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quarta-feira, 2 de julho de 2025

POVO ELEITO

 



Olá, boa noite! Sim, neste momento em que escrevo estas mal traçadas linhas é noite, e do dia dois de julho e está frio aqui na cidade de Dourados. O frio é bom porque me faz pensar em como é bom ter uma usina de energia solar no telhado da casa e com a energia produzida poder ligar o condicionador de ar para esquentar e ficar de boa aqui escrevendo qualquer coisa no teclado do computador. Foi necessário que o frio viesse para eu perceber como é bom o calor, desse jeitinho, na temperatura que eu quiser que ela esteja.

Ah, sim, o título diz que eu deveria escrever sobre Povo Eleito e eu estou aqui pensando no meu conforto, em meio a uma dificuldade com o frio. Tudo bem, falemos de eleição, e esse é um assunto bem amplo, tem povo eleito pra tudo quanto é lado. Eu mesmo já fui eleito muitas vezes, Centro Acadêmico, Diretório Estudantil, Associação de moradores, Sindicato dos bancários, CUT, CNB, Partido Político, Produtores Rurais da Agricultura Familiar, etc. Nunca ninguém pagou salário para eu cumprir meus mandatos! Às vezes povo eleito não significa privilégios, mas trabalho, muito trabalho.

Mas, tem um povo eleito que gosta mesmo é de privilégios, e dos grandes. E só foram eleitos graças à Democracia, mesmo assim tens alguns deles que odeiam a Democracia, mesmo sendo eleitos graças a ela! E até que faz sentido ela ser odiada, ela merece. A Democracia é uma prostituta, ela sorri para todos, mas se entrega de corpo e alma aos endinheirados! A Democracia ama o poder e o dinheiro! Ela é a intercessora entre seus eleitos e Mamom. A arena política esta cheia de prostitutas cultuais adoradoras do deus Mamom. Mas, fique tranquilo, não vamos dar toda a culpa à Democracia, genuinamente ela é quase uma santa, o problema á o povo eleito, eles transformaram a Democracia, que era perfeita, em algo esdrúxulo, tal qual os próprios.

Então, por que alguns eleitos odeiam a Democracia? Simples, porque, mesmo sendo eleitos pela Democracia e adorando ao deus Mamom, esses eleitos adoram a Baal e a Moloque. Baal é o deus da tempestade, e esses eleitos adoram uma tempestade no campo político, mas Baal também é o deus da fertilidade e da agricultura. Nada mais a dizer! Quanto à Moloque, esse é o deus ao qual se sacrificam as crianças, os inocentes. Num sentido político mais amplo, os mais pobres, dos quais se deve tirar todos os direitos. Os adoradores de Moloque são os que festejam a matança que Israel está fazendo na Palestina, onde já assassinou mais de 50 mil pessoas, a maioria mulheres e crianças.

Às vezes os eleitos pela Democracia, também se consideram eleitos por Deus e, contraditoriamente, dizem que os eleitos pela divindade são somente os Judeus. E aí vale tudo, até defender o assassinato de mais de cinquenta mil inocentes! Mas, sim, os Hebreus eram o povo eleito de Deus e os Judeus são descendentes dos Hebreus, no entanto, porém, contudo, o povo Judeu se deserdou quando não reconheceu a Jesus como Filho de Deus, e teve seu mandato cassado. Desde o surgimento do cristianismo, o Judeu não é mais um povo eleito!

A eleição alcançou os Ímpios e a Democracia genuína permite aos pobres o acesso ao poder, e é por essa Democracia que eu lutei em cada mandato que cumpri.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

REVISÃO DA VIDA INTEIRA

 



Mesmo com a decisão do Supremo Tribunal Federal-STF, de 2.024 de não reconhecer o direito dos trabalhadores à Revisão da Vida Toda para benefícios de aposentadoria, eu decidi por conta própria, fazer minha revisão da vida inteira agora em 2.025 e estou determinado a acrescentar à minha vida os benefícios que calculo sejam maiores que aqueles que eu adquiri em todo o tempo de vida, e vou incluir na revisão o tempo em que não contribui diretamente ao INSS.

Não é fácil rever os arquivos do passado, muitas das contribuições, talvez a maioria, foi de baixíssima qualidade e pouco valor. Houve um tempo, muito longo, em que eu não tinha nenhum valor aparente e, não tendo valor, a vida passou sem nenhuma contribuição que tivesse algum proveito, pelo contrário, grande parte da minha primeira existência foi, digamos, improdutiva. Pensei imediatamente em deixar de lado esse período, mas logo percebi que os demais períodos eram consequência do anterior e fiquei temeroso de o Juiz pedir a inclusão de todos os períodos de vida para serem avaliados, então passei a analisar os próximos para ver se isso pode impactar na vida atual.

