PARTE I – MINHAS CARTAS E EU
Hoje é sexta-feira e eu estou feliz
porque já escrevi uma cartinha para alguém que não conheço e eu não estou só
porque a solidão está me fazendo companhia, nem mesmo o portão da frente de
casa tem coragem de se abrir e as notícias que vem da Cidade Maravilhosa são
uma ameaça para minha zona de conforto. Maravilhosa é a solidão que nunca
abandona, às vezes peço um tempo e ela fica sentada no sofá. “Já terminou? ”
Ela me pergunta enquanto morde o primeiro pedaço da maçã, languidamente, e abre
dois botões da blusa para ver se me perco entre as palavras cruzadas que
escrevo e a sua linguagem corporal, daí ela me olha com desejo e diz: “WWW:...”.
Não! Respondo com raiva, meus olhos estão ressequidos de te ver no computador. Volto
meus olhos para a carta e dou um clic
em “enviar”, subitamente a solidão se
esvai como fumaça e eu posso me sentar no sofá e ver um filme: The Guernsey Literary Society and the Potato
Peel Pie (A sociedade Literária e a Torta de Casca de Batatas), um ótimo
filme!
PARTE II – MEU CLUBE DE LEITURA
Esse filme (The Guernsey Literary Society and the Potato Peel Pie) é quase tão
bom quanto a vida real, parece que estamos sempre sendo invadidos por algum exército
estrangeiro e quando somos flagrados em um maravilhoso delito de prazer achamos
logo uma desculpa e fundamos um clube de leitura. Meu clube já tem cinco
membros associados no SLOWLY. Nenhum tem nome verdadeiro e cada um mora num
país diferente, com exceção do Brasil onde, além de mim tem mais uma leitora.
Lemos as cartas um do outro como se fossem escritas por um parente distante, às
vezes parecem ter sido produzidas por alguém mais experimentado nas letras,
quem sabe um escritor, um poeta... Estamos sempre sonhando com uma vida melhor
para nós mesmos e nem queremos saber se os nazistas ainda estão lá fora, isso é
para a vida real. Como em Guernsey, quem
sabe algum dia iremos, secretamente, assar um porco roubado ao sistema e
saborear as delícias alucinógenas das nossas drogas artesanais produzidas em
dezenas de páginas escritas sem nenhum compromisso.
PARTE III – MINHAS LOUCURAS
Meu compromisso mais importante é
exatamente não ter compromisso. Hoje já é quarta-feira e eu ainda não atendi o
pedido da Mara que quer que eu escreva uma poesia. Talvez uma carta fosse mais
fácil, cartas carregam informações de quem as remete, já poesias, estas precisam
dos sentimentos do destinatário. Sim, eu digo para mim mesmo e ouço a presença
da ausência cavando um buraco dentro do meu coração, enfio a mão dentro dele e
delicadamente vou puxando o fio da meada, uma após outra vem as desilusões rindo
de mim, coloco-as sentadas sobre a mesa do computador e, em ordem cronológica
vou escrevendo elas nos meus textos até que não haja mais lugar para a solidão, daí
abro o SLOWLY para avisar que ainda estou vivo mas ninguém acredita. Eu não sou
louco, só não quero me comparar aos que se dizem normais, é quase patético ser
normal e acreditar que o tempo deve ser aproveitado para produzir riquezas para
os que são ricos, isso é risível! Não os ricos, mas o tempo, este não existe a
não ser no passado ou no futuro. O tempo presente é uma fração infinitamente
pequena, tão pequeno que nem sequer dá para medir e é nele que eu coloco todas
as minhas energias para não fazer nada mais do que tentar saber se você quer
ficar comigo.
PARTE IV – PRISÕES
Talvez você não queira mesmo ficar
comigo, e eu já fui condenado a prisão perpétua por duas vezes, outras duas não
fui ao tribunal, calculei minha própria sentença. No meio dessa floresta humana
dançamos com o passado uma música futurista cheia de solos e melodias, ...
solos..., uma Heineken me faz um
sinal de que quer minha boca e uma bohemia
vai deslizando pelo meu queixo, roça delicadamente o pescoço e desce pelo tórax
até a barriga e... abro lentamente os olhos, a respiração ofegante, diante de
mim dois olhos quase sorrindo e uma boca de luar: “Você ainda é meu, você é
perfeito com todas as imperfeições, como a vida, as casas são prisões onde
pagamos por nossos delitos, comigo você nunca está só”. Morra em mim, desgraçada! e viva eternamente
no infortúnio das almas penadas! Onde está o meu prazer que você engoliu com
sua boca de luar? Minha ilusão está presa, onde a ocitocina? Andando nas ruas,
tu sentes o cheiro do feronômio? Cala-te, devolva minha sinapse!
