Vai dormir meu filho. Direto para a
cama!
Essa agonia de novo. Que fizera esse
pai para viver tão aflito. A angústia só dá trégua nos intervalos em que brinca
com o filho ou em companhia dos amigos para um churrasco.
Inda agora estava bem. No quarto
brincando com o filho que levara para dormir. A historinha, as sombras na
parede, a oração, carinhos. O menino adorava quando o pai fazia folia com ele.
Hora de dormir. Não sai nada. Está
muito literal. Talvez não dê para fazer. É preciso destravar. Deixar fluir.
Aquelas palavras gostosas de escrever e sentir. Roçando nas pontas dos dedos e
deixando um gostinho gostoso nos lábios. Palavras boas que foram sumindo...,
sumindo. Até que a agonia tomou conta do viver. Que viver sem palavras é não
viver. As repetições poéticas são boas, mas as repetições da tristeza só são
tristes mesmo se forem silenciosas.
No silêncio da palavra escrita não há
vida. Na vida sem palavras está a agonia do ser que é egoísta, tolo, medíocre,
porque pensa que sabe e fala o que não sabe. Palavra é boa quando escrita pelo
sentimento. Boa de escrever, deliciosa de consumir. Sem compromisso com o
sistema, sem necessidade de prestar contas. O autor que se vire. Já gozou o
prazer de construir frases livres. Agora paga o preço do preconceito de
ignorantes que se acham inteligentes.
Palavras livres, saborosas. Deslizam
pela ponta dos dedos como se estivessem enfileiradas pelo lado de dentro. Fila
única em cada um, indiana, sai sem enrosco e nem escrúpulos. Assim, sem pressa
e nem lesmeira. Palavras boas. Doce sabor que alimenta a alma e o espírito.
Hora de ver o menino. Dormiu. Isso é
bom. Dormir faz as pessoas serem livres. Podem respirar livremente, roncar e
rolar e ... sonhar! Ah, sonhar! O sonho não tem juízo. Não é racional.
Nele o homem é livre. Pode voar, matar, ser morto e amar. Sonhar, voar...
Agora tenho sossego. Acabou o
recreio da agonia. O menino dormiu. Estou só e posso escolher entre ser
racional ou emocional. Racional é matemática, física, química. Emocional é
poesia, equilibrar os números numa infinidade de notas musicais imaginárias. Catapultar
a imaginação para muito além dos limites e derivadas. Associar elementos
imaginários numa reação amorosa impossível. Emocional, o impossível se
realizando no espaço interior do mundo individual. Agora tenho sossego. O
menino dormiu e o adulto está fora de si. Que bom estar ‘fora de si. ’
- Amor vem
dormir, já está tarde.
Ah, sim, dormir. Agora me lembro. Estou
acordado. Talvez precise dormir. Não suporto lembrar que estou acordado. Dormir
é quase tão bom quanto deixar as palavras fluírem livremente. Dormir e
sonhar. Livre da razão, livre da opressão. Se dormisse não ouviria esse chamado
racional: `Já é tarde`. Estaria sonhando. Sem preconceitos, sem doutrinas, nem
normas, nem nada. Livre. Voando literalmente. Fazendo coisas fantásticas,
matando e morrendo e ainda assim vivendo. Namorando e transando sem medo de
doenças sexualmente transmissíveis. Sem medo de nada, que no sonho não é
preciso ter medo. Hora de dormir...
Hora de acordar. Acordado não é bom. O
capitalismo acorda os motores barulhentos e a rua invade casa adentro tirando o
sossego de todos. Não gosto quando os carros entram pela janela, pela porta e
as pessoas na rua gritam nos meus ouvidos. Hora de acordar. De ouvir barulho.
De saber que em poucos minutos alguém via tomar meu dinheiro.
- Querido, compra pão
e leite? A gasolina está na reserva, vou abastecer. Dá dinheiro para eu fazem
umas compras? De tarde vou pro salão. Tem uma conta que vence hoje na
Riachuelo. Tem a luz a água, o supermercado, o telefone. Na caixa do correio
tem um monte de panfletos pedindo dinheiro. Ofertas e ofertas. Dinheiro e
dinheiro. O médico, o dentista, cabelereiro. Eu também. Meu filho vai à
escola...
- Que horas
são? Sete e meia! Nossa! Tô atrasada, tchau.
Hora de ficar só. Meu emprego começa às
dez. Até lá minha mulher vai dar atenção ao capitalismo. Depois eu também vou.
Não sei muito bem o que é o capitalismo, mas sei que ele é sábio e sedutor.
Todo mundo gosta dele, ou faz de conta que gosta. Você deve sorrir para o
cliente. Seja gentil e amável, o cliente sempre tem razão, é ele quem garante o
capitalismo.
Depois da escola, meu filho, não sei se
quero que você cresça.
Vai dormir, é melhor.
Elairton Paulo Gehlen
O capitalismo é por vezes cruel, dormir e sonhar é bom e faz bem, mas prefiro o dia, de olhos abertos e sentimentos livres, mesmos os mais sofridos, porque assim me sinto a vida. A vida é passageira de sentimentos,por vezes frios, mais prefiro senti-la bem viva durante o dia!
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