconteceu um fato que daí em diante eu não quis mais rezar para a santinha da capelinha.

Quem trouxe a capelinha foi dona Quitéria, continuou. O marido dela faz já muitos anos que deixou de ser católico e o filho foi convertido para uma dessas igrejas de crente e acabou que levou a irmã para lá também. Só dona Quitéria que continua firme, uma verdadeira Beata. Mas, foi justo com a santinha que dona Quitéria trouxe que veio o acontecido que me deixou intrigado. Até pensei em virar crente, só que vim pro Bar do Zé. Aqui posso confessar tomando uma Antárctica.

A capelinha da santa veio normal, teve as rezas e tudo, eu que acendi as velas para a oração. No outro dia rezamos de novo para levar a capelinha da santa para a casa do João, o da oficina. Quando peguei a capelinha, que era eu que ia levar, vi um bilhete bem colado atrás que dizia: “Antes de levar, deve ser lido o texto bíblico contido em Êxodo 20:4 e depois Deuteronômio 5:8 e 9”.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

AS FILHAS DOS MILITARES NUNCA SE CASAM

             Há muitos anos atrás, num pobre e vasto país da região Sul das Américas, país este, diga-se de passagem, que havia participado de uma grande guerra promovida por interesses de outro país, europeu, que desconfiava que o comércio na região seria dificultado pelo grande desenvolvimento econômico de um terceiro país sul-americano, resolveu-se dar mais garantias para seus militares para atrair mais jovens à carreira.  Entre as muitas propostas de incentivo à caserna, decidiu-se que além das ex-mulheres, também as filhas e até irmãs solteiras teriam direito a uma pensão vitalícia, caso o feliz guerreiro viesse, infelizmente, perder sua vida no serviço à pátria.

Houve mesmo um grande interesse pela carreira militar. De olho nas pensões, nas guerras e na virilidade desses valorosos servidores da pátria, também cresceu enormemente o interesse das moçoilas casadoiras. Na rua do Ouvidor ouvia-se muito falar em como seria bom casar-se com um soldado. Muito mesmo se dizia das benzedeiras e ciganas que receitavam esse ou aquele chá de benzimento ou faziam tal ou qual previsão da carreira militar do futuro marido. Grande sucesso fez Dona Zaldina dos Prazeres que montou sua tenda na Praça do General, onde benzia as pretendentes para que seus filhos fossem a maioria do sexo feminino, elas serão seu melhor investimento, dizia enquanto cobrava alto valor pelo vaticínio.

Desde que o projeto da pensão fora aprovado e as filhas dos militares também passaram a receber pensão vitalícia, os atos fúnebres se tornaram eventos sociais importantes, com fotos nas capas dos principais jornais e comentários em todos os salões. Como se sabe, quando um assunto ganha as mídias, logo aparecem especialistas. Muitas pesquisas foram feitas e em pouco tempo se percebeu que, caso a guerra prosseguisse por um longo período, se teria, naquele pobre país, uma nova e importante classe social em ascensão, com remuneração garantida e vitalícia!

Jusciliano Pereira, neto de portugueses vindo para a Colônia ainda jovem, viu esta se tornar um país independente. Enquanto ainda se debatia com os hormônios da puberdade, tentou inutilmente ascender às forças da Marinha, buscou as Armadas sem sucesso, mas firmou-se como chefe de gabinete do Senador Adroaldo Jarride. Queria o cidadão Jusciliano dar segurança à sua família. Sabia ele que as mulheres pouco espaço tinham para fazerem carreira sem depender de um casamento e, mesmo este, se não fosse com um militar, dependeria do marido vivo e, marido vivo, raramente representava o bem-estar para as mulheres naquele pobre país de memória colonial. Já sei, disse um dia, minhas filhas serão mulheres de militares, custe o que custar! Tem muitas vantagens, dizia, além de eles irem para a guerra deixando-as mais livres, se morrerem até mesmo as filhas estarão seguras para toda a vida.

