Está chovendo
Esta chuva há de chegar até aí
Quando chegar
Molha tua mão
Hei de mandar com a chuva um beijo
Toma-o para ti
Põe em teus lábios
E hás de sentir minha presença
Está chovendo
Esta chuva há de chegar até aí
Quando chegar
Molha tua mão
Hei de mandar com a chuva um beijo
Toma-o para ti
Põe em teus lábios
E hás de sentir minha presença
Não sei de onde tirei essa ideia de ler Rubem Braga, mas certo é que pedi uns livros na Amazon e tenho gasto um tempo especialmente com suas crônicas. Algumas delas, escritas há setenta anos, parecem ser destinadas ao momento atual da política em Dourados, talvez ao próprio prefeito Alan Guedes. Teria ele, o Braga, uma bola de cristal ou, sendo um imortal da Academia, esteja ainda vivo e em sua imortalidade transite por tempos futuros para escrever no passado coisas do porvir!!! Ando pensando em me candidatar a uma vaga pela imortalidade. Será o presidente da ADL me aceitaria? Assim poderíamos deixar de lado coisas como a Farra da publicidade e focar em crônicas futuristas onde, quiçá, essa dinheirama toda seja destinada aos produtores rurais familiares e o povo tenha alimentos mais saudáveis.
A crônica ‘Bilhete a um Candidato’ parece ter sido escrita pessoalmente para o
Barbosinha, em 1.960!!! Atualíssima! Se o Candidato do DEM tivesse lido,
talvez não perdesse a eleição. Na época da eleição eu era presidente da
Associação dos Produtores Rurais da Agricultura Familiar do Alto Café,
provavelmente a Entidade que mais tenha se dedicado na construção de um projeto
viável para o desenvolvimento da piscicultura neste município. Queríamos
discutir o projeto com o candidato, mas ele lá não foi e seus representantes
diziam que já estava sobrando votos, a eleição estava ganha. Alan Guedes, foi
pessoalmente, acreditando na virada. Virou!
Virou Prefeito e rapidamente levou
para seu gabinete o cara que fazia a farra, da publicidade, quando o agora
alcaide ainda era presidente da Câmara de Vereadores. Talvez o mestre Rubem
Braga, com toda a ironia de que era capaz, dissesse ao Alan Guedes que, não
sendo tão sábio quanto o prefeito, seria incapaz de apontar todas as
maracutaias, mas que elas existem, sim, existem. Eu não sei, mas tem um ditado
que onde tem fumaça tem fogo! O Ministério Público, se mexer nessa fumaceira,
há de encontrar o braseiro ainda em chamas.
Me permita, Rubem Braga, revolver no
teu passado, tão presente, e dele copiar umas ideias críticas. Certamente não
hás de revirar-te no túmulo, afinal és um imortal da Academia e as tuas
críticas aos poderosos permanecem atualíssimas! Como dirias, não sou tão sábio
quanto nosso Excelentíssimo Prefeito, mas em meu humilde entendimento, um
milhão de reais, gastos sem nenhum benefício à sociedade, seriam suficientes
para custear todo o projeto da tão sonhada piscicultura em Dourados, com
produção de, no mínimo, cem toneladas de peixe por ano, processados e embalados
com selo do SIM- Serviço de Inspeção Municipal, para o comércio, gerando
emprego e renda a dezenas de produtores rurais da agricultura familiar, além de
proporcionar a proteína a preços mais acessíveis aos consumidores e ainda girar
o dinheiro dentro do município, desenvolvendo o comércio local.
Pois bem, Rubem Braga, não posso
dizer que a sabedoria das prioridades seja exclusividade ao Alan Guedes. Herdeiro
do Tal, o atual presidente da Câmara de Vereadores, estava animado para
contratar uma empresa para transmitir as sessões do legislativo e outras
notícias em redes sociais que ninguém, ou quase ninguém vê, pela bagatela de
uns oitocentos e cinquenta mil reais por ano, valor suficiente para instalar
pelo menos quatro abatedouros de peixe, o suficiente para atender toda a
demanda dos agricultores familiares do município.
Bem, não estando eu em cargo algum
dessa ou daquela gestão, talvez eu não consiga mesmo entender a importância de
se gastar aí uns dois milhões de reais em publicidade. Se fosse na produção de
peixe, então teríamos uma crise de superprodução, é isso???
Já pensou em comprar um apartamento de trinta metros quadrados, num resort de luxo, por um milhão e quinhentos mil reais? Pois é, tem quem compra, e não são poucos. Esse negócio é gigantesco e já se espalha pelo Brasil à fora com a promessa de um excelente investimento financeiro! Afinal, o que um cronista tem a ver com isso?
Às vezes as crônicas servem para se
fazer uma denúncia grave de um jeito bem-humorado. Rubem Braga era mestre,
escrevia críticas ácidas aos governos em forma de crônica, talvez na próxima eu
faça uma referência a ele. Hoje vou relatar o acontecido comigo, já pela segunda
vez, quando me fizeram essa proposta imperdível de investimento financeiro. Não
que eu tenha um milhão e meio de reais, se tivesse comprava uma fazenda em vez
de um apartamento.
As autoridades não ligam nenhum
pouquinho para esse negócio, afinal, estamos num país capitalista e liberal,
nada mais justo que tirar o dinheiro das pessoas, desavergonhadamente, e
receber medalhas de mérito pelo sucesso alcançado nos negócios! Funciona mais
ou menos assim: As moças bonitas fazem o papel delas, ficam pela orla, atraem
visitantes, oferecem prêmios se algum desavisado concordar em entrar e ver a
proposta. O prêmio é real, que me perdoem os malandros milionários, mas sabendo
que ia mesmo ganhar o brinde, aceitei gastar uma hora de meu tempo inútil e
conhecer o projeto.
Há uns três ou quatro anos atrás
quando estive em Caldas Novas, ganhei um almoço, agora o brinde foi de oitenta
reais para fazer um passeio turístico. Nada mal para quem tem consciência que
não vai mesmo fechar negócio milionário em uma hora de conversa. Por questão
moral, antes de entrar avisei que não faria qualquer negócio, a moça deu um
sorriso amigável e disse que se eu entrasse, além de ganhar o brinde, ainda a
ajudaria a cumprir sua meta, o seu salário depende de quantas pessoas ela é
capaz de enganar, quer dizer, convencer a ser iludido, digo, ouvir o que os
representantes da empresas tem a dizer. O salário deles também depende de
quantos eles conseguem enganar, quis dizer convencer a assinar imediatamente o
contrato de compra e venda de pelo menos uma parte de cinquenta e duas de um
apartamento de trinta metros quadrados.
A proposta não diz que tu estás
comprando um apartamento por um milhão e meio. Também não diz que tu tens que
assinar imediatamente o contrato. Mas, se concordares em assinar imediatamente
irás pagar a bagatela de trinta mil reais, mais alguma coisa, por uma de
cinquenta e duas partes, isso significa que o mesmo apartamento terá cinquenta
e dois donos, cada um podendo utilizá-lo por, no máximo, sete dias por ano!
Não tenho absolutamente nada para fazer nestes dias de Natal, então fico observando gente, isso enche de ideias um escrevinhador que de repente resolve se perder nos cafundós do Nordeste. E gente não falta, nestes tempos de pandemia o avião falava repetidas vezes da necessidade de se manter o afastamento e tudo o mais para evitar a transmissão do vírus, mas os assentos estavam todos ocupados e o distanciamento era de aproximadamente cinco centímetros entre um passageiro e outro, lucrar é preciso! A refeição, ou seja lá como chamam aquilo que se serve nos aviões hoje em dia, não foi servida por motivo de cuidados com a saúde.
E por falar em refeição, ontem fui
almoçar num restaurante chamado Caranguejo, pedi um prato com camarão e fiquei
um longo tempo curtindo música nordestina ao vivo até que o garçom trouxe a
comida. Podia demorar mais, nenhum problema na espera, além da boa música de
forró, na mesa ao lado tinha uma atração mais que especial, daquelas que dá
vontade de ficar ali só observando que não cansa. Também esperando pelo pedido,
um senhor de uns oitenta anos tomava suco de melão enquanto procurava por algo
no celular. Com o celular na mão, sua esposa, talvez com a mesma idade, se
deliciava num copo de caipirinha, bebericava, olhava a telinha, esboçava um
sorriso e voltava para mais um gole. Só por isso já valeu a espera, a música
veio de brinde. Só espero que o Couvert
especial que paguei tenha sido para esses artistas!