Acho que os biólogos não concordam em que haja primeira, segunda, terceira existência, mas a minha vida foi tão claramente fracionada que até essa categoria profissional há de concordar que, pelo menos no meu caso específico, essa classificação seja admissível. E, admitindo que a primeira existência foi completamente inútil, concentrei esforços de memória nos arquivos da vida para definir duas coisas: primeiro, o tempo da segunda existência, esforço completamente desperdiçado, porque o que estava claro para a primeira, estava, digamos, escuro na segunda. Outra coisa importante: se a segunda existência teve valores significativos para a vida toda. Outra perda de tempo!

Juízes de primeira instância hão de reconhecer, e os demais togados de outras instâncias superiores não irão contestar, que só o fato de eu ter ido às escolas já é um mérito a ser reconhecido. Ainda que os resultados tenham sido medíocres, o fato de eu ter sobrevivido à primeira existência e me esforçado na segunda já merece um acréscimo ao valor atual da vida.

Se bem fundamentadas as argumentações sobre os danos recebidos nas primeiras existências e, tendo claro que o meio influencia o indivíduo, o que é comprovado cientificamente, há que se considerar que o meio é de responsabilidade do estado que deve proteger o indivíduo e garantir o bem-estar de todos. Desse modo, é forçoso inferir que a terceira existência foi prejudicada por omissão do poder público que privilegiou políticas sociais de valorização do capital em detrimento dos seres humanos, permitindo que os capitalistas estabelecessem critérios de valorização das pessoas produtivas por méritos de valores econômicos em detrimento das questões sociais e humanas, o que certamente ocasionou a exclusão de pessoas como eu, que sofreram danos por deficiência dos órgãos de estado.

Depois de me convencer de que o estado é o grande culpado pela minha atual condição de aposentadoria, passei a dedicar horas preparando a petição inicial do processo de revisão da vida toda. Mas, na busca por provas que condenassem o estado acabei por me deparar comigo mesmo num processo doloroso de crescimento e, observando as decisões que tomei ao longo da vida, percebi que grande parte delas, talvez a maioria, foram decisões equivocadas e que comprometeram consideravelmente o meu futuro. No caso, o futuro é o tempo atual.

Foram tantas as decisões equivocadas, que me senti culpado antes mesmo de iniciar a petição. Um dilema se apossou de mim: As decisões que tomei influenciaram o meio onde me desenvolvi, ou foi o meio onde me desenvolvi que me fizeram tomar as decisões que tomei? O meu copo de cerveja está pelo meio, eu não sei dizer se está meio cheio ou meio vazio! Talvez seja mais fácil culpar o mundo e o sistema capitalista, mas daí entro em outro dilema: Eu só terei paz se perdoar e eu sei que jamais serei capaz de perdoar quem promove a miséria social por onde fiz um grande estágio na minha vida.

Revendo minha vida toda, encontrei coisas muito ruins, para as quais eu mesmo me instituí Juiz e as condenei ao mar do esquecimento eterno. Mas também encontrei muitas coisas boas e julguei por bem usufruir de tudo que a vida me disponibilizou. O estado e os capitalistas? Que queimem no fogo que nunca se apaga!

Estou acrescentando valor à minha aposentadoria, e não é valor monetário!

Feliz dia do aposentado!!!

- Hã! Foi em janeiro? Tudo bem, feliz dia mesmo assim!

terça-feira, 10 de junho de 2025

LISTA DE DESEJOS




Uma lista de desejos, quem não tem? Um carro novo, sim esse é o primeiro da lista dos desejos de qualquer que não tenha a menor condição de comprar um carro novo! Uma casa com uma bela garagem para o carro novo também entra na lista, e daí logo pensamos na Caixa Econômica Federal e imediatamente nos lembramos do Lula e do Minha Casa Minha Vida e sonhamos com uma dívida que durará trinta anos e só vai acabar quando realizamos outro sonho da lista dos desejos: aposentadoria. Mas, daí nos lembramos do Temer e da reforma da previdência que nos tirou o direito de aposentadoria em vida e vamos trabalhar até morrer. Não posso dizer que morrer seja um item da lista dos desejos, mas que possamos viver dignamente até morrer, isso é seguro, está em todas as listas, ainda que os liberais façam de tudo para que não nos lembremos nunca deste item.