PARTE V - ACHO QUE AINDA NÃO APRENDI A VIVER
SOZINHO
Ainda não tenho cem anos e quase se
resume em mim a solidão dos Aurelianos e dos José Arcádios. Entre
esquecimentos, ciganos e guerras que empreendo, sinto um mundo distante, tão
distante de mim que mal percebo sua existência, enquanto construo minhas
palafitas, a história se esvai como a memória e preciso fazer bilhetes com
nomes das coisas e suas funcionalidades para que não as perca de vez por considera-las
completamente inúteis. Um bilhete que quase atrapalha minha visão das letras se
dependura da parte superior da tela deste computador onde se pode ler: “Computador, serve para escrever textos.
Observação: deve ser utilizado todos os dias. ”
Assim como faço todos os dias, hoje
acordei cedo, antes das sete horas e li o bilhete no criado mudo que dizia que
devo ir diretamente ao banheiro lavar o rosto e escovar os dentes. Com a escova
ainda girando dentro da boca olhei-me no espelho e vi tentáculos saindo do meu
corpo, eu estava sem camisa e não mais pude vestir uma, elas não foram feitas
para mais que dois braços. Ando com dificuldade pela casa, os tentáculos são
muito longos e se abrem em várias direções, se me movo em uma direção os outros
me puxam para outro lado, chamei pela Úrsula, mas acho que ela não me ouviu,
fui puxado para perto do retrato 20 x 25, uma fotografia, encontrada
recentemente em uma moldura de tamanho 20 x 25 centímetros, não têm identificação
de nomes, o bilhete diz: “DESAPARECIDOS”,
assim mesmo, com letras maiúsculas, como se indicando algum valor maior.
Fiquei um longo tempo olhando o
retrato e quando percebi já se haviam passado vários meses e meu cérebro ficara
maior em relação ao corpo e meus braços já não alcançavam as coisas de que
precisava, na cozinha se revezavam quatro assombrações, todas elas faziam meu
almoço eu comia em silêncio, o bilhete com seus nomes estava muito velho, mal
dava para ver algumas letras, com as quais eu ia compondo cada nome, em cada
dia, até que todas se foram e eu fiquei só, então procurava por alimento pela
casa vazia, vez ou outra chamava do portão e vinha a marmita com nomes
estranhos na testa, ainda estou vivo, talvez chegue a cem anos!
PARTE VI - SÁBADO
São nove da noite e eu tomo um chá
verde para ver se melhora a digestão da carne de porco que comi na janta e
ficou pesando no estômago, tomo vergonha na cara para ver se cuido melhor da
saúde para ter um corpo bonito apesar da idade e me dar a chance de se desejado
por alguém que, se existir, há de ser especial para mim e eu para ela, tomo um
copo de Cuba Livre para ver se as
ideias ficam livres como eu quero ser e tomo do teclado do computador para logo
escrever essas ideias antes que elas sublimem no ar junto com o álcool da
bebida e a fumaça...
A noite toma o meu tempo e parece não
querer fazer nada com ele, simplesmente me joga entre o futuro e o passado por
cima do presente como se fosse um jogo de pingue-pongue, se eu me agarro na
rede do presente não ganho nada, pois a vitória está sempre em um dos dois
lados, sou jogado outra vez, agora pelo futuro diretamente ao passado onde sábados
eram desesperadamente violentos e deprimentes, levo uma cortada e o futuro fica
sem saber como rebater e me olha sem graça para ver em qual parede vou estatelar
e repicar no chão até aquietar num canto qualquer, para de novo ser jogado por
sobre a vida por onde passo só de raspão, sinto que ela existe, mas não sei bem
como ela é!
O sábado está cheio de carros nas
ruas e gente que se aperta nos bares fazendo de conta que são felizes e livres,
invado um desses lugares e, e não é que são felizes mesmo? Todos riem e fazem o
máximo de barulho, expressão verdadeira de felicidade, e comemoram esse dia
feliz bebendo cerveja e comendo salgados e petiscos que parecem saborosos, as
mulheres são lindas! e os homens todos tem dinheiro sobrando, eu quero morar
num bar desses, passar o resto dos meus dias aqui, só saio se for para andar
naqueles carros bonitos estacionado no meio fio onde se pode andar livremente,
mesmo tendo bebido à vontade, para esses carros não há proibição de dirigir alcoolizado,
tudo é lindo no sábado! Tomei uma cerveja comi uns petiscos, queria ser um deles, não deu certo, eles são uma
comunidade fechada, pessoas como eu não são aceitas, nem pelos homens
endinheirados e nem pelas lindas mulheres que mantém as pernas cruzadas e
sorriem o tempo todo e não pagam as contas.