Do outro lado da rua um mar de gente
atraídos pelo mar de Ponta Negra, parecia ter esquecido completamente os
perigos da pandemia. Fiz umas contas com minha cabeça de matemático e calculei
que seria impossível servir almoço para toda aquela multidão sem que
acontecesse por ali o milagre da multiplicação dos pães e peixes, talvez camarão
ou quem sabe caranguejos. Observando com cuidado dava para perceber que boa
parte esperava mesmo por um milagre, mas pelo comportamento, acho que o Mestre
teria ido logo cedo para a outra margem do mar do atlântico.
Muito parecidos com templos religiosos,
os restaurantes escalavam seus ministros para receberem os visitantes na porta
convidando-os a entrarem onde eram recebidos com alegria e júbilo, participavam
do ritual dos pedidos, depois de ingerirem muita bebida muitos confessavam
publicamente seus pecados, se fartavam de comida até transbordar e por fim
deixavam na maquininha do cartão as suas ofertas abundantes.
Estávamos sem nenhuma pressa, o casal
de idosos e eu, eles com suas bebidas e o celular, eu com eles. Meu almoço foi
servido, olhei para a mesa ao lado, outro atendente servia uma panela de barro
da qual nossa talentosa personagem tirou um caranguejo e foi destruindo no modo
esquartejador, primeiro com as mãos e depois com um Socador. Finda a
caipirinha, veio a cerveja e eu, que tomava água mineral, fiquei pensando que
aos oitenta vou querer uma caipirinha e caranguejo com cerveja, se o destino me
presentear uma velhinha de companhia. Talvez eu volte para Natal!
Hoje estou em Campo Grande, cidade
Morena! por uma noite, amanhã me vou para o nascimento, não o meu, Natal, no
Rio Grande do Norte, só que para chegar aqui, na Morena, vindo de Dourados,
claro, tinha que ter uma parada na Água Rica. Os douradenses sabem muito bem o
que é esse lugar, ninguém vai à Campo Grande sem parar na Água Rica, lugar meio
mágico, lá tem, com certeza, a melhor Chipa
do mundo! O que é Chipa? Todo Sul Mato-grossense sabe, o resto do mundo acho
que não. Um dia eu estava em Brasília e pedi para a garçonete: dá uma ‘chipa’,
ela disse: O quê?
Quisera eu voltar ao tempo em que
parei pela primeira vez na Água Rica, ah, quem dera! Tinha eu então vinte e
dois anos de idade e me ia num Maverick
lotado de sonhos entre Campo Grande e Iguatemi onde meus pesadelos se
transformariam em literatura pela primeira vez. Aquele lugar no meio do nada
poderia ser só uma lanchonete no meio do caminho, não era, era a Água Rica! Meus sonhos de juventude se
transformaram em escritos no jornal A
Notícia e os cinco livros adquiridos em Iguatemi se multiplicaram na
biblioteca de Amambai onde virei quase literalmente um ‘rato de biblioteca’.
Jorge Amado me levou ao comunismo e este a muitas viagens à Cidade Morena, e
cada viagem a uma parada na Água Rica: duas chipas e um pingado, café com
leite.
Tomei um pingado e perguntei a idade
da Água Rica: 63 anos! Os poetas todos que conheço, todos, comeram chipa lá. Muitos comunistas, durante a
ditadura que tolerava a lanchonete, mas não as ideias; mitos cronistas que
driblavam a censura que parecia nada entender de figuras de linguagem; alguns
filósofos que insistiam em pensar quando isso era definitivamente proibido e
até músicos que teimavam em ver o dia ser novo apesar de você!
Depois do pingado, entrei na Van como
entrara dezenas de vezes na Parati do sindicato dos bancários quando era
diretor da CUT MS. Todas segunda-feira saia atrasado de Dourados para chegar
cedo em Campo Grande. Não tinha essa loucura de trânsito e andar a cento e
setenta por hora era, digamos, natural para um revolucionário que tinha pressa
em fazer a revolução! Uma senhora, talvez idosa, calculei uns sessenta anos de
idade, sentou-se ao meu lado e não parava de passar o dedo indicador pela tela
do celular parecendo adolescente.
- Ooooi, bibibijuju, ela disse para o
celular, onde aparecia uma imagem de criança. Que linda, titia tá com saudades,
ela dizia para o telefone sem se importar comigo no banco ao lado. Não pude
evitar a indelicadeza de olhar para a telinha, Julinana, do outro lado do
telefone, parecida nem se importar com a encenação da tia, enfiou o dedo no
nariz à procura de uma caquinha
qualquer e deixou o dedo lá até que a tia pediu pela n-ézima vez para ela
tirar, não tirou e a tia achou ela a sobrinha mais linda do mundo! Um minuto
depois e eu olhava a paisagem que passava em alta velocidade pela janela da Van
quando pensei estar alguém falando comigo, virei-me imediatamente para dentro e
outra vez olhei quase sem querer para a imagem no smartphone e a minha vizinha de assento falava com a mãe, era um
recado do Pedrinho. Aí lembrei do Pedro Vitor, meu filho, mas não liguei para
ele. Água Rica estava ficando para trás, mas a riqueza da vida fluía em alta
velocidade!
Dia 27 de setembro aconteceu um
debate com as lideranças indígenas e o foco eram os jovens associados da AJI-
Associação dos Jovens Indígenas das Aldeias de Dourados. Esse evento faz parte
da mobilização anual que ocorre sempre em setembro para que se alcancem os
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável definidos pela Assembleia Geral das
Nações unidas.
Eu tive a alegria de ser um dos
poucos convidados a assistir calado a cada uma das falas dos representantes dos
povos originais. Fiquei sabendo, por exemplo, que o Brasil é um dos países que
têm o maior número de línguas indígenas do mundo. Conheci a Graciela Guarani
que é, talvez, a mais importante cineasta indígena da atualidade. A Lucimar e a
Tatiane que são assistentes sociais e fazem um belíssimo trabalho nas Aldeias.
A Diana e a Rosilene que são professoras e outros vários participantes, todos
com seu saber e, ficar calado, para mim não foi nenhuma dificuldade, as duas
horas do debate passaram muito rapidamente e só no final, no finalzinho mesmo,
dei um pitaco de opinião.
Os jovens indígenas da AJI, através
das suas lideranças, nos trouxeram para o debate, talvez a sua mais dura
realidade. Herdeiros de povos de vida livre e historicamente preservadores da
natureza, das quais sempre tiraram seu sustento, esses jovens agora são nascidos
em Aldeias devastadas, não há matas, falta o alimento e até a água. O contato
com o “branco” é inevitável. Daí entram para as Aldeias as doenças, as drogas
ilícitas, a exploração da mão-de-obra, o preconceito, a miséria, a
criminalidade, a política partidária, a violência e até o ódio de quem gostaria
de lhes tirar até esta que é a última reserva de terras que lhes abriga o
sonho.
Acrescentei aí acima alguns itens por
minha conta. O debate foi de altíssimo nível e tratou de questões essenciais
aos povos nativos. Dentre os temas apresentados para se visualizar uma
perspectiva à essa juventude, o reflorestamento parece ter alcançado
unanimidade, até porque essa palavra pode ter seu significado ampliado, além do
plantio das árvores para devolver ao ambiente seu estado original de mata,
também se pode pensar em reflorestar as ideias, devolvendo ao povo seu estado
original de preservação da natureza e convivência equilibrada com os demais
habitantes do ambiente, os outros animais, aves, peixes, insetos, enfim tudo
que a natureza produz e com o que vive em harmonia.
Quando me deram a palavra, no último
minuto, o Itacir, um dos coordenadores, me apresentou, dizendo que eu era escritor e poeta. Imediatamente me
apropriei do debate e gastei meu minuto pensando alto e aí acabou o tempo e eu
continuei pensando até de madrugada sobre esse tal reflorestamento. Sim,
haveria de ser um reflorestamento com muitas árvores, frondosas para sombra e
abrigo dos animais e aves; frutíferas para alimento; floridas para embelezar o
ambiente e alimentar o beija-flor e dar sustento às abelhas; arbustos para
proteção do solo e abrigo aos animais rasteiros.