Essa lista desesperadora de desejos simples e impossíveis às vezes nos faz desistir de ter uma lista de desejos, pelo simples fato de o impossível ser impossível. Semana passada eu estava conversando com um amigo meu chamado Júlio, ele é um desses desistentes, disse ter feito a lista e depois de muito chorar achou por bem jogar a lista no fogo que não se apaga e, de joelhos em terra, levantou as mãos para o Céu e clamou ao Supremo pelo impossível, e foi nesse exato momento que eu cheguei. “Você ganhou na loteria e veio me dar um carro novo!” Ele olhava para mim e eu pude perceber uma auréola luminosa ao redor da sua cabeça. Foi nessa hora que eu percebi o quanto a fé é capaz de mover montanhas, e a realidade que é mais dura que as rochas que seguram a montanha, é capaz de mover a fé!

Eu disse que sim e ele imediatamente confirmou o milagre e ajoelhado outra vez pediu que o Supremo fosse benévolo o bastante para completar a lista que agora ardia no fogo eterno. Daí eu me obriguei à mais dura tarefa que um homem sem condições de dar um carro novo de presente pode se obrigar e disse-lhe que não, eu não ganhei na loteria e não vim para dar-lhe um carro de presente. “DROGA”, ele disse, “Eu mandei a lista dos desejos para o inferno e as minhas orações para o Céu, agora já não tenho nada”.

Não posso dizer que a minha visita ao amigo Júlio foi aprazível, não pude consolá-lo em sua aflição, também não fui irresponsável de dar-lhe a esperança de milagres dessa natureza. Por pouco que não o mandei dar uma oferta vultosa à uma dessas igrejas que prometem o milagre da prosperidade, mas achei melhor me calar, ele já tinha se decepcionado o bastante, não precisava de mais uma decepção.

Em casa, depois de estacionar meu carro usado, na garagem da casa financiada pela CAIXA, inevitavelmente fiz a minha lista dos desejos. Considerei os três primeiros itens cumpridos e tomei a primeira cerveja para comemorar que já tenho um carro, uma casa e estou aposentado. Pensei corajosamente em acrescentar MORRER na lista e me dar por satisfeito, mas daí lembrei-me que antes, talvez eu pudesse ainda realizar alguma coisa útil, pensei de novo, e de novo e, depois de pegar a segunda cerveja escrevi: “Ter sempre cerveja em casa”. “Ótimo”, pensei, “agora só falta... não, morrer ainda não, se eu vou ter sempre cerveja em casa, então melhor viver bastante”.

Escrevi na lista: “Férias”, mas pensei: como pode um aposentado que não trabalha tirar férias? Não me dei por vencido e pensei em o que contém as férias, logo me veio à mente uma viagem, e esta contém passeios, e estes contêm praia e trilhas, estes contêm companhia, esta contém amizade e esta finalmente contém o desejo das férias: Amor! Sim, mesmo sendo aposentado eu desejo tirar umas férias!

Grifei cuidadosamente esse item da lista e me lembrei do Júlio, ele á professor, certamente estará de férias em julho. Liguei para ele, minha voz estava meio embargada depois da quinta cerveja, mesmo assim acho que me fiz entender, pois ele disse: “Agora entendi, todos os itens da lista parecem conter subitens que sempre levam ao amor. Vou ligar para a Mariele e convidá-la para viajar comigo em julho, daí vou pedir ela em casamento. O que eu boto na lista: Férias, viagem ou casamento?”

Não sei o que ele fez, eu por mim deixei só férias, por enquanto.

sábado, 17 de maio de 2025

MUNDOS PARALELOS

 



            Tem pelo menos um louco que é lúcido neste nosso universo, mas que fala umas coisas que parecem umas loucuras, todavia, essas coisas que parecem loucura talvez tenham algum fundamento científico, que é o que ele diz, só que não havendo comprovação, são apenas teorias especulativas da ciência que, por não ter outra atribuição para os cientistas, deixa-os fazer elucubrações acerca de universos paralelos.

O cara se chama: Max Tegmark, ele é um cosmólogo sueco e desconfia, confiando muito, que existam pelo menos quatro níveis de universos paralelos onde a realidade pode ter diferentes formas de existência. Tem um outro carinha que também desconfiava confiando isso, ele se chamava Stephen Hawking. Quem sou eu para duvidar?

Para dizer bem a verdade, eu acredito piamente na existência desses mundos paralelos. E eles são bem visíveis aqui no Brasil, veja o caso da CBF-Confederação Brasileira de Futebol, que acabou de contratar um treinador pelo salário de R$ 5.000.000,00 de reais por mês, mais alguns penduricalhos como uma mansão no Rio de Janeiro, diversas passagens aéreas para a família ir o voltar da Europa, e outras coisas mais. O futebol brasileiro é mesmo um universo paralelo, aqui as casas de apostas são as patrocinadoras dos times de futebol e pagam prêmios para quem acertar o resultado do jogo. Para mim, isso não tem o menor sentido!

