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terça-feira, 23 de agosto de 2022

VIAGEM SEM DESTINO: Kilimanjaro

             


            Uma viagem sempre deveria ter um destino, mas este não era o caso do Raphael, assim mesmo, com “ph”, por ser filho de pai Inglês e mãe Norte Americana, mesmo tendo nascido no Brasil, Raphael foi registrado com esse nome estrangeiro que ele carrega em suas viagens pelo mundo a fora em busca de respostas para perguntas que só faz depois de saber que as respostas efetivamente não existem, então começa a planejar a próxima viagem e gasta a farta mesada que o pai manda dos Estados Unidos, onde mora atualmente e trabalha na embaixada da Inglaterra a serviço da Rainha e do primeiro ministro, a mãe continuou no Rio de Janeiro por um tempo até mudar-se para Campo Grande onde é professora livre docente em uma Universidade e acaba de publicar seu quinto livro sobre filosofia, enquanto isso, Raphael percorre as colinas de Kilimanjaro, no norte da Tanzânia, próximo da fronteira com o Quênia, em busca de perguntas para respostas que não existem.

Raphael embarcou no aeroporto internacional Ueze Elias Zahran, em Campo Grande e nunca se perguntou o porquê desse aeroporto ter esse nome, seria muito óbvio, respostas simples embrutecem as pessoas, dizia. Para os três amigos e a namorada que o levaram até o embarque ele apenas sorriu e deu um leve aceno de mão, virou-se para o corredor, ajeitou a mochila nas costas depois de passar pelo pórtico e do scanner corporal e seguiu em frente em busca de mais um nada em um lugar qualquer da África.

Quando comprou a passagem, decidiu que faria uma estadia de pelo menos um dia na cidade de Dar Es Salaam, no leste da Tanzânia, a maior cidade do país, talvez tivesse alguma resposta para suas perguntas.  Lá desembarcou às dez horas da manhã, almoçou no restaurante The Waterfront Sunset Restaurant & Beach Bar, na Sasany Bay. Pediu frutos do mar e pagou o equivalente a R$ 95,00 pela refeição. Andou pela baía, sempre com a mochila nas costas, e no meio da tarde tomou um lanche e foi para o centro da cidade, visitou Kariakoo Market e a igreja St. Joseph’s Cathedral of Archdiocese of Dar es Salaam. No mercado de Kariakoo quase se divertiu com tanta gente simpática, seu inglês fluente facilitou o contato com os vendedores e a moça da lojinha de Suvenir tinha um sorriso tão lindo que Raphael pensou em chama-la para um café quando findasse o expediente, mas logo chegou um rapaz com jeito apressado, deu-lhe um beijo na boca, e do bolso da calça tirou dois ingressos para o cinema.

Na igreja de St. Joseph entendeu o verdadeiro significado de Dar es Salaam, Lugar de paz. Construída no estilo Gótico e com duas fileiras de bancos vazios mal se ouvia o ruído da cidade e do Porto. Raphael sentou-se no último banco, do lado esquerdo, próximo do corredor e por um minuto olhou fixamente para o altar, queria descansar, andara a tarde toda em busca de perguntas e agora encontrara silêncio por resposta. O que poderia perguntar num lugar assim? Lentamente tirou a mochila das costas e colocou-a a seu lado no banco, passou a mão sobre a mochila para sentir seu conteúdo e pensou que num lugar tão silencioso poderia fumar um baseado e se unir ao nada do vazio do tempo. Fechou os olhos, não podia ter sequer um cigarro de maconha na mochila numa viagem dessas, acordou vinte minutos depois com o padre falando qualquer coisa em Suaíli, disse em inglês que não entendia e o padre perguntou em bom inglês se ele gostaria se confessar.

- No, I was just resting...

- Há muitas coisas das quais precisamos descansar, disse o Padre em tão filosofal, passou levemente a mão paterna pela cabeça de Raphael e dirigiu-se para a sacristia de onde só sairia meia hora mais tarde para a missa vespertina, mas a essa hora Raphael já não estaria mais na igreja.

Essa cidade lindamente estranha que ia passando pelos lados marcava, no relógio da catedral, o tempo de cada passo na rua, tempo que não existe, passos para lugar nenhum em um dia virando noite. As portas do comércio iam fechando possibilidades de vida enquanto a vida fervia nas ruas apressadas em carros e ônibus lutados carregando o peso de mais um dia na cidade. Enquanto os passos da cidade entram no transporte coletivo a noite voraz do tempo veloz engole as pessoas deixando nas ruas a escória da sociedade depositada embaixo dos viadutos e em frente de lojas, rindo da escravidão comercial e chorando a miséria da fome e do desprezo, fumando maconha e praticando o flashblood. “A catedral, há muitas coisas das quais precisamos descansar...”

Raphael jantou no Akemi Revolving Restaurant de onde se tem uma vista maravilhosa da cidade e do mar. Teve que pedir duas vezes a comida porque o garçom esqueceu de efetivar o pedido. Enquanto a comida não chegava, ligou para o pai nos Estados Unidos e agradeceu pelo patrocínio, o pai ficou feliz com a ligação e perguntou se precisava mandar mais dinheiro, Raphael agradeceu e disse que mandaria a conta do cartão, o pai concordou, daí desligou o telefone e Raphael ligou para a mãe, disse para ela que a cidade era linda e que do restaurante dava para ver a cidade toda, a mãe achou tudo muito lindo e disse que já estava outra vez com saudades, daí desligou o telefone e Raphael ficou com aquela certeza de ela iria para o quarto chorar. A janta chegou, finalmente, Raphael pediu mais um copo de vinho, comeu a sobremesa e pôs tudo na conta do carão de crédito, o pai ganha muito bem trabalhando para a Embaixada da Inglaterra.

As ruas de Dar es Salaam estão vazias como a vida de Raphael, aqui e acolá uma escória vivendo no meio da sujeira, são sobreviventes da noite, adaptados à cidade, enquanto todos correm para suas prisões os excluídos mantém as portas abertas, restos de comida abundam pelas lixeiras e restos humanos pelas calçadas, talvez um resto de maconha possa também ser encontrado.

- Can I get something, I have Money here...

A resposta veio em Suaíli, o negro tragou fundo, passou o cigarro para o companheiro, soltou a fumaça lentamente e ficou olhando o nada esfumaçado em sua frente, o companheiro repetiu o ato, o negro disse algo olhando de lado para o branco estrangeiro, o companheiro riu, o negro ficou sério. O negro virou-se, pegou dois baseados prontos e mostrou:

- Five dóllars...

Raphael acendeu o cigarro de maconha e soltou a fumaça pela janela do Golden Tulip Das Es Salaam City Center Hotel, abriu uma cerveja tirada do frigobar e então fez a si mesmo a primeira pergunta dessa viagem: O que fez o filho do Consul da Inglaterra se unir à escória da Tanzânia? Deitou na cama confortável do City e tragou calmamente seu cigarro de maconha, era onze da noite, a mãe estava em casa lendo Terra Sonâmbula do Mia Couto, o pai estava em Nova York tomando whisky na casa do Consul do Brasil e amanhã será dia de morrer em Kilimanjaro.

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