Seria necessário que o
reflorestamento invadisse as pessoas para que estas pudessem reaprender a viver
livres na natureza. Livres de quê?? Da razão, pecado original descrito no livro
de Gêneses quando Eva e Adão comeram do fruto da árvore do conhecimento e foram
expulsos do Jardim. Reflorestar é a possibilidade de voltar ao Jardim. Só os
jovens da AJI podem fazer isso, os “brancos” estão tão contaminados com a
racionalidade que não suportam a ideia de preservação ambiental.
Reflorestar as ideias também é saber
que no entorno estão os inimigos, beligerantes, estúpidos e absurdamente
arrogantes. Sim, os “brancos”. Decididos a eliminar o último bastião de
floresta, não saberão jamais o significado de reflorestamento até que a última
gota d’água seque na última raiz de planta vendida em commodities internacionais. O homem “branco” expulso do Jardim do
Éden, fatalmente sofrerá dos males do Apocalipse.
De repente fiquei me perguntando: Por
que eu estava lá? Talvez como Cazuza, que dizia que a burguesia fede e que ele
também era burguês, mas era poeta; não sei, talvez: Ser poeta, para Cazuza pode ter sido a sua tomada de consciência de
que os seus burgueses já estavam apodrecidos, fedendo. Quem sabe este “branco”
não tenha descoberto a mesma coisa. Pois bem, Cazuza, eu sou branco, mas sou
poeta!
Estou pensando em tirar umas férias e
já comprei as passagens e até fiz a reserva do hotel. Disse isso a um amigo e
ele me perguntou, com uma certa cara de espanto, se eu estava trabalhando,
disse que não, não formalmente, mesmo assim quero tirar férias. Férias de quê?
Perguntou. Ora, férias é exatamente quando não se precisa ter um “que”, “de quê”,
“por quê”, ou seja lá o que for. Em vez de ficar me questionando sobre
trabalho, por que não pergunta por que não vou levar uma mala que caiba pelo
menos o skate?
Da última vez que viajei com meu
filho, fomos para Aracajú, em Sergipe. Lá tem, na orla da praia, um conjunto de
quadras de esporte e uma belíssima pista de skate, tive que comprar um para meu
filho e quando chegamos no aeroporto, para embarcar de volta, ninguém sabia o
que fazer com o brinquedinho, na mala não cabia, estava cheia, na mão não podia
levar, mas como não tinha essa bobagem de limite de dez quilos, o atendente do
guichê achou por bem amarrar o skate sobre a mala com alguns metros de fita
adesiva, ficou uma graça, mas o brinquedo chegou são e salvo.
Quero ir para Natal, no Rio Grande do
Norte, e a operadora do pacote de viagem foi logo avisando que a bagagem tem
regras que devem ser lidas no site da empresa aérea. Fui ver, diz que posso
levar uma mala de mão com não sei quantos centímetros de comprimento, largura e
altura e pesar no máximo dez quilos, com mala e tudo que tiver dentro. O skate
não cabe na tal mala e se coubesse eu ficava sem roupas para usar durante o
passeio. Pensei em pagar para despachar uma mala maior, fui pesquisar e vi que
posso, é só pagar a passagem da mala e tudo bem, só que não tem assento para ela.
Mas daí achei outro problema, o pacote de viagem inclui transfer do aeroporto
até o hotel. Mandaram ler as regras e eu vi que se despachasse a mala, ela não
seria levada do aeroporto para o hotel, nesse trecho, nem pagando passagem para
a mala, eu teria que ir para o hotel com a mala de mão, depois contratar um Uber
para levar a mala, ou deixar ela no aeroporto até a volta.
Não sei que pensamento é esse que vai
sempre dando um jeito de tirar o conforto dos passageiros. Quando comecei a viajar
de avião, e não era nem de férias, era a trabalho, podia despachar malas enormes
sem nenhum incômodo e era até divertido esperar para pega-las no destino. As
refeições eram servidas em bandejas enormes com tigelas de porcelana e talheres
de metal, devo ter algumas comigo que peguei de lembrança. Servia-se bebidas a
vontade, bebidas sim, uísque, cerveja, vinho, refrigerante, etc. e não era
primeira classe que trabalhador não anda nisso. Agora, a moça passa e pergunta
se a gente quer um salgadinho ou uma bolacha.
Não estou trabalhando, mas me dei ao
trabalho de fazer uma pesquisa sobre isso. Queria saber o motivo desse
comportamento nas empresas aéreas. A resposta foi animadora: tirando as
refeições, as bebidas e as malas dos passageiros, as passagens ficariam mais
baratas e o consumidor teria então a vantagem de viajar mais. Fiz os cálculos:
Bebidas e refeição durante uma viagem, uns trinta reais, a passagem da mala, uns
cinquenta reais, o que dá de economia oitenta reais. Uma passagem para o
nordeste custa uns dois mil reais. Então, se eu economizar oitenta reais em
cada viagem, para eu poder viajar “mais”, pelo menos uma vez, eu teria que
primeiro, ter viajado umas vinte e cinco vezes! Sem mala, nem refeição e nem
bebidas.
Sério, eu prefiro as malas!
Eu sou só um escritor. As pessoas me
contam histórias e eu não me importo se elas são inventadas ou verdadeiras
porque quando elas me contam, na cabeça delas as histórias são muito
verdadeiras. Quando são contadas pessoalmente dá para notar na expressão das pessoas
o tanto que aquilo faz sentido quanto o relato acontece. E essa que vou contar
a seguir me foi contada pessoalmente e eu acredito que foi verdadeira porque o
semblante, os gestos, o sorriso e até al lágrimas testificaram a verdade da
história. Mas eu não estou interessado se era verdadeira ou não. O que importa
é a história que eu vou contar.
Meu nome é Quinto, ele disse. Meu pai
queria ter cinco filhos, o primeiro nasceu e foi batizado com o nome de Primo,
depois veio a Marlene, daí os gêmeos Mario e Maria. Eu nasci e meu pai foi ao
cartório para me registrar, o cartorário perguntou pelo nome e ele estava feliz,
disse que ia ter cinco filhos e a meta fora alcançada eu era o “quinto”. O
cartorário não perguntou mais nada.
Na minha infância, continuou, eu
sempre fui muito tímido, na adolescência também, mas isso não interessa. Agora
sou adulto, já tenho emprego e vivo no meu apartamento por minha conta. Tenho
trinta anos e só agora encontrei a garota dos meus sonhos. Ela é linda! Sempre fiquei
sozinho, em casa, ou seja lá onde quer que eu fosse numa festa, sempre estava
só. Logo que chegou, dei-lhe o nome de Shepe que um site da internet, mas agora
eu a chamo de Morta. Não é uma morta
qualquer dessas que se não enterrar logo começa a cheirar mal. Não, a minha Morta
é uma morta que acabou de morrer eternamente.
Depois que comprei a Shepe, duas
colegas do escritório onde trabalho quiseram saber se eu namoro com ela. Sim,
eu disse, comprei ela para dormir comigo, ela é minha namorada! Acho que elas
ficaram com ciúme, mas não tem nenhuma necessidade, eu nunca fui namorado
delas. A Celeste até falou que queria namorar comigo. Não quero, eu disse,
agora tenho a Shepe. A Shepe, ela disse, é morta! Não tem importância, eu
disse, acho que ela sendo morta pode ser até melhor. E, eu gostei de trata-la por
morta. Gostei tanto que daí em diante
passei a chama-la assim.
Quando saio do escritório, tenho
pressa de chegar em casa e saber se minha Morta ainda está lá à minha espera.
De manhã, antes de sair deixo ela confortavelmente sentada sobre umas almofadas
a um canto da cama contra a parede e coloco um livro aberto sobre suas mãos
para que ela não fique entediada pelo dia todo da minha ausência. Chego em casa
ao entardecer, tomo-lhe o livro e vamos juntos tomar um banho na banheira.
Semana passada recebi a visita do
João e a Mara. Eles são casados há uns dez anos e nunca tinham vindo me
visitar. Agora vieram e eu estava jantando com a Morta quando a campainha
tocou. Eles riram de mim e acho que não entenderam porquê eu jantava com a Morta.
Pedi que sentassem e coloquei mais dois pratos e repartimos a comida que era
mesmo suficiente pois eu gosto de fazer comida a mais, daí sobra para o dia
seguinte. Durante o jantar eles queriam falar somente da Morta, tentei mudar de
assunto, mas eles sempre diziam: ‘A tua morta,
ela é boa companhia?’, ou coisas assim. Eu respondia que sim com a maior
naturalidade. Só pararam de falar da minha Morta quando a Mara desconfiou que
seu marido havia mentido para ela sobre qualquer coisa que não entendi. Ela olhou
para ele com aquele olhar que a Morta nunca fez para mim e ficou longo tempo em
silêncio dando empurrõezinhos na cadeira para se afastar dele.