Supondo que futebol seja só uma tese, então seria bom outro caso parecido para confirmar ou negar a tese. Vamos pensar na política, é ou não é um universo paralelo? O Lula governa o Brasil no terceiro mandato e jura que o Partido a que pertence é socialista, mas foi nos governos petistas que os bancos registraram os maiores lucros da história do sistema financeiro nacional! Os bolsonaristas juram pelo deus do Malafaia que a Terra é plana e os Deputados da estrema direita estão propondo uma Lei que garanta, por via legal, que os criminosos que invadiram e destruíram o patrimônio público, são inocentes, tornando a ilegalidade legal. O que seria um absurdo, se não existissem universos paralelos!

Às vezes eu penso que estou vivendo em um desses universos paralelos. Tenho sentimento tão diferentes e percebo a vida de uma forma tão estranha que parece que a realidade à minha volta não faz nenhum sentido. Daí lembro-me dos existencialistas, mas o existencialismo de Sartre, Camus, ou ainda, Heidegger, Kierkegaard ou até mesmo Nietzsche não dão respostas, porque o não-sentido da vida é para a realidade do meio onde vivo, mas não para o meio onde existo, esse paralelismo da existência da vida e da alma.

Hoje é sábado, um dia comum, e o meu universo é Dourados. Fazer o quê?

domingo, 11 de maio de 2025

TEM VALOR O ESCRITOR LOCAL?

 



Parte da minha pequena biblioteca é dedicada aos escritores locais, e quando digo ‘locais’ isto inclui os de outras cidades ou estados, desde que sejam meus amigos, irmãos, netos, etc. Esses escritores estão próximos demais para que eu os imagine como super-heróis ou de uma inteligência inalcançável. São, também, humanos demais, eu os vejo de tempos em tempos, e isso os torna reais demais para que eu os imagine como sobrenaturais, dotados de poderes divinos ou donos de uma cultura só acessível aos deuses do olimpo.

Escritores assim costumam ser relegados a um segundo plano quando pensamos em adquiri um bom livro para ler ou até mesmo para deixar sobre a mesa da sala como propaganda de nossa cultura inexistente. O imaginário popular parece considerar mais importante o que foi escrito na Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, Rússia ou em algum estado brasileiro onde os famosos publicaram suas obras e a indústria fez o papel de as divulgar e distribuir. Esse processo industrial é parecido com o que nos faz comprar Bombril, Brahma, vinho do porto. As grandes editoras lançam e comercializam poucos autores para faturar muito, é o mesmo processo dos supermercados onde um pouco mais de uma dezena de conglomerados controlam o comércio de quase todos os produtos, e nós na maioria da vezes, os preferimos aos dos micro produtores locais.

É certo que às vezes, nós mesmos, os escritores, decepcionamos o nosso público. Esquecemos que eles não têm nenhuma obrigação de saber que o que estamos produzindo é diferente daquilo que eles imaginam que vamos escrever, e eles não tem nenhuma obrigação de saber que nós temos a liberdade de escrever sobre o que estamos pensando. Essa liberdade de produzir um texto é para os deuses da literatura que estão escondidos atrás das mídias, não para as pessoas reais que encontramos nas ruas e que nos cumprimentam com um bom dia. Para eles temos que ser como Vinícius que bebia cerveja no Bar Veloso, em Ipanema, no Rio de Janeiro, quando escreveu Garota de Ipanema vendo Helô Pinheiro passar pela rua em direção à praia.

Todos que conheciam Vinícius compravam seus livros porque sabiam que ele iria escrever poesias falando de amor. As suas poesias e as suas crônicas estavam estampadas nos jornais. O que publicam as mídias hoje? Fake News, sensacionalismo, publicidade enganosa, notícias comerciais, matérias pagas, jogos de azar e, de vez em quando, literatura! “Ah, mas eu vejo muita literatura!” Sim, de autores estrangeiros ou nacionais vinculados a empresas de marketing.

Escrevi esse texto porque estou revoltado ou por que bebi muita cerveja? Às vezes quando tomo umas a mais os pensamentos voam direto para o futuro ou para o passado ou ambos ao mesmo tempo e eu fico sem controle. Me apaixono e desapaixono em uma fração de segundos. Penso na vida e na morte e nos autores locais que se esforçam inutilmente por vender suas obras e, por fim, faço planos de passar as férias de inverno na praia com as minhas reticências.

Aproveito a deixa do autor deste texto, que sou eu mesmo, para fazer a minha autocrítica. Mesmo tendo lido com frequência os autores locais, que são meus amigos, quando faço referência a algum autor em meus textos, tenho dado preferência aos ‘estrangeiros’. Mas, agora, não tenho outra opção que não seja confessar: Dourados tem grandes escritores. A começar pelo Nicanor Coelho, que pessoalmente eu não gostava, mas ‘Vida Cachoeirinha’ é uma obra a ser lida! As poesias da Heleninha de Oliveira, da Odila Lange e do Marcos Coelho, só para citar alguns, não podem passar em branco. Em junho tem a quinta FELIT- Feira da Literatura de Dourados e umas dezenas de autores locais estarão por lá para provar que nossa literatura é tão ou mais agradável que os produtos industrializados pelas grandes editoras.

