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quinta-feira, 3 de março de 2022

JOÃO E JOÃO, IRMÃOS



João Renato e João Constantino são irmãos gêmeos e estão prestes a celebrar seus setenta e nove anos de idade, nasceram no dia 14 de março de 1943, exatos nove meses depois que o pai, João Modesto, homem de 1,60 metro de altura foi convocado pelo exército para lutar na Guerra. A Itália parecia Golias diante dos Pracinhas brasileiros à espera de um Davi. João Modesto armou a funda e apresentou-se ao comando. Desembarcou na Itália em setembro para libertar aquele país e, quando voltou para casa, com o peito estufado de medalhas, encontrou os meninos batizados em sua homenagem, João e João já estavam andando pela casa e até balbuciavam algumas palavras. Papai estava orgulhoso, desfeito o contingente militar, João Modesto continuou a exibir seu uniforme em todos os desfiles de sete de setembro até que finalmente morreu, herói, em 1985, aos sessenta e cinco anos de idade, vítima de uma bala perdida numa troca de tiros entre a polícia e ladrões que tentaram assaltar a casa vizinha.

Em 1964, quando deixou outra vez a casa para atender o convite do comandante da polícia militar e participar da caça aos comunistas, por precaução, escriturou e deu posse aos filhos, de uma casa para cada um, casas boas, construídas em bairro nobre onde morava com a família. Fez testamento também e, caso morresse defendendo a revolução, os demais bens, uma casa e a loja de produtos agrícolas ficariam para sua esposa, aos filhos dera os estudos, os empregos e uma boa casa. Não houve questionamentos e João Modesto não morreu, viveu mais vinte e poucos anos e viu seus filhos fazerem as escolhas que relato a seguir.

Um ano caçando comunistas e o exército dispensou seus trabalhos, João Modesto, de volta à casa, encontrou os negócios andando normalmente, mas quando perguntou por João Renato, ficou sabendo que este vendera a casa que recebera e comprara outra na Vila Alvorada, bairro distante e pobre onde estaria vivendo da renda do dinheiro que lhe sobrara dos negócios das casas, enquanto João Constantino continuava em seu emprego na loja de produtos agrícolas e planejava casar-se e morar definitivamente na casa que herdara do pai.

- Meu filho, disse João Modesto, por que vendeste a casa que lhe dei?

- Deste-me bons estudos, disse o filho, formei-me administrador de empresas, estou administrando a minha.

- A tua? Não estou sabendo!

- A minha. Vendi a casa por um milhão de reais, comprei esta por cento e dez mil, estou administrando os outros oitocentos e noventa mil.

- Mas, não tens um emprego, uma empresa...

- Tenho, oitocentos e noventa mil reais. Vou investir mais noventa mil na reforma e terei uma boa casa, com o restante compro mais quatro casas para alugar e ainda irá me sobrar algum dinheiro para comprar um carro usado.

 

Cinco anos depois, enquanto a Revolução contava os mortos, assassinados pela tortura no DOI CODI, João Constantino já assumira de vez a gerência da loja e trabalhava pelo menos dez a doze horas por dia para garantir os lucros esperados e fazer os investimentos desejados. Não precisava de uma casa maior, a que recebera do pai era grande o bastante para a família que já contava com dois netos para orgulho do avô, herói da segunda guerra. Fazia muitos planos, todos para a empresa, seu salário aumentara consideravelmente e o dinheiro extra ficava guardado para adquirir ao pai uma parte da loja, queria ser sócio com o pai, mais quatro ou cinco anos de dedicação e teria condições de comprar-lhe a metade da empresa. Enquanto isso, João Renato continuava vivendo de renda, também se casara e todo seu trabalho era o quintal onde tinha um belo jardim e uma horta para colher verduras e legumes, tinha também algumas frutíferas. Diariamente ia ao parque fazer exercícios enquanto as crianças brincavam no parquinho. Ficara sócio do clube de lazer da AABB, onde ia tomar sauna e nadar na piscina com a família. Em casa tinha tempo para ler livros e até cozinhar. Comprou um carro popular e vivia em paz.

Mais cinco anos se passaram e João Constantino finalmente tornou-se sócio da loja que gerenciava. Não tinha mais salários, agora recebia Pró-labore, abriu uma filial da loja na cidade vizinha e fazia planos para expandir os negócios, talvez comprar uma fazenda. Todo seu tempo e o dinheiro era dedicado aos negócios, a esposa reclamava. João Renato, um belo jardim na frente da casa, horta produzindo e fruteiras carregadas, via o bairro crescer junto com a cidade que expandia rapidamente. A Vila Alvorada, antes um bairro pobre da periferia, agora tinha muitas casas bonitas e estava muito valorizado. Sua casa, que lhe custara cento e dez mil, mais noventa que gastara na reforma, agora valia, pela avaliação da imobiliária Americana, quatrocentos mil reais, valor parecido tinham as outras quatro que comprara cinco anos antes. Não teve dúvidas, pôs todas à venda e cuidou de procurar imóveis residenciais em outro bairro mais afastado. Seis meses depois carregava a mudança para a Vila Independência, loteamento recente onde comprou dez terrenos e construiu dez casas, uma para morar e nove para alugar, trocou seu fusca vermelho por um corcel branco. Era o ano de 1.974.

A agricultura se modernizava rapidamente e João Constantino estava feliz ao inaugurar sua quarta loja em janeiro de 1.980. Engordara, é verdade, os médicos lhe recomendavam cuidados especiais com a saúde, deveria fazer exercícios, ir à academia, praticar esportes, mas o trabalho exigia muito do seu tempo, os filhos mal o viam e a esposa já arrumara um amante, achava isso direito, o marido não lhe tinha mais tempo. Estava rico de dinheiro, pobre de saúde, miserável de afeto. Quando o pai morreu, em 1.985, João Constantino parecia ter sessenta anos, quando na verdade tinha quarenta e dois, mesma idade de seu irmão gêmeo que continuava vivendo da renda dos alugueis e cuidando do jardim, da horta e das frutíferas.

Os filhos de João Constantino, quando terminaram a faculdade foram trabalhar com o pai e logo assumiram a gerencia de uma das lojas, estão trabalhando duro para comprar uma parte e se tornarem sócios do pai. Quando fizeram trinta anos de idade, o pai deu a cada um uma boa casa num bairro muito valorizado. João Constantino deixou a administração da empresa no ano dois mil, e vive em casa tomando remédio para o coração, pressão alta e diabetes, sofre de artrite, artrose, trombose e a mulher o abandonou há tanto tempo que nem se lembra mais quando foi. Quer fazer uma festa de aniversário, só não sabe que cardápio ainda há de lhe proporcionar algum prazer.

João Renato vai fazer a festa de seu aniversário na Vila Independência, a cidade continua crescendo, os imóveis estão valorizados, mas ele não quer mais vender. Com a valorização dos imóveis, os alugueis também aumentaram e a renda é suficiente. Continua cuidando do jardim e da horta, para o serviço pesado paga um diarista. Anda de bicicleta e toma sauna e umas cervejas na AABB. Comprou um Logan 2.005. Deu uma casa para cada um de seus filhos, mês passado descobriu que o mais novo tinha vendido a casa para mudar-se para outro bairro na periferia da cidade. Procurou-o para conversar:

- Meu filho, disse João Renato, por que vendeste a casa que lhe dei?

 

(Observação: os valores estão atualizados para melhor compreensão)

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