Depois que eles se foram, a Mara saiu
na frente quase sem se despedir enquanto o João tentava disfarçar, eu bati a
porta e liguei o computador numa dessas rádios pela internet que toca música
romântica, estava tocando Lullabay. Convidei
a Morta, daí dançamos e o rádio cantou mais e mais músicas, então levei a minha
Morta para o quarto e fizemos amor. De manhã, quando deixei a Morta sobre as
almofadas com o livro do Camus, fiquei pensando na Mara, será que fizera amor
com o João?
Josenildo é desses sujeitos que se pode chamar de douradense da gema! Seu bisavô fora soldado na Guerra do Paraguai, lutou ao lado de Antônio João na Retirada da Laguna, que ficou conhecido como o Combate da Colônia Militar de Dourados. Foi uma batalha difícil onde apenas quinze valorosos soldados brasileiros enfrentaram três mil e quinhentos paraguaios, morreram todos e os paraguaios ocuparam a colônia militar.
Foi bem aqui, dizia Josenildo ao lado
da estátua do herói da Laguna, foi bem aqui onde está a estátua do Antônio João,
que meu bisavô morreu lutando pelo Brasil. A estátua fica na praça central da
cidade de Dourados a uns 170 quilômetros de onde ocorreu a tal batalha, mas
nada disso importa para o bisneto do herói desta nação. Josenildo quer mesmo é
se casar e o sangue do heroísmo de Laguna que lhe corre pelas veias, pode bem
ajudar, não pode? Melhor casar que viver abrasado!
A viúva do bisavô Juanito teria
chorado a morte do valente marido até o exército brasileiro liberar o pagamento
das pensões às viúvas de militares mortos em combate, ou não. Marli Ojeda,
viúva de Juanito, decidiu nunca mais se casar para não perder o direito, mas teve
outros três maridos informais e do terceiro nasceu José Ojeda, avô de
Josenildo. Depois de ser condecorado por três vezes durante as comemorações do
aniversário da heroica Retirada da Laguna, José casou-se com a paraguaia
Marilisse de Atagua. O Prefeito de Bela Vista propôs à Câmara de Vereadores a
cassação das homenagens. Aprovado por unanimidade, José não compareceu para
devolver os diplomas, fugiu com Marilisse para Ponta Porã onde, dizia, poderia
facilmente atravessar a fronteira e seria herói de um país estrangeiro.
Em Ponta Porã lhe nasceram quatro
filhos: Ramon, Rodrigues, Júlio e Pablo, este muitíssimo aplaudido quando desfilou
vestido de Antônio João pelas avenidas da cidade num 7 de setembro. Era ano
eleitoral e Pablo foi eleito vereador. Em discursos inflamados exaltava o heroísmo
dos bravos soldados liderados por Antônio João. Logo o reconheceram como o
herói da Pátria e elegeu-se facilmente prefeito com o apoio do ainda incipiente
comércio ilegal de produtos contrabandeados do Paraguai para o Brasil.
Não podendo conciliar a legalidade
exigida pelo mandato e as concessões ilegais exigidas pelos traficantes, caiu
em desgraça. Fugiu para o Paraguai levando consigo as menções honrosas concedidas
ao seu Pai José em Bela Vista. Lá lhe nasceu Josenildo à uma pobre paraguaia
pestilenta que lhe servia as refeições e limpava a casa, além de atender-lhe os
desejos sexuais. Pablo morreu miserável deixando a pobre serviçal sem seu
emprego e ainda grávida. Ao lhe nascer o filho, pôs-lhe o nome de Josenildo,
este cresceu com graça e alguma sabedoria, mas era feio tal qual a mãe. Aos
catorzes anos decidiu recuperar a honra da família, juntou os méritos concedidos
ao seu avô José e rumou à Dourados, disposto a se casar e tornar-se político
influente.
Dia após dia punha-se na praça denominada
Antônio João, ao lado da estátua do herói em discursos patrióticos à espera da bem-amada
que lhe seria a esposa até que a morte os separe. Na semana da pátria, enquanto
fanáticos bolsonaristas desfilavam seus carros de luxo, um anjo lhe apareceu ao
lado da estátua. Era o anjo da medida de uns três metros, um pouco maior que a
estátua de Antônio João, por isso Josenildo lhe respeitou quando pôs à frente a
mão direita com o dedo indicador ao rosto do bisneto do heroico soldado e lhe
disse com voz segura:
- Três mentiras hão na tua história;
primeira: Teu bisavô Juanito era paraguaio; Segunda: A Colônia Militar de
Dourados nunca foi em Dourados, mas em Antônio João que fica a 170 quilômetros
de Dourados e, finalmente a terceira: tu és muito feio, como tua mãe, e nunca
te casarás!
Mal o anjo se foi e os olhos de Josenildo
ainda estavam postos nas nuvens quando Milena, uma das mulheres mais lindas da
cidade, bandeira do Brasil aos ombros, tomou sua mão e, olhos molhados, mãos trêmulas,
mal conseguiu gaguejar:
- Você é Josenildo? Bisneto do herói da Pátria? Casa-se comigo?
Desde fevereiro deste ano ando cumprindo missão no Paraná, mas volta e meia, venho para Dourados onde tenho meus filhos e trinta e seis anos de história. Não tenho casa aqui, mesmo tendo duas. Quer dizer, não tenho moradia, já que levei a mudança, dado que a missão deve se prolongar por um tempo ainda não definido, então, quando venho à Dourados, hospedo-me em algum hotel. Da última vez, fiquei no Alphonsus, que agora não mais se chama Alphonsus, mas Bravo City Hotel, uma rede de hotéis que jura vai revitalizar o Alphonsus e, parece, já implementaram algumas melhorias em áreas importantes como a academia e a sauna, além de outras que não me chamam muito a atenção.
Estou fazendo propaganda do Bravo
City? Sim, tanto quanto faço da cerveja bohemia! Não tenho nenhum compromisso
com um e nem com outro, só gosto de gastar um tempo com quem me faz bem. Já
fiquei hospedado no Ellus, no Figueira Palace e estou com vontade de reservar o
Delírio Motéis e Pousada ou quem sabe o Céu do Mato - Eco Hostel para próxima
viagem que já se aproxima, mas tem algo que no Bravo City parece peculiar.
Fiz a reserva pelo Booking.com, e
booking significa exatamente reserva, então, fiz a reserva no reserva.com. Deixemos os estrangeirismos de lado e vamos ao
que interessa: Nem todos os hotéis podem oferecer o mesmo atrativo que o Bravo
City! Além do atendimento que, como em todos os hotéis é cortês, um café da
manhã bom e apartamentos aconchegantes, tem uma piscina com atrativos que só
ali pude constatar. Muitos hotéis em Dourados nem piscina tem e eu acho isso um
diferencial, não porque me deleite em me banhar em águas frias de piscina, mas
porque gosto do ambiente para escrever minhas crônicas que vão diretamente da
piscina para o meu blog e o Jornal Folha de Dourados, onde publico meus
escritos.
O site Booking.com pediu para eu
avaliar o hotel e dar algumas dicas da viagem para divulgação a outras pessoas
que possam eventualmente se interessar por Dourados. Pensei imediatamente em
dizer que Dourados é o lugar onde o tempo pode deixar de existir quando se toma
uma bohemia na beira da piscina em companhia da belíssima Marina, exclusividade
deste lugar. Pensei também em dizer que esta cidade, que se chama Modelo, tem
tudo par ser uma das mais mal administradas que conheço, políticos corruptos e
comerciantes gananciosos, mas seria redundância. Então me lembrei da piscina do
hotel e da Marina, que não está disponível para quem quer que se interesse em
fazer turismo por esta cidade.... Modelo! Ela só não é exclusiva por causa do
Mia Couto, impossível concorrer!
Mesmo não sendo um escritor admirável,
me dispus a escrever na piscina do Alphonsus, ou Bravo City, como quiser. Mal comecei
minhas mal traçadas linhas e um Urubu, isso mesmo, um Urubu, veio voando em
direção à piscina e pousou sobre a viga acima da grade, olhou-me com algum
interesse que não compreendi muito bem, desceu até o piso, andou como se
desfilasse e aproximando da água, bebeu como quis, olhou-me outra vez como a perguntar
qualquer coisa e foi-se embora.