Eu fico feliz que o computador tem um ícone que salva o que já se escreveu, assim eu posso deixar para continuar o texto amanhã. Agora estou tomado por muitas reticências, meus pensamentos estão em Bombinhas e eu vou abrir mais uma cerveja.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

É POP!

 




O Papa é um leão, o décimo quarto da história da Igreja Católica e eu estou aqui preocupado com o Ronaldo, o gatinho que sumiu daqui de casa há uns três dias, menos tempo que isso foi necessário para que os Cardeais trancados à chave escolhessem o Leão que os guiará até que a morte os separe. O Ronaldo só comia, bebia e dormia, agora sumiu. Morreu?

Tem coisas, ou pessoas, que somem porque morrem, como o Papa Francisco, outras simplesmente somem, como o Ronaldo, mas também tem aquelas que deixam de falar com a gente como se a vida tivesse pedido um intervalo de tempo para o descanso. Há uma semana que a saudades é uma reticência em minha vida.

Os Papas são todos POP! Até o Bento XVI, aquele que comandou uma igreja manchada pela corrupção e pedofilia e não foi capaz de tomar providências para confissão dos pecados, sim, até Bento XVI era ovacionado na Praça São Pedro em cada suntuosa aparição dominical. O Ronaldo, nosso gatinho, não é castrado e de vez em quando some daqui de casa, certamente para comer umas gatinhas no cio, depois ele volta como se nada tivesse acontecido, come a ração, toma água e dorme o dia todo com a mesma cara de santo que uma leva de padres católicos faziam depois de comer os coroinhas. Até quando a Igreja Católica vai proibir os Padre de se casarem? Pedro, que a Igreja tem orgulho de apresentar como o primeiro e mais exemplar Papa, era casado. Enquanto escrevo esta crônica, a saudades, em forma de reticência, grita um silêncio ensurdecedor no meu WattsApp.

A eleição de um Papa é um show! Parece Copa do Mundo.  Transmissão ao vivo, expectativa pelo gol, quer dizer, pela fumaça da chaminé da Capela Sistina, torcida organizada em várias partes do mundo, banca de apostas e, claro, o jogo, este sem a presença da torcida e nem da imprensa. É no Conclave, com chave, em total segredo e com votos de confidencialidade, que os cardeais, cento e trinta e três juízes, decidem o resultado do jogo não jogado. É tudo no tapetão! Não tem Superior Tribunal do Papado para julgar o processo eleitoral, não tem fiscais de urna, não tem imprensa para denunciar casos de corrupção, as cédulas são todas queimadas, não sobra nada. A torcida fica sabendo que o jogo acabou quando a fumaça branca sai da chaminé. Acho que o Ronaldo ainda não sabe quem é o Papa porque ele está sumido há três dias e eu estou aqui escrevendo esta crônica pensando nas reticências que a saudades vem deixando desde domingo passado.

À minha frente, na parede, está um Drummond que comprei na Feria de Literatura de Dourados ano passado. O quadro foi pintado ao vivo durante a feira, pela artista venezuelana Sthefhanny, e eu fico aqui me perguntando: O que o Drummond escreveria sobre o sumiço do Ronaldo, exatamente durante o Conclave que elegeu um Leão para o Papado? E a minha cabeça só pensa nas reticências que a saudades produz desde domingo passado. Eu não sei quais são os planos do Leão para a Igreja Católica, só sei que eu tenho planos para as férias de julho, eu quero ir para Bombinhas, em Santa Catarina, mas tudo depende das reticências...

quarta-feira, 7 de maio de 2025

RAQUEL DE BOA E A SANTA COMPADECIDA

 



Quando cheguei na Praça o dia se vestia de noite e o céu espionava o palco de concreto com os olhos de lua. Os olhos brilhavam as luzes e o palco estava iluminado de arte em potencial. A negritude se vestia de muitas cores anunciando espetáculo de fé! Uma pequena multidão já bebia a negritude musical e o relógio dizia que sim, daqui a pouco vai ter teatro.

Era teatro aquela história contada por verdade ou era verdade aquela história contada num teatro? Era arte! Se a história era verdadeira não sei, falava de morrer e viver, de coroar a Santa. Nem todo mundo acredita que Santa é Santa mesmo. Tem quem garanta que a Santa que já morreu voltou a viver, mas ninguém garante que depois de morrer já viu a Santa lá do outro lado da vida. Ah, desculpe! Tem alguém sim, a Raquel de Boa, ela morreu e viveu e viu a Santa, eu vi, ela morreu na peça de teatro e foi coroar a Santa lá do outro lado da vida.