Jusciliano foi abençoado com três filhos, um belo garoto que aos dezoito anos ingressou para a Marinha. Josephina, que se casou aos dezessete com o sargento Mathias e teve duas lindas filhas, orgulho do Vô. Cecília, coitada, formou-se professora e casou com o Manoel, bisneto de portugueses que tinha uma padaria na rua Quinze de Março. Por esse tempo, o mundo só falava da Grande Guerra Mundial, Sargento Mathias estava preparado para ir, mas seu país não foi lutar pelos ideais de Liberdade, pelo quê Jusciliano lamentou profundamente.

O tempo passou e, quando finalmente eclodiu a Segunda Grande Guerra e o exército convocou os militares para darem a vida na Itália, as netas de Jusciliano, filhas do sargento Mathias já estavam adultas. A mais velha realizara o sonho do avô, casando com o jovem soldado Araujo, recentemente convocado para a Guerra. Mas Adriane, já balzaquiana, para desgosto do pai e também do avô Jusciliano, enamorara-se de um jovem artista, queria casar-se com ele, mas se casasse perderia a pensão iminente, já que seu pai, o agora Tenente Mathias, acabara de embarcar para a Itália onde estaria na frente de combate, muito próximo da morte heroica e da sua pensão vitalícia.

- Então, exclamava tristemente, eu nunca vou poder me casar?

terça-feira, 3 de agosto de 2021

LEITURA BÍBLICA

             Estavam sentados num banco da praça conversando quando se aproximou aquele homem de terno e gravata, camisa muito branca e sapatos lustrados, o cabelo despenteado como se o vento tivesse mexido neles, vento refrescante, ótimo para aquela tarde ensolarada de novembro, ou talvez tenha passado a mão nos cabelos, deixando-os desalinhados. Trazia, também, uma grossa bíblia debaixo do braço.

- Paz do Senhor, disse o distinto e entregou um papel que, explicou, seria um guia para a leitura anual da bíblia. Basta seguir a tabela, ler diariamente e, exatamente no dia 31 de dezembro você vai terminar a leitura completa de todos os livros que compõe o compêndio bíblico.

- Bem na hora, disse Joaquim de oliveira, bem na hora, repetiu. Sente-se, convidou. Meu amigo Manuel e eu falávamos exatamente sobre isso. Eu mesmo nunca li a bíblia, mas meu amigo tentou várias vezes, mas para sempre no livro de Crônicas. Aquela sequência de nomes embaralha as ideias. Ninguém precisa ler aquilo!

O pastor animou-se, aceitou o convite feito pelo Joaquim e sentou-se no banco em frente dos amigos, não sem antes tirar do bolso um lenço, com o qual forrou o banco da praça para não sujar a calça do terno que usava, afrouxou o nó da gravata que lhe apertava o pescoço, pôs a bíblia sobre uma das pernas enquanto ouvia atentamente.

- Você deveria começar pelo Novo Testamento, disse calmamente. O Novo Testamento cancelou o antigo, e fez vária citações contidas nas cartas de Paulo aos coríntios, gálatas, etc., etc.

Joaquim e Manuel entreolharam-se espantados. Seus pais vieram juntos de Portugal, eram muito amigos desde os tempos da imigração. Católicos muito praticantes sempre tinham em casa o livro da Liturgia Diária onde diariamente se lia um texto do Antigo Testamento e logo outro do Novo. Como podia ser que o Antigo estava cancelado e ninguém ainda havia percebido?

            - Eu sou pastor, disse o distinto homem de terno e gravata. Então pegou sua bíblia e leu em 2 Coríntios 3.14: “Mas os seus sentidos foram endurecidos. Porque até hoje, o mesmo véu está por se levantar no Antigo Testamento, o qual foi por Cristo Abolido”.