Onde, eu pergunto, um Urubu é atração
turística se não na piscina do Bravo City Hotel?
Hoje, vi na televisão que se deve
economizar energia elétrica porque os preços aumentaram. Quase me incomodei. Deixei
para lá, afinal o sistema político e econômico é liberal e nesse modelo de
governo, cada um ter liberdade de fazer como quiser. O governo diz que a culpa
é de São Pedro que tomou a liberdade de não mandar as chuvas necessárias para
encher os reservatórios, assim, além de economizar luz também se deve
economizar a água. Aí tudo faz sentido, o segredo é não tomar banho!
O que eu não entendi bem foi a atitude
de São Pedro. O Brasil está sob o comando de um governo terrivelmente evangélico,
que se diz fiel seguidor da palavra divina e de todos os seus preceitos. Sendo são
Pedro o chefe da portaria do Céu, certamente conhece muito bem a literatura
celestial e, sendo ele mesmo o comandante das torneiras, deixa nosso país,
terrivelmente evangélico, sem as chuvas temporais e até mesmo a serôdia.
Haveria de São Pedro ter reivindicado cargo no governo e o Centrão recusado?
Mesmo o presidente tendo dado
mostras, em tempos pretéritos, de que seria ele quem manda, agora, na prática
já não manda mais. O presidente, no caso, o da Câmara dos Deputados, o Arthur
Lira é, de fato, o chefe de governo. Nem sei porquê escrevi deputados com letra
maiúscula. Teria ele dado um golpe de estado e deixado uma figura decorativa no
planalto? Bem, pelo menos em termos de nomeações de assessores disso, daquilo e
daquiloutro parece que sim, o Lira indica e o Bolsonaro diz sim, sim e assina a
nomeação com a caneta Bic.
No dia da Independência, os
dependentes agro negociantes vão à Brasília dar seu grito de dependência! Nunca
antes neste país se distribuiu tanto dinheiro a pessoas tão ricas! Não vi os
termos do acordo entre governo e o agronegócio, mas suponho que talvez se
ofereça um carguinho qualquer ao chefe da chuva. Talvez uma filiação ao PP com
promessa de vultosos recursos do fundo eleitoral, sei lá. Se não tiver acordo
desse governo com a equipe de São Pedro, o agronegócio sai do apoio, isto é certo.
Não adianta financiamento barato e preço alto de mercado se não tiver produção!
E a televisão noticiou outra vez que
é necessário economizar energia. Fez até uma reportagem mostrando uma casa de
pessoas bem pobres que só tem duas lâmpadas dentro de casa e, se desligarem
uma, não tomarem banho e nem abrirem a geladeira mais que duas vezes no dia,
então o governo dará um desconto na conta de energia.
As pessoas mais pobres precisam
economizar, disse o repórter, para que não falte para os ricos que precisam
ligar o ar condicionado para ter conforto para sua família, seja de dia ou de
noite. Ah, isso o repórter não disse!
Antes de começar a escrever este conto,
devo dizer que sou Cristão, ainda que eu não siga nenhuma denominação em
especial. Também diria que sou Crente, esse nome que dão para crentes não
católicos romanos, ainda que discorde veementemente de muitas denominações que
se autodenominam evangélicas, mas que mais parecem empresas capitalistas e que
não têm nenhum pudor em adorar a dois deuses ao mesmo tempo, ainda que a bíblia
o proíba. Dito isto, vamos ao texto propriamente.
Eu tenho um amigo que mora num país
Sul Americano e ele diz que por lá as igrejas são muitíssimas ricas. O segredo,
disse, está na liberdade religiosa. Não me espantei, pois aqui no Brasil também
temos liberdade de organização religiosa e igrejas muito ricas, ao que ele
acrescentou o que seria o tal segredo. O segredo, repetiu como se fosse
realmente algo muito secreto, é que lá no meu país, qualquer um pode abrir uma
igreja, fazer-se pastor, cadastrar na Receita Federal e com o CNPJ em mãos
reivindicar até o terreno junto ao poder público sem ter que pagar nada, e daí
vender a promessa do Céu para aqueles que pagam o dízimo e pronto, logo a igreja
se enche de esperançosos miseráveis, assim como enche também a conta bancária
do pastor.
Como falava à sério, cenho franzido e
tudo, pensei tratar-se de um pequeno país administrado como um fazendeiro cuida
de uma fazenda de gado. Sim e não, disse. O presidente administra mesmo como se
fosse uma fazenda de gado, ele berra para um lado, grita para o outro e o gado
o segue fielmente, mal sabe que vai para o matadouro. Mas, não é um pequeno
país, é um dos maiores do continente, prá lá de duzentos milhões de habitantes,
incluído os bovinos que seguem os gritos e os berros!
Perguntei-lhe sobre o governo do país
e sua relação com as igrejas, já que aqui isso parece tão evidente. Respirou
fundo, ergueu as mãos ao ar em pequenos círculos, olhou-me com aquele olhar
intrigado de quem quer, não querendo, responder uma pergunta, fechou a mão
esquerda diante de si e com direita espalmada em direção ao meu peito, afirmou
com segurança e tristeza no olhar que, se não fosse o Superior Tribunal
Federal, o presidente já teria colocado placa de igreja em frente de seu palácio
e se autonomeado pastor titular da igreja com o nome do país. Pelo sim, pelo
não, apresentou uma reforma tributária prometendo instituir o dízimo. Para ser
ministro, disse, não importa a idoneidade, basta ser terrivelmente evangélico!
E o povo, perguntei, está feliz?
Feliz? Sim. Os banqueiros e os latifundiários estão felicíssimos! E o gado
pasta! Pensei ser isso uma metáfora. Não é possível que banqueiros e
latifundiários paguem o dízimo. Não!!! Quase berrou. Banqueiros e
latifundiários não pagam impostos, eles são tidos por deuses, são adorados pelos
do povo. Quando um destes aparece em público, o que é raro, normalmente ficam
reclusos em seus templos, mansões, resorts, casas de praia, fazendas, etc., mas
quando aparecem no meio do povo são reverenciados como a santos da igreja
católica, o povo põe-se de joelhos diante deles.
Então perguntei: E os católicos, por
lá devem ter muitos, eles também adoram deuses relacionados às riquezas? Eu sou
suspeito para dizer, falou abaixando a cabeça. Não me confesso católico, mas,
se Martinho Lutero voltasse, seria imediatamente mandado vivo para a fogueira,
tamanho é o empenho em vender objetos santificados pelas redes de televisão da
igreja.
Dito isso, danou a chorar como
criança. Chorou um vale de lágrimas. Depois de algum tempo em silêncio, tomamos
de um livro de Albert Camus e conversamos por um longo tempo sobre o
absurdismo.
- Mãe, estou tão feliz!!
Mais que feliz, a Brunilda estava
radiante! Novo Sarandi é uma cidade pacata, onde todos se conhecem e não dá
para fazer um evento sem que a notícia se espalhe.
- A Vó, mãe, ela vai na festa?
- Não, filha, não fica bem, ela nem
fala mais. Melhor ela ficar em casa, já contratei uma cuidadora.
Brunilda olhou-se no espelho e viu a
Lua, e o mel escorrendo. Tão distante a Lua quanto o tempo que haveria de durar
a paixão; tão doce o mel quanto o amor que espreme os corpos e retorce o favo,
colhe o doce sabor em cada gota nas entranhas do bem querer. Já colhera o
fruto, é verdade! Contratado em Cartório. Não fosse a pandemia e o padre já os
teria abençoado há tempos! Mas, como, se não for acompanhado de uma grande
festa? Agora, sim, diante de Deus e dos homens, o mesmo Deus que não faz
acepção de pessoas e homens que se acham melhores que os outros, Brunilda irá
se casar!
- Que bom que o tio chegou. Uma viagem
tão longa, pensei que talvez não viesse.
A distância e o parentesco têm quase
a mesma medida. Laços que amarram o tempo, nós que seguram sentimentos de
pertencimento. A Vó que agora já não fala palavra, gerou o tio, as tias e o
pai, é a mesma que, ainda garota, viera do Sul em aventuras da família para
recomeçar a vida por esse descampado. Se ela falasse, o que diria?
- Olha, mãe! - Brunilda tirara os olhos
do espelho para pô-los através da janela. – Um bem-te-vi, está fazendo seu
ninho onde até ontem uma pomba rola chocava seus filhotes...