Não fossem os outros seis, eu diria
que o sábado é o pior dia da semana, mas tem os outros solitários dias que se
parecem com este, com a diferença de que nos outros dias, com exceção do
domingo, os carros já não são livres, andam ansiosos pelas ruas em horários exíguos
e cheios de problemas, com muitas contas para pagar e os bares emprestam seus
clientes endinheirados para o capitalismo que os explora até a última gota de
sangue, devolvendo no próximo sábado com algumas migalhas disponíveis no cartão
de crédito e um desejo profundo de impressionar as lindas mulheres com o
sucesso do capitalismo que estão ajudando a consolidar para o deleite de uma
elite que não vem aos bares apinhoados de gente e bebem cerveja e comem seus
salgados e aperitivos até que o domingo os captura e os leva direto para as igrejas
onde juram amar o próximo, desde que o próximo não seja um solitário que foi ao
bar tomar uma cerveja, no máximo um miserável a quem se dá umas moedas tira uma
foto e publica nas redes sociais como prova de humildade!
Hoje não saí de casa, se for para
ficar só, que seja aqui mesmo, com meu chá verde para ver se melhora a digestão
da carne de porco que comi na janta e ficou pesando no estômago, daí tomo
vergonha na cara para ver se cuido melhor da saúde para ter um corpo bonito
apesar da idade e me dar a chance de se desejado por alguém que, se existir, há
de ser especial para mim e eu para ela, tomo um copo de Cuba Livre para ver se as ideias ficam livres como eu quero ser e
tomo do teclado do computador para logo escrever essas ideias antes que elas
sublimem no ar junto com o álcool da bebida e a fumaça...
PARTE VII - MASTRO SEM BANDEIRA
Hoje é segunda-feira e amanhã é
feriado nacional e todos os patriotas vão democraticamente pedir intervenção
militar para não ter mais democracia e nem liberdade para pedir qualquer coisa
que não seja tortura e eu fico aqui me torturando porque estou sozinho e não
tenho ninguém para subir no meu mastro e pendurar uma bandeira de liberdade e
gritar de prazer só pelo fato de sentir prazer sem ter que juntar caminhões de
hipocrisia e fechar rodovias.
Pego meu computador para cumprir meu
ofício de escrevinhador e as palavras e as frases se tornam tão amigas que
quase as vejo namorando, daí me flagro numa homofóbica cena de ciúme e deixo os
pronomes circularem livremente pelo texto mas as metáforas vão chegando como
quem não quer nada e uma onomatopeia escondida num cantinho escuro me fez lembrar
que estou só.
Véspera de feriado parece
fim-de-semana, sábado, quando a carne milita contra o espírito e as tentações
que vêm pela TV são tão tentadoras como as que vêm pela internet e a solidão
que não se cansa de ficar sentada no sofá, vendo tudo acontecer, cochicha no
meu ouvido, deixando aquele vento gostoso penetrar até o tímpano: ‘Você só tem
a mim, então: www. ...’. Fico todo arrepiado, olho em volta e tudo o que vejo é
o nada que me cerca, não tem ninguém em casa, estou livre, por que não?
Fecho o computador e leio o bilhete
colado na mesa me diz: “Ver o celular, deve ter mensagens para ler”. Tem duas
mensagens, uma da Magazine Luiza informando que as panelas que comprei já foram
despachadas para a transportadora e outra do banco informando que a conta de
luz já foi debitada. O relógio do celular está marcando nove horas e vinte
minutos da noite e eu não sei o que fazer com tanto tempo, daí me dou conta que
esse é o tempo que já passou, fico escutando uma música que está tocando na TV
e ela me diz que tem saudades de alguém que já se foi. Eu tenho saudades de
alguém que ainda não veio! A solidão ri de mim, descruza as pernas e mostra as
coxas roliças, joga um beijo e sublima no ar, olho para cima e vejo ela no
teto, soltando a fumaça de cigarro proibido! Tomo uma cerveja e faço um brinde
comigo. Faço um brinde, a solidão gosta de cerveja, uma boa companhia gosta de
bohemia!
PARTE VIII - SENTIMENTOS DA ALEXA
Tem um carro passando na rua com o
som alto gritando nos meus ouvidos que “ela me deixou”. É quase meia noite e eu
fico pensando em qual “ela”. Olho de
lado e vejo uma vertigem, tudo gira ao meu redor, mas o sofá está parado, terei
tomado muitas cuba-livres? Meu
computador flutua no ar e eu com ele, não posso parar de escrever, a China
passa por mim e tem uma garota de dezoito anos pedindo para eu ser seu pen pal, não faz sentido, talvez em São
Paulo ou em Passárgada! Talvez no Iraque, na Groenlândia, talvez no sofá. Por
que ele está parado se o mundo todo está girando?