Pensei em morrer também quando a Raquel de Boa reviveu, mas daí lembrei-me que já morri algumas vezes no teatro da vida real. Quatro dias depois da peça ainda faço as contas de quantas vezes morri e ressuscitei. Quase morro só de pensar em cada morte! Melhor não fazer as contas. Corro com a coroa corroída em busca da morte definitiva esperando os aplausos de quem sempre me ridicularizou.

Fechei os olhos por um instante, o suficiente para ver uma multidão de Santos: homens, mulheres e crianças sendo assassinadas na Terra Santa! Mais de cinquenta mil, mortos por um povo que se diz Povo de Deus: Israel! O inferno acrescentou combustível às suas labaredas de um fogo que não se apaga na Palestina. Uma fábrica de Beatos! Quis perguntar para a Raquel de Boa, ela que já morreu e foi pro Céu coroar a Santa, o que ela acha que seria se todos os assassinados por Israel revivessem no Céu, como ela, e fossem diante da Santa contar o acontecido, mas não pude porque já faz quatro dias que ela voltou para São Paulo. Então, alguém me ajuda, por favor: Se mais de cinquenta mil pessoas assassinadas no genocídio promovido por Israel se apresentassem diante da Santa, o que ela diria?

Cansei de pensar, agora vou dormir e sonhar com a Raquel de Boa coroando a Santa Compadecida!

 

quarta-feira, 23 de abril de 2025

AIRBNB .......

 



Estou de férias, ah, que delícia! Não estou em um resort, mas ando assim, de airb em bnb, matando saudades e construindo sonhos. Viagens eternas que duram o quanto que tem que durar, que eternidade não é a infinitude do tempo, mas o tempo infinito do momento onde se quer estar. E vão-se os passados, cada vez mais distantes, afundando-se nos buracos escuros da alma. Em seu lugar fazemos um novo caminho, cheio de vida e calor, deixamos rastros de felicidades onde sonhos buscam alimentos futuros e o presente se espelha no olhar quase distraído que repousa confortavelmente sobre a beleza do amor.

Choquei filhotes de filhota em São Bento do Sul onde se construiu um ninho acolhedor de patinhos feios, todos muito lindos e queridos. Ah, quisera o Supremo que eu pudesse ficar chocando uma eternidade a mais que a eternidade chocada! Mas era preciso que os sonhos continuassem se alimentando dos rastros deixados no asfalto, então buscamos refúgio na belíssima Curitiba. Quatro dias sedimentando caminhos e regando sonhos de família e Chopp em dobro e terapia do medo. Não tenho mais medo a não ser do medo do medo. Ainda tenho medo de ter medo outra vez de algo que agora não tenho, medo de criar novas cicatrizes na alma. Mas tudo se acalma quando um abraço se enlaça em meus pesadelos e faz o coração derreter saudades.

O tempo e o espaço já não existem, o presente é uma fração infinitesimal tendendo a zero, não há passado, não há futuro, é a eternidade em infinitas frações de bilionésimos de segundos, e o espaço, quem pode explicar que mil quilômetros agora são uma distância absolutamente inexistente? Sim, milagres existem, um abraço anula o tempo e o espaço para se tornar eterno enquanto dure. No nada da existência racional, o sonho ocupa todos os espaços e faz do tempo a eternidade que quiser.

O sonho enche as malas porque amanhã tem alimento em rastros de saudades, mais um bnb. Em Morretes tem uma árvore da vida plantada há exatos dois anos, a primeira de muitas esparramadas pelo Sul do Brasil. Agora vamos colher os frutos, certamente seus galhos se estendem até o Chalé que alugamos para acomodar sentimentos e sonhos. Não vamos levar os medos, não há lugar para eles, nem no bagageiro, nem no banco do passageiro, o medo que espere até que a eternidade o consuma no fogo que não se apaga.

Quatro dias para uma eternidade. Mas, e depois? Depois? Não há nada depois da eternidade! A vida é uma eterna fração infinitesimal.

sábado, 12 de abril de 2025

Eu..................

 



 

Nasci num dia de outubro

Nem sei se era noite ou se era dia

Nasci e já quase morria

Era de dia? estava tudo escuro.