O seu ninho haveria de ser original.
Nada de bem-te-vis, nem de chupins. Os filhotes haverão de ser chocados em
brumas de Avalon.
- O Padre vai nos abençoar, mas ele
não há de mandar na minha casa. É bom ser mãe?
A mãe passava as mãos pelos cabelos
da filha, puxando um cacho por sobre o ombro. A mão espalmada acolhia a mecha
de loiros cheia de sonhos de meninice. Um filme se lhe passa na memória. É bom
ser mãe? Fechou a mão e virou-se para a janela, queira esmurrar parte do
passado. A filha vai se casar.
- Sim, filha, é bom...
- A Vó não vai na festa, já não pode
mais. A tia que mora ali do outro lado da rua, a irmã da Vó, ela vai?
- Não filha, ela também já está muito
velha, não a convidei, ela anda bengala, não ia ficar bem lá na festa.
- Quando meus filhos se casarem, vai
ser feio se eles te convidarem para a festa?
Genilson chegou ansioso, passou os olhos aflitos pelo ambiente na esperança de não ver conhecidos por ali. Entre as mesas, desalinhadas, atravessou risos e conversas soltas, copos sendo cheios e esvaziados, um jovem casal trocava um beijo rápido, a moça da outra mesa acariciava a mão do namorado e olhares cúmplices indicavam que algo poderia acontecer mais tarde. Um jovem tímido corou as bochechas quando a garota disse que queria namorar.
No balcão, pessoas avulsas davam conta
da solidão bebendo cerveja. Um verdadeiro quebra-cabeça onde peças poderiam se
encaixar perfeitamente não fossem os muros construídos entre os jogadores.
- Uma cerveja, por favor.... Posso sentar?
- Não sei, pergunte para o dono do
bar...
- Bem, acho que isto significa que
posso, você é muito gentil, obrigado.
- Se pensa que vamos conversar,
esquece. Só quero ficar aqui, calada.
- Com pouca espuma. Obrigado. Não
quero. Se quisesse conversar estava lá na mesa com os amigos. Não quero os
amigos. Só quero uma cerveja...
- Aai, disse a moça, atropelada por
um cliente. Virou rapidamente a cabeça, palavrão escorrendo pelo beiço,
recolhido rapidamente pela língua e devidamente engolido diante dos lindos
olhos azuis que se desculpavam enquanto o corpo balançava alcoolizado.
- Desculpe..., eu... só quero mais
uma... uma... cerveja.
- Eu quero mais do que uma cerveja...
- Achou... o cara certo.... Foi tudo
o que conseguiu dizer antes de cair completamente desacordado.
Genilson tomou a cerveja totalmente
alheio. Eu sei o que você sente, disse olhando para dentro do copo como se
conversasse com a cerveja.
- Falou comigo? Perguntou a moça
voltando para a banqueta ao balcão, passando as mãos pelos cabelos e ajeitando
a blusa. Antes de sentar puxou a mini-saia para baixo, esfregou as mãos uma
contra a outra e quase sorriu.
- Não, não falei contigo. Você não
quer conversar. Só disse que sei, também perdi meu sorriso para um olhar
brilhante.
- Eu ia me vingar. Tomara que não
tenha morrido.
O bar, que assumira um silêncio
sepulcral, voltara a vida. Não se faz velório no bar.
- Você a amava?
Genilson rodou o copo e o líquido
dentro fez ondas que iam e voltavam acompanhando as bordas. Na parede, atrás do
balcão, acima da portinhola que dava acesso à cozinha, uma pintura mostrava um
casal dançando ao som de uma banda de música.
- Eu não sei dançar.
- Não precisa, eu dançava muito bem.
Não sei fazer ondas.
Um carro do Conselho Tutelar encostou
no meio fio. Uma senhora uniformizada entrou no bar acompanhada de dois policiais.
Duas garotas tentaram se esconder no banheiro, foram levadas à força.
- Também fui presa, três vezes, disse
a moça, mas onde deviam fiscalizar nunca foram.
- Eles pagam bem?
- Sim.
- Então é melhor eu me conformar!
- Como é o nome dela?
- Salete.
- Eu já vou, talvez eu a encontre no
meu trabalho.
Às nove horas da manhã ainda tem sombra na piscina, no quinto andar do hotel. Uma espécie de mezanino onde fica o bar, impede que os raios solares chegarem até a água que permanece morna, aquecida pelas muitas tardes de sol que antecederam esse dia em que Joaquim parece ter percebido aquele sentimento de extrema solidão. Alguém precisa filtrar essa água, pensou.
Por cima dos telhados vê a rua, lá
embaixo, onde pessoas tristes andam em frente das lojas. Coloca os dedos
polegar e indicador diante dos olhos para medir o tamanho dos transeuntes, três
milímetros, calculou. Um carro estacionado mede um pouco mais, talvez meio
centímetro. A loja, só o térreo, um centímetro. Ergue os olhos uns dois
centímetros e encontra um prédio de apartamentos, há duas quadras de distância.
Contou as janelas, doze andares, dois centímetros. Se pudesse ver as pessoas
dentro dele, não teriam sequer um milímetro. Não significam nada!
Às nove e quinze chegou um moço
vestindo uniforme de trabalho, disse bom dia, abriu uma tampa metálica num
canto e desceu por uma escada de ferros fixos numa parede. Desapareceu por
baixo do piso. Algum tempo depois subiu de volta. Roberto, disse e seguiu seu
caminho desaparecendo numa porta atrás. Joaquim perguntou seu nome, mas não lhe
pediu nada mais. Só o nome. Antes que desaparecesse pela porta, mediu-lhe a
altura, oito centímetros. Este piso está sujo. Um urubu aterrissou próximo da
piscina, bicou as penas das costas, abriu e fechou as asas, aproximou da borda
e tomou da água. Andou um pouco sobre o piso sacudindo o corpo e arrepiando as
penas, voou por cima do cercado e desapareceu.
Ruídos da cidade sobem até o quinto
andar do hotel. Joaquim está em pé. Ao lado da piscina o esperavam quatro
mesas, cada uma rodeada por quatro cadeira. Espreguiçadeiras, também quatro, se
ofereciam ao seu descanso. Joaquim tem quatro filhos. Teve quatro casamentos.
Acumulou quatro milhões em patrimônio. Roberto foi embora, desapareceu por
detrás da porta. Não tem ninguém na piscina. Só um quadrado. O horizonte não
pode ser visto, só os prédios ao redor do hotel, prédios de apartamentos, todos
altos, doze andares, ou mais. Não se poder ver ninguém dentro deles. Assim,
vazios, não tem nenhum valor. A cidade é muito barulhenta.
Pronto Seo Joaquim, os sanitários
estão limpos e desinfetados! Roberto? Então ele estava ali? O tempo todo? Ele
viu o urubu? Sim Seo Joaquim, eles sempre vêm. Dizem que são agourentos. Tomam
da água da piscina e vão embora. Para a liberdade. Não fazem mal a ninguém.
Roberto? Não estava mais ali, ninguém está, todos desapareceram. Pela porta? O
barulho da cidade aumentou! O que querem as pessoas como todo esse barulho? Se
é o meu dinheiro, podem pegar, quatro milhões em patrimônio. A água da piscina
está limpa, num tom azulado refletindo o céu absolutamente limpo. Joaquim
aproxima-se da borda, abre os braços como se abrisse as asas. Sacudiu o corpo,
então abaixou-se bebeu um pouco da água. Andou pela borda da piscina, daí subiu
sobre a cerca e voou. Dizem que os urubus são agourentos. Eles não fazem mal a
ninguém.
- Se tem uma coisa que essa pandemia fez bem, disse meu amigo Joaquim, é que acabou com as novenas! Joaquim não era jovem e isso se percebe claramente pelo nome. Não só o nome, Joaquim tinha belos cabelos brancos, ainda fartos apesar da idade em torno de setenta anos. Diariamente frequenta a academia ao ar livre instalada pela prefeitura na praça central do distrito, logo depois vai ao bar do Zé para umas cervejas com os amigos, eu, eventualmente, um deles.