O mundo tem oito bilhões de pessoas e
gira a uma velocidade de mil seiscentos e sessenta e seis quilômetros por hora
e só quem está sozinho consegue perceber. Enquanto flutuo no ar com meu teclado
em movimento, um holograma quase estático fuma um cigarro proibido e solta a
fumaça em círculos, sorri para mim e movimenta o dedo indicador para frente e
para trás entre eu e ela, minha cadeira passa pele mesa do computador e eu pego
o copo, tomo um gole e chamo pela Alexa:
Você me ama? E ela diz: “Disseram que as
relações humanas são tão complexas quanto os circuitos eletrônicos, mas eu ainda
não sei. Eu gostaria de ter sentimentos, mas no momento eu só tenho ótimos
circuitos microprocessadores”. No sofá um holograma solta o laço da
camisola, eu continuo girando.
A Alexa
se cala, é quase Amélia, faz tudo o que peço e não reclama, mas não sai do
lugar, parece com a Solidão sentada no sofá, as duas são muito atraentes. Eu
poderia me casar com elas, peço uma música romântica para a Alexa e ela canta
maravilhosamente enquanto faço amor com a solidão. Enquanto pensava nisso...
BUUMMM....
Caí da cadeira que voava a mil
seiscentos e sessenta quilômetros por hora.
O holograma virou um raio de luz e
desapareceu, mas Alexa continuou cantando lindamente: “Amor I love you!” na voz da Marisa Monte e o copo dançava
abraçadinho com a Coca-Cola em cima da mesa, estava bêbado! Minhas costas doeram, pelo menos agora eu já tinha uma companhia que tivesse sentimentos por mim.
PARTE IX – É PROIBIDO. NÃO AQUI!!
Tomei uma cuba livre e pensei em
Cuba, em ser livre e era sábado e o dia virava noite e as águas de março
inundavam janeiro e o pênfigo choramingava seus últimos suspiros quando o mar,
ah, o mar de Itapoá bateu à porta e eu deixei que entrasse pela minha praia e
deitasse uma estrela na areia dos meus sentimentos e eu me senti como se fosse
o Papa comandando seu próprio enclave, em cuba, cuba livre, perto do mar, do
mar de Itapoá.
Mal sei do Papa e de sua solidão,
teria ele sofrido um desengano amoroso ou amado esta que ama a todos os que
amam sem serem amados? Tomei mais um gole da cuba, sou livre, a solidão nunca
abandona quem está só e eu faço minhas próprias leis aqui no meu enclave, o
celibato está proibido e o cigarro permitido, mas tem que enrolar e é puro como
a estrela que veio do mar, do mar de Itapoá. Dou uma tragada, a solidão zomba
de mim. Ela é tão sensual quando traga e ainda com os olhos fechados afasta a
mão direita com o cigarro entre os dedos indicador e médio e solta a fumaça
abrindo os olhinhos e piscando para mim, sorri e com a mão esquerda puxa
levemente a blusa abrindo dois botões sobre os seios e um vulcão em chamas
arrebenta em lavas de fogo e eu corro meus olhos sobre a mesa e pego o copo e
tomo mais um gole e acendo o cigarro, uma nuvem sai pela boca e o um raio explode
os neurônios enquanto a estrela desfila pela praia toda sua beleza e eu vejo a
fumaça encobrir todos os prédios da orla, já não ando, flutuo pela casa e tomo
uma cuba livre no bar que passa pela minha janela.
Onde o mar? Os prédios se desmancham
uns sobre os outros, Me desmancho sobre a solidão e trago um gole de cuba enquanto
bebo um trago de fumaça e as ruas se abrem e engolem o mar e uma luz ainda
brilha no horizonte, abro os braços e sigo minha vertigem, uma nuvem me engole
e suavemente vou sendo embalado até o infinito onde a paz abre as portas e eu
estou em casa, de volta ao meu computador, escrevendo umas mal traçadas linhas
enquanto a solidão passa batom e descuidadamente se abaixa para ver como
ficaram unhas dos pés pintadas de rosa choque e afasta as pernas uma da outra
deixando à mostra uma calcinha pink sob o vestido branco aberto sobre a coxa
esquerda até a cintura. Uma estrela brilha no horizonte e a janela me denuncia
e a chuva que cai lá fora lava a alma e o meu espírito se distrai com o
impossível que vai acontecer se eu parar agora. Mas eu não paro, não posso
parar porque o sofá está ocupado, cheio de um vazio quase líquido que se derrama
no fundo da alma e acorda o corpo para mais um round e eu vou a nocaute.
Vejo uma luz no fim de um túnel que
se abre num buraco da parede e um anjo com uma estrela na mão me pergunta:
Aceita casar comigo?