 

Nasci de novo quando mal sabia

Que a vida podia ser de verdade

Naquela tenra e inocente idade

Não tinha lugar, nem tempo, que a vida valia

 

Nasci outra vez quando me escondia

Os grandes me davam muito medo

E os pequenos eram grandes demais

Para conhecer os meus segredos

 

Queria ser gente quando nasci terceira vez

Mas gente tem identidade e eu não tinha

O mundo me via, mas não enxergava

Eu via o mundo, mas nele eu não estava

 

Nascer e renascer parece o destino

Nele a gente sonha que vai ser feliz

Mas a felicidade passa quase por um triz

E o sonho vira um longo e lento desatino!

domingo, 6 de abril de 2025

NÃO ERA LIBERDADE?

 





Nos meus tempos de estudante universitário (faz tempo, hem!), eu queria escrever uma tese sobre liberdade, e eu tinha algumas referências bem importantes para isso, uma delas era a experiência de Summerhill da Inglaterra descrita no livro de A. S. Neill, Liberdade Sem Medo. Outra foi o filme Sociedade dos Poetas Mortos. Eu já era professor nessa época, e também militante do Partido Comunista Brasileiro, alguns anos depois me tornei sindicalista, em todos esses ambientes lutávamos por uma única causa: Justiça Social. Para nós, liberdade viria como consequência da justiça social e da igualdade de oportunidades para todos.

Na década de noventa eu fiz muitas palestras onde analisava a conjuntura política e econômica do nosso país, para isso tinha como referência, além dos dados oficiais da economia e da política, o estudo dos clássicos de economia. Um deles, talvez o mais importante livro sobre esse assunto, escrito ainda no século dezoito (1776), foi A Riqueza das Nações, de Adam Smith. Para Smith, o mercado deveria funcionar sem a intervenção do Estado, pois era guiado por leis naturais dadas pela livre concorrência que estabilizaria os preços pelo equilíbrio entre a oferta e a procura dos produtos disponíveis no mercado. Foi dali que surgiu o termo Liberalismo.

Agora estou aposentado e já quase não leio mais os clássicos de economia, prefiro literatura e poesia, e troquei a luta política partidária e sindical por relacionamentos mais fraternos. Não me importo mais se meus amigos são de direita ou de esquerda, eu os quero como amigos, aos poucos vamos compreendendo que nem direita e nem esquerda foram capazes de promover a justiça social e a igualdade de oportunidades pela qual lutávamos. Pela televisão assistimos, ambos embasbacados, os “liberais”, liderados pelo presidente dos Estados Unidos, afrontar o liberalismo com a mais bruta intervenção do Estado na economia que já se viu desde a quebra da Bolsa Internacional de Mercadorias de Nova York em 1929.

Eu diria que nestes tempos atuais eu sou livre. Faço escolhas para minha vida como faziam os jovens de Summerhill, posso ver o mundo como via o professor John Keating (Robin Williams) e seus alunos quando ficavam em pé sobre as carteiras ou quando recitavam poesias nas cavernas. “Carpe Diem. Aproveitem o dia garotos. Façam suas vidas extraordinárias.”  O capitalismo nunca foi o que jura ser!

Talvez Albert Camus estivesse certo! A existência não tem nenhum sentido. Os Hippies já nos deram a mais bela lição de vida, mas nós somos mesmo homens de dura cerviz!  Buscamos no capitalismo uma estabilidade financeira que nunca vem, acreditamos numa meritocracia que dá vantagem aos ricos e seguimos fielmente a cartilha dos liberais que nos sufocam com protecionismo quando lhes convêm. E, para finalizar, somos capazes de odiar aqueles que lutam por nossos direitos enquanto declaramos amor aos que nos exploram e nos excluem.

Estou assistindo uma série na amazona intitulada The Chosen (Os Escolhidos). Faz algum sentido?

quinta-feira, 27 de março de 2025

O COMBUSTÍVEL QUE QUEIMA O DESTINO

 



Quando minha mãe era ainda uma adolescente, uma Cigana leu o seu destino e vaticinou que ela morreria antes de completar setenta e oito anos de idade. Quando Dona Helga celebrou o septuagésimo oitavo aniversário e a morte não veio, pensou que talvez tivesse se enganado e, invertendo os algarismos, em vez de setenta e oito, a data fatídica seria, então, oitenta e sete. Por mais de setenta anos o fogo desse vaticínio queimou a vida de uma mulher religiosa. Como pode uma superstição ser mais ardente que uma fé em um Deus todo poderoso? Isso eu não sei, o que eu sei é que no dia 18 de novembro de 2021 nós celebramos como bolo e cerveja a vitória da vida sobre a estupidez.