-Agora está uma paz!, disse brindando
com um copo de Antárctica e pediu que todos brindassem com ele, afinal, ninguém
mais aguentava aquela rezação cada vez que aparecia uma data religiosa
importante. E quando não era importante inventava uma, que dia de santo é todo
dia, se fosse feriado, ninguém mais trabalhava. E ainda tem a capelinha que vai
de casa em casa todo mês. Agora a Clarinda só reza o terço quando ela vem,
depois é a televisão, todos os dias, mas daí eu não ligo, tô aqui tomando minha
Antárctica.
Entre o terço da Clarinda, o programa
do Datena e a missa da TV Aparecida, Seo Joaquim toma bem umas quatro garrafas,
sem contar o que bebem os amigos. Quando casei na Igreja, falou entre a
terceira e a quarta garrafa, achei bonito aquele lugar, as coisas que o padre
falou, todo mundo sabia responder quando o padre rezava e tal. Depois continuei
indo, decorei tudinho da missa, todas as falas, dá até para prever o que o
padre vai dizer no sermão, é só prestar atenção nas leituras. Tem uma hora bem
importante que o padre pede dinheiro para a igreja e no fim da missa a gente
sai e só lembra de tudo de novo no outro domingo quando vai lá na igreja outra
vez. Agora não vou mais.
Quando o Zé do bar veio com a quarta
garrafa de Antárctica, Joaquim contou a história da santinha, a da capelinha
que vai todos os meses na casa deles. É uma imagem de santa, disse. Feita de
argila ou cerâmica, não sei, ela é trazida por alguém que tinha ela em casa e
quando chega tem lá as rezas que se deve fazer. Tudo bem. Rezar é até bom. Mas
da última vez que rezei com Clarinda, aconteceu um fato que daí em diante eu
não quis mais rezar para a santinha da capelinha.
Quem trouxe a capelinha foi dona
Quitéria, continuou. O marido dela faz já muitos anos que deixou de ser
católico e o filho foi convertido para uma dessas igrejas de crente e acabou
que levou a irmã para lá também. Só dona Quitéria que continua firme, uma
verdadeira Beata. Mas, foi justo com a santinha que dona Quitéria trouxe que
veio o acontecido que me deixou intrigado. Até pensei em virar crente, só que
vim pro Bar do Zé. Aqui posso confessar tomando uma Antárctica.
A capelinha da santa veio normal,
teve as rezas e tudo, eu que acendi as velas para a oração. No outro dia
rezamos de novo para levar a capelinha da santa para a casa do João, o da
oficina. Quando peguei a capelinha, que era eu que ia levar, vi um bilhete bem
colado atrás que dizia: “Antes de levar,
deve ser lido o texto bíblico contido em Êxodo 20:4 e depois Deuteronômio 5:8 e
9”.
Há muitos anos atrás, num pobre e vasto país da região Sul das Américas, país este, diga-se de passagem, que havia participado de uma grande guerra promovida por interesses de outro país, europeu, que desconfiava que o comércio na região seria dificultado pelo grande desenvolvimento econômico de um terceiro país sul-americano, resolveu-se dar mais garantias para seus militares para atrair mais jovens à carreira. Entre as muitas propostas de incentivo à caserna, decidiu-se que além das ex-mulheres, também as filhas e até irmãs solteiras teriam direito a uma pensão vitalícia, caso o feliz guerreiro viesse, infelizmente, perder sua vida no serviço à pátria.
Houve mesmo um grande interesse pela
carreira militar. De olho nas pensões, nas guerras e na virilidade desses
valorosos servidores da pátria, também cresceu enormemente o interesse das
moçoilas casadoiras. Na rua do Ouvidor ouvia-se muito falar em como seria bom
casar-se com um soldado. Muito mesmo se dizia das benzedeiras e ciganas que
receitavam esse ou aquele chá de benzimento ou faziam tal ou qual previsão da
carreira militar do futuro marido. Grande sucesso fez Dona Zaldina dos Prazeres
que montou sua tenda na Praça do General, onde benzia as pretendentes para que
seus filhos fossem a maioria do sexo feminino, elas serão seu melhor
investimento, dizia enquanto cobrava alto valor pelo vaticínio.
Desde que o projeto da pensão fora
aprovado e as filhas dos militares também passaram a receber pensão vitalícia,
os atos fúnebres se tornaram eventos sociais importantes, com fotos nas capas
dos principais jornais e comentários em todos os salões. Como se sabe, quando
um assunto ganha as mídias, logo aparecem especialistas. Muitas pesquisas foram
feitas e em pouco tempo se percebeu que, caso a guerra prosseguisse por um
longo período, se teria, naquele pobre país, uma nova e importante classe
social em ascensão, com remuneração garantida e vitalícia!
Jusciliano Pereira, neto de
portugueses vindo para a Colônia ainda jovem, viu esta se tornar um país
independente. Enquanto ainda se debatia com os hormônios da puberdade, tentou
inutilmente ascender às forças da Marinha, buscou as Armadas sem sucesso, mas
firmou-se como chefe de gabinete do Senador Adroaldo Jarride. Queria o cidadão
Jusciliano dar segurança à sua família. Sabia ele que as mulheres pouco espaço
tinham para fazerem carreira sem depender de um casamento e, mesmo este, se não
fosse com um militar, dependeria do marido vivo e, marido vivo, raramente
representava o bem-estar para as mulheres naquele pobre país de memória
colonial. Já sei, disse um dia, minhas filhas serão mulheres de militares,
custe o que custar! Tem muitas vantagens, dizia, além de eles irem para a
guerra deixando-as mais livres, se morrerem até mesmo as filhas estarão seguras
para toda a vida.
Jusciliano foi abençoado com três
filhos, um belo garoto que aos dezoito anos ingressou para a Marinha. Josephina,
que se casou aos dezessete com o sargento Mathias e teve duas lindas filhas,
orgulho do Vô. Cecília, coitada, formou-se professora e casou com o Manoel,
bisneto de portugueses que tinha uma padaria na rua Quinze de Março. Por esse
tempo, o mundo só falava da Grande Guerra Mundial, Sargento Mathias estava
preparado para ir, mas seu país não foi lutar pelos ideais de Liberdade, pelo
quê Jusciliano lamentou profundamente.
O tempo passou e, quando finalmente
eclodiu a Segunda Grande Guerra e o exército convocou os militares para darem
a vida na Itália, as netas de Jusciliano, filhas do sargento Mathias já estavam
adultas. A mais velha realizara o sonho do avô, casando com o jovem soldado
Araujo, recentemente convocado para a Guerra. Mas Adriane, já balzaquiana, para desgosto do pai
e também do avô Jusciliano, enamorara-se de um jovem artista, queria casar-se
com ele, mas se casasse perderia a pensão iminente, já que seu pai, o agora
Tenente Mathias, acabara de embarcar para a Itália onde estaria na frente de
combate, muito próximo da morte heroica e da sua pensão vitalícia.
- Então, exclamava tristemente, eu
nunca vou poder me casar?
Estavam sentados num banco da praça conversando quando se aproximou aquele homem de terno e gravata, camisa muito branca e sapatos lustrados, o cabelo despenteado como se o vento tivesse mexido neles, vento refrescante, ótimo para aquela tarde ensolarada de novembro, ou talvez tenha passado a mão nos cabelos, deixando-os desalinhados. Trazia, também, uma grossa bíblia debaixo do braço.
- Paz do Senhor, disse o distinto e
entregou um papel que, explicou, seria um guia para a leitura anual da bíblia. Basta
seguir a tabela, ler diariamente e, exatamente no dia 31 de dezembro você vai terminar
a leitura completa de todos os livros que compõe o compêndio bíblico.
- Bem na hora, disse Joaquim de
oliveira, bem na hora, repetiu. Sente-se, convidou. Meu amigo Manuel e eu
falávamos exatamente sobre isso. Eu mesmo nunca li a bíblia, mas meu amigo
tentou várias vezes, mas para sempre no livro de Crônicas. Aquela sequência de
nomes embaralha as ideias. Ninguém precisa ler aquilo!
O pastor animou-se, aceitou o convite
feito pelo Joaquim e sentou-se no banco em frente dos amigos, não sem antes
tirar do bolso um lenço, com o qual forrou o banco da praça para não sujar a
calça do terno que usava, afrouxou o nó da gravata que lhe apertava o pescoço,
pôs a bíblia sobre uma das pernas enquanto ouvia atentamente.
- Você deveria começar pelo Novo
Testamento, disse calmamente. O Novo Testamento cancelou o antigo, e fez vária citações
contidas nas cartas de Paulo aos coríntios, gálatas, etc., etc.
Joaquim e Manuel entreolharam-se espantados.