Joaquim e Manoel entreolharam-se, mais uma vez, espantados. Seria o caso de os católicos nunca terem lido esse texto? Aí Joaquim resolveu copiar São Tomé e quis ver para crer. Tomou a bíblia do distinto e foi ver se estava mesmo escrito o que o sujeito lera. Estava! Enquanto pensava, foi folheando o livro de trás para frente lendo cá uma frase, acolá outra, até que leu: “Como em todas as igrejas dos santos, conservem-se as mulheres caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar...”.  O senhor pode me explicar está parte? Arguiu. É do novo testamento, não é?

- É, disse o homem de sapatos lustrados e camisa branca. Mas, temos que ter cuidado ao ler a bíblia. Este texto é da Carta de Paulo aos Coríntios e foi escrita com orientações específicas para o povo daquela época, mediante os costumes deles. Depois de se identificar como pastor, provou seu conhecimento bíblico com outras epístolas do Apóstolo com orientações específicas aos crentes de então.

Manuel, que até então permanecera calado, pediu a bíblia do pastor e, calado mesmo começou arrancar todas as páginas do Antigo Testamento jogando-as fora. O pastor protestou veementemente, mesmo assim, o filho de portugueses extremamente católicos continuou arrancando folhas do livro do crente, jogando fora todas as epístolas de Paulo, Pedro, João e Judas, ficando a bíblia somente com os Evangelhos e o Apocalipse.

- Agora está fácil, disse Manuel, ainda este ano leio a bíblia toda!

quinta-feira, 1 de julho de 2021

NUNCA MAIS VOU SUBESTIMAR A TERCEIRA IDADE!

             Terceira idade, como se sabe, é aquele tempo que as pessoas aproveitam para curtir o descanso por ter trabalhado muito durante a juventude e a idade adulta, a tal da segunda idade. A primeira idade, lógico é a infância onde não se trabalha. Antes de prosseguir, também lógico, devo constatar que não é a maioria dos que estão na terceira idade os que usufruem do descanso laboral, também não são todos que trabalham na juventude e idade adulta, já que grande parte são adeptos da teoria nem, nem, nem: Nem trabalha, Nem estuda, Nem ajuda em casa. Ainda tem uma galerinha que trabalha uma barbaridade na infância!

Em meio a todas essas exceções, sou um dos felizardos idosos que, de alguma maneira, pode usufruir da aposentadoria, mas em vez de descansar anda fazendo coisas que deveria ter feito na juventude e até na infância e não fez. De certa maneira, crianças deveriam brincar com crianças, jovens gastar suas energias com esportes mais radicais, tipo andar de skate, adultos trabalhar para se sustentar e idosos viver da aposentadoria num ritmo mais lento até que a morte o separe.

Cada um que responda por si, eu, de minha parte, acho que idosos devem usufruir de todos os direitos pelos quais lutaram durante todos os anos de vida. Não tenho nenhuma dificuldade de estacionar naqueles locais reservados para idosos, assim também sou um frequentador assíduo das filas preferenciais e, se algum comércio resolver dar desconto especial para a melhor idade, lá vai a identidade junto com o dinheiro no caixa.

De vez em quando faço alguma coisa que para mim é normal, mas que parece meio fora da caixinha. Normal para mim! Tenho uma slackline, que vez ou outra amarro entre duas árvores para “andar na corda bamba”. A internet tem umas loucuras que os jovens amam... deixa prá lá. Tenho uma Bike que gosto de pedalar feito alguém que ainda não tem direito ao estacionamento preferencial, e um skate...

Para o skate tenho que dar um parágrafo especial nesta crônica. Há uns seis ou oito anos atrás, meu filho adolescente me ensinou ‘pedalar’ no skate e nos patins. Isso foi lá no sítio, longe de qualquer plateia. Aprendi. E gostei! Pela internet comprei um Skate mini-longe, e fui treinar nas varandas de casa, depois nos parques e até nas ruas. Agora, oito anos depois, já me arrisco andar em praças públicas sem correr risco de dar vexame. Ontem encontrei uma galerinha, dessas que ainda estão na idade de brincar com outras crianças, e eles se empolgaram com meu skate. Enquanto uns empurravam os outros fui fazer umas barras, que me lembram os tempos de Colégio Agrícola, quando erguia o corpo para depois girar por cima da barra.

