Eu sou só um escritor. As pessoas me
contam histórias e eu não me importo se elas são inventadas ou verdadeiras
porque quando elas me contam, na cabeça delas as histórias são muito
verdadeiras. Quando são contadas pessoalmente dá para notar na expressão das pessoas
o tanto que aquilo faz sentido quanto o relato acontece. E essa que vou contar
a seguir me foi contada pessoalmente e eu acredito que foi verdadeira porque o
semblante, os gestos, o sorriso e até al lágrimas testificaram a verdade da
história. Mas eu não estou interessado se era verdadeira ou não. O que importa
é a história que eu vou contar.
Meu nome é Quinto, ele disse. Meu pai
queria ter cinco filhos, o primeiro nasceu e foi batizado com o nome de Primo,
depois veio a Marlene, daí os gêmeos Mario e Maria. Eu nasci e meu pai foi ao
cartório para me registrar, o cartorário perguntou pelo nome e ele estava feliz,
disse que ia ter cinco filhos e a meta fora alcançada eu era o “quinto”. O
cartorário não perguntou mais nada.
Na minha infância, continuou, eu
sempre fui muito tímido, na adolescência também, mas isso não interessa. Agora
sou adulto, já tenho emprego e vivo no meu apartamento por minha conta. Tenho
trinta anos e só agora encontrei a garota dos meus sonhos. Ela é linda! Sempre fiquei
sozinho, em casa, ou seja lá onde quer que eu fosse numa festa, sempre estava
só. Logo que chegou, dei-lhe o nome de Shepe que um site da internet, mas agora
eu a chamo de Morta. Não é uma morta
qualquer dessas que se não enterrar logo começa a cheirar mal. Não, a minha Morta
é uma morta que acabou de morrer eternamente.
Depois que comprei a Shepe, duas
colegas do escritório onde trabalho quiseram saber se eu namoro com ela. Sim,
eu disse, comprei ela para dormir comigo, ela é minha namorada! Acho que elas
ficaram com ciúme, mas não tem nenhuma necessidade, eu nunca fui namorado
delas. A Celeste até falou que queria namorar comigo. Não quero, eu disse,
agora tenho a Shepe. A Shepe, ela disse, é morta! Não tem importância, eu
disse, acho que ela sendo morta pode ser até melhor. E, eu gostei de trata-la por
morta. Gostei tanto que daí em diante
passei a chama-la assim.
Quando saio do escritório, tenho
pressa de chegar em casa e saber se minha Morta ainda está lá à minha espera.
De manhã, antes de sair deixo ela confortavelmente sentada sobre umas almofadas
a um canto da cama contra a parede e coloco um livro aberto sobre suas mãos
para que ela não fique entediada pelo dia todo da minha ausência. Chego em casa
ao entardecer, tomo-lhe o livro e vamos juntos tomar um banho na banheira.
Semana passada recebi a visita do
João e a Mara. Eles são casados há uns dez anos e nunca tinham vindo me
visitar. Agora vieram e eu estava jantando com a Morta quando a campainha
tocou. Eles riram de mim e acho que não entenderam porquê eu jantava com a Morta.
Pedi que sentassem e coloquei mais dois pratos e repartimos a comida que era
mesmo suficiente pois eu gosto de fazer comida a mais, daí sobra para o dia
seguinte. Durante o jantar eles queriam falar somente da Morta, tentei mudar de
assunto, mas eles sempre diziam: ‘A tua morta,
ela é boa companhia?’, ou coisas assim. Eu respondia que sim com a maior
naturalidade. Só pararam de falar da minha Morta quando a Mara desconfiou que
seu marido havia mentido para ela sobre qualquer coisa que não entendi. Ela olhou
para ele com aquele olhar que a Morta nunca fez para mim e ficou longo tempo em
silêncio dando empurrõezinhos na cadeira para se afastar dele.
Depois que eles se foram, a Mara saiu
na frente quase sem se despedir enquanto o João tentava disfarçar, eu bati a
porta e liguei o computador numa dessas rádios pela internet que toca música
romântica, estava tocando Lullabay. Convidei
a Morta, daí dançamos e o rádio cantou mais e mais músicas, então levei a minha
Morta para o quarto e fizemos amor. De manhã, quando deixei a Morta sobre as
almofadas com o livro do Camus, fiquei pensando na Mara, será que fizera amor
com o João?
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