A vida sempre vence, até que a morte lacra o destino final. Até lá, há sempre um fogo queimando o combustível do destino. E não importa por quanto tempo ou quão rápido queima o combustível, importa mesmo é quanto de combustível temos e, principalmente quanto dele vamos queimar até descobrir uma nova fonte de energia que nos mova para uma nova direção. O Sol que nos queima a pele a cada dia está a aproximadamente 150 bilhões de quilômetros de distância, queima tão forte que a luz solar demora menos de dez minutos para percorrer essa distância e iluminar nossos passos em rumo ao destino que nos espera enquanto queimamos uma energia que não sabemos muito bem de onde vem.

Às vezes o combustível é feito de esperança.  Enquanto temos combustível, vemos aquilo que esperamos ou desejamos. Esperança é um combustível poderoso que nos leva a distâncias incríveis, mas às vezes acaba antes de alcançarmos o ponto de chegada e ficamos derrotados pelo meio do caminho estorvando outros que desejam correr a mesma corrida e ora um ora outro se enrosca em nossa desfortuna e desperdiça, por nossa conta, o precioso elemento impulsionador da vida.

 Às vezes é a fé que enche o tanque da alma, delineando caminhos de salvação ou perdição. Movidos pela fé podemos mover montanhas ou alimentar demônios. Pela fé ouvimos a voz do Senhor num cicio do vento ou a do pastor ganancioso em ensurdecedores alto-falantes. Lá nos postos de combustíveis dizemos que o combustível batizado gera lucros para os donos e atemoriza os consumidores, em muitas instituições os fiéis são batizados para gerar lucros pelo terror do inferno, em outras são abastecidos do mais precioso combustível que leva ao Céu.

Que vasta variedade de combustíveis nos abastecem a cada dia! Amor, ódio, poder, ganância, humildade, desejos, paixões, medos, ansiedade, ... . Em 66 anos me abasteci de quase todos esses tipos de substâncias que queimamos para produzir calor emocional, cada um me conduzia para um destino e eu acabei no meio do caminho olhando para os lados na esperança de achar um atalho que possa me levar a um porto seguro. Que tamanha multidão se encontra comigo!

Um minuto-luz é a distância que a luz do Sol percorre em 60 segundos e equivale a aproximadamente 18 milhões de quilômetros. Já não tenho mais muito tempo, mas se eu tiver pelo menos um minuto-luz do combustível da fé verdadeira eu posso chegar ao Céu da minha existência. Quem vem comigo?

quarta-feira, 19 de março de 2025

SEM VONTADE DE ESCREVER

 



Às vezes perco totalmente a vontade de escrever. Para que servem as palavras? Elas são ditas ao vento e colhidas de um modo esdrúxulo, quase incompreensíveis e transformadas em textos supostamente bíblicos nas bocas de um sacerdócio estapafúrdio.

As palavras tinham valor quando eram seletivas e dominadas por intelectuais que se davam ao respeito. Mas, desde os tempos Pré-Socráticos elas se degeneram em falsas composições textuais a serviço de uma galera prostituta em busca de poder, riqueza e reconhecimento. Bastou à Sócrates questionar os Sofistas, os Teólogos e os valores gregos e darem-lhe uma dose mortal de Cicuta. O maior filósofo da história da humanidade não escreveu uma única palavra que fosse editada em um livro, tudo que se tem são as anotações do seu pupilo Platão.

A religiosidade que mata por causa da palavra já existia, como se vê, há cinco séculos antes de outro filósofo ser morto cruelmente pela interpretação distorcida da palavra que deveria salvar. Só o que se tem das suas palavras são referência a alguns rabiscos que fazia na areia da praia quando intercedeu pela vida de uma prostituta que talvez nem soubesse ler e seria apedrejada pelos conhecedores das falsas interpretações do texto bíblico. O filósofo da paz e do amor ao próximo tornou-se presidiário e foi torturado até a morte, morte de cruz, numa condenação pública patrocinada pelos líderes religiosos.

Daqui a pouco vamos celebrar a Páscoa e as ruas estão cheias de líderes religiosos gritando por anistia para um Barrabás tupiniquim. Sim, Barrabás, o original, era um salteador, ladrão e assassino, em seu favor gritaram os religiosos, aqueles que tinham conhecimento da palavra escrita. Há mais de quatrocentos anos antes de Cristo, um jovem ‘corropmpido’ pelas ideias do mestre Sócrates fundou a Academia mais importante de estudos universais, a Academia Platônica, considerada a primeira universidade ocidental. O pensamento mais famoso de Platão refere-se ao Mito da Caverna’, nela, as pessoas acreditavam que a sombra projetada na parede era a realidade da vida delas. Essas mesmas sombras são as Fake News atuais.

Para que servem as palavras? O Trump acabou de apresentar um projeto maravilhoso de construção de um RESORT na orla do mar mediterrâneo, um lugar paradisíaco para os milionários terem laser e luxúria à custa dos miseráveis. E por falar em miseráveis, para viabilizar o projeto é preciso