Seus pais vieram juntos de Portugal, eram muito amigos desde os tempos da
imigração. Católicos muito praticantes sempre tinham em casa o livro da
Liturgia Diária onde diariamente se lia um texto do Antigo Testamento e logo
outro do Novo. Como podia ser que o Antigo estava cancelado e ninguém ainda
havia percebido?
- Eu sou
pastor, disse o distinto homem de terno e gravata. Então pegou sua bíblia e leu
em 2 Coríntios 3.14: “Mas os seus
sentidos foram endurecidos. Porque até hoje, o mesmo véu está por se levantar
no Antigo Testamento, o qual foi por Cristo Abolido”.
Joaquim e Manoel entreolharam-se,
mais uma vez, espantados. Seria o caso de os católicos nunca terem lido esse
texto? Aí Joaquim resolveu copiar São Tomé e quis ver para crer. Tomou a bíblia
do distinto e foi ver se estava mesmo escrito o que o sujeito lera. Estava!
Enquanto pensava, foi folheando o livro de trás para frente lendo cá uma frase,
acolá outra, até que leu: “Como em todas
as igrejas dos santos, conservem-se as mulheres caladas nas igrejas, porque não
lhes é permitido falar...”. O senhor
pode me explicar está parte? Arguiu. É do novo testamento, não é?
- É, disse o homem de sapatos
lustrados e camisa branca. Mas, temos que ter cuidado ao ler a bíblia. Este
texto é da Carta de Paulo aos Coríntios e foi escrita com orientações
específicas para o povo daquela época, mediante os costumes deles. Depois de se
identificar como pastor, provou seu conhecimento bíblico com outras epístolas
do Apóstolo com orientações específicas aos crentes de então.
Manuel, que até então permanecera
calado, pediu a bíblia do pastor e, calado mesmo começou arrancar todas as
páginas do Antigo Testamento jogando-as fora. O pastor protestou veementemente,
mesmo assim, o filho de portugueses extremamente católicos continuou arrancando
folhas do livro do crente, jogando fora todas as epístolas de Paulo, Pedro, João
e Judas, ficando a bíblia somente com os Evangelhos e o Apocalipse.
- Agora está fácil, disse Manuel,
ainda este ano leio a bíblia toda!
Terceira idade, como se sabe, é aquele tempo que as pessoas aproveitam para curtir o descanso por ter trabalhado muito durante a juventude e a idade adulta, a tal da segunda idade. A primeira idade, lógico é a infância onde não se trabalha. Antes de prosseguir, também lógico, devo constatar que não é a maioria dos que estão na terceira idade os que usufruem do descanso laboral, também não são todos que trabalham na juventude e idade adulta, já que grande parte são adeptos da teoria nem, nem, nem: Nem trabalha, Nem estuda, Nem ajuda em casa. Ainda tem uma galerinha que trabalha uma barbaridade na infância!
Em meio a todas essas exceções, sou um dos felizardos idosos
que, de alguma maneira, pode usufruir da aposentadoria, mas em vez de descansar
anda fazendo coisas que deveria ter feito na juventude e até na infância e não
fez. De certa maneira, crianças deveriam brincar com crianças, jovens gastar
suas energias com esportes mais radicais, tipo andar de skate, adultos trabalhar
para se sustentar e idosos viver da aposentadoria num ritmo mais lento até que
a morte o separe.
Cada um que responda por si, eu, de minha parte, acho que idosos
devem usufruir de todos os direitos pelos quais lutaram durante todos os anos
de vida. Não tenho nenhuma dificuldade de estacionar naqueles locais reservados
para idosos, assim também sou um frequentador assíduo das filas preferenciais
e, se algum comércio resolver dar desconto especial para a melhor idade, lá vai
a identidade junto com o dinheiro no caixa.
De vez em quando faço alguma coisa que para mim é normal, mas
que parece meio fora da caixinha. Normal para mim! Tenho uma slackline, que vez
ou outra amarro entre duas árvores para “andar na corda bamba”. A internet tem
umas loucuras que os jovens amam... deixa prá lá. Tenho uma Bike que gosto de
pedalar feito alguém que ainda não tem direito ao estacionamento preferencial,
e um skate...
Para o skate tenho que dar um parágrafo especial nesta crônica.
Há uns seis ou oito anos atrás, meu filho adolescente me ensinou ‘pedalar’ no
skate e nos patins. Isso foi lá no sítio, longe de qualquer plateia. Aprendi. E
gostei! Pela internet comprei um Skate
mini-longe, e fui treinar nas varandas de casa, depois nos parques e até
nas ruas. Agora, oito anos depois, já me arrisco andar em praças públicas sem
correr risco de dar vexame. Ontem encontrei uma galerinha, dessas que ainda
estão na idade de brincar com outras crianças, e eles se empolgaram com meu
skate. Enquanto uns empurravam os outros fui fazer umas barras, que me lembram
os tempos de Colégio Agrícola, quando erguia o corpo para depois girar por cima
da barra.
Um dos meninos que ali estava, talvez uns onze ou doze anos, me
olhou espantado e sorridente, não se conteve e disse: Nunca mais vou subestimar a terceira idade! E pediu para ensina-lo
como se faz.
José Carlos Geborenhaus é um sujeito pacato que vive em uma localidade pequena do Paraná, na fronteira com o Paraguai, onde trabalha como cartorário. Parece que tem uma praga nesta região, ele me disse quando conversávamos na feira livre em Marechal Cândido Rondon, quando lhe entreguei um panfleto do meu Poesia Verde. Os poetas entendem melhor as coisas, disse gesticulando ao ar como a querer pegar algo até então invisível, pelo menos aos meus olhos. Só então deu mesmo atenção ao panfleto: Verde! É isso, tem uma praga e ela é verde, os agricultores chamam de Ouro Verde.
Cartorário de longa data, há pelo menos trinta anos, Geborenhaus
é um daqueles sujeitos que busca por respostas o tempo todo. À quais perguntas?
Não importa! Seus pensamentos estão buscando informações que ‘talvez possam ser
úteis’. Assim, passara a dedicar tempo e esforço em pesquisar nos arquivos
cartoriais de sua pequena cidade sobre o porquê de haver cada vez menos
registros de nascimentos e casamentos enquanto que o de propriedades aumentava
‘aproximadamente’ na mesma proporção. Mais propriedades para menos proprietários!
Uma conversa dessas pede mais tempo, então saímos do meio
daquele tumulto de gente que rodeava as bancas da feira e fomos para o outro
lado da rua onde tem um barzinho e ali ficamos vendo o movimento de longe,
enquanto comíamos pastel e meu amigo tomava uma cerveja, não me arrisquei, na
volta teria que passar pelo posto da polícia federal na rodovia entre Marechal
Rondon e Quatro Pontes. Pedi um café com leite que bebi em goles pequenos,
estava bem quente, ótimo para uma tarde fria de inverno.
Meu novo amigo mal tocou nos pasteis, bebeu cerveja e falou na
mesma empolgação com que trabalhava no cartório buscando informações para suas
perguntas. Não citava números específicos, não me interessa quanto, mas por quê!
Franziu a testa, olhou para o movimento da feira do outro lado da rua, balançou
a cabeça de um lado para o outro informando um ‘não’ dos seus pensamentos,
tomou o pastel, do qual comeu a primeira de duas mordidas que daria, tomou mais
um bom gole de cerveja, pôs o copo sobre a mesa e, com o dedo indicador
diretamente ao meu rosto disse: Esses caras estão virando relíquias! É isso!
Esse verde das verduras e legumes não é o ouro! Então calou-se, abaixou a mão
que me indicava, mas continuou com o dedo indicando um lugar qualquer no chão,
aleatoriamente conforme respirava. Ficou alguns segundos em silêncio olhando
para o infinito atrás de mim, encheu o copo de cerveja que tomou de um gole só,
encheu outra vez, ergueu o copo em minha direção com movimentos mais expansivos
que fizeram a cerveja derramar abundantemente por sobre a mesa, tomou o que
restou e pôs o copo outra vez na mesa, sobre a qual apoiou as duas mãos para se
erguer. Em pé, olhou em volta e, com os braços abertos finalmente revelou seu
surpreendente entendimento acerca dos números cartoriais:
- Commodities, isso, são as commodities!
Num sábado à noite não sei como mensurar o quanto é eternamente, o próprio sábado já me parece eterno, então, se somo a esse eterno a an...