Um dos meninos que ali estava, talvez uns onze ou doze anos, me olhou espantado e sorridente, não se conteve e disse: Nunca mais vou subestimar a terceira idade! E pediu para ensina-lo como se faz.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

O OURO VERDE E AS ESTATÍSTICAS DO GEBORENHAUS

             José Carlos Geborenhaus é um sujeito pacato que vive em uma localidade pequena do Paraná, na fronteira com o Paraguai, onde trabalha como cartorário. Parece que tem uma praga nesta região, ele me disse quando conversávamos na feira livre em Marechal Cândido Rondon, quando lhe entreguei um panfleto do meu Poesia Verde. Os poetas entendem melhor as coisas, disse gesticulando ao ar como a querer pegar algo até então invisível, pelo menos aos meus olhos. Só então deu mesmo atenção ao panfleto: Verde! É isso, tem uma praga e ela é verde, os agricultores chamam de Ouro Verde.

Cartorário de longa data, há pelo menos trinta anos, Geborenhaus é um daqueles sujeitos que busca por respostas o tempo todo. À quais perguntas? Não importa! Seus pensamentos estão buscando informações que ‘talvez possam ser úteis’. Assim, passara a dedicar tempo e esforço em pesquisar nos arquivos cartoriais de sua pequena cidade sobre o porquê de haver cada vez menos registros de nascimentos e casamentos enquanto que o de propriedades aumentava ‘aproximadamente’ na mesma proporção. Mais propriedades para menos proprietários!

Uma conversa dessas pede mais tempo, então saímos do meio daquele tumulto de gente que rodeava as bancas da feira e fomos para o outro lado da rua onde tem um barzinho e ali ficamos vendo o movimento de longe, enquanto comíamos pastel e meu amigo tomava uma cerveja, não me arrisquei, na volta teria que passar pelo posto da polícia federal na rodovia entre Marechal Rondon e Quatro Pontes. Pedi um café com leite que bebi em goles pequenos, estava bem quente, ótimo para uma tarde fria de inverno.

Meu novo amigo mal tocou nos pasteis, bebeu cerveja e falou na mesma empolgação com que trabalhava no cartório buscando informações para suas perguntas. Não citava números específicos, não me interessa quanto, mas por quê! Franziu a testa, olhou para o movimento da feira do outro lado da rua, balançou a cabeça de um lado para o outro informando um ‘não’ dos seus pensamentos, tomou o pastel, do qual comeu a primeira de duas mordidas que daria, tomou mais um bom gole de cerveja, pôs o copo sobre a mesa e, com o dedo indicador diretamente ao meu rosto disse: Esses caras estão virando relíquias! É isso! Esse verde das verduras e legumes não é o ouro! Então calou-se, abaixou a mão que me indicava, mas continuou com o dedo indicando um lugar qualquer no chão, aleatoriamente conforme respirava. Ficou alguns segundos em silêncio olhando para o infinito atrás de mim, encheu o copo de cerveja que tomou de um gole só, encheu outra vez, ergueu o copo em minha direção com movimentos mais expansivos que fizeram a cerveja derramar abundantemente por sobre a mesa, tomou o que restou e pôs o copo outra vez na mesa, sobre a qual apoiou as duas mãos para se erguer. Em pé, olhou em volta e, com os braços abertos finalmente revelou seu surpreendente entendimento acerca dos números cartoriais:

- Commodities, isso, são as commodities!


QUANTO É MESMO ETERNAMENTE?

  Num sábado à noite não sei como mensurar o quanto é eternamente, o próprio sábado já me parece eterno, então, se somo a esse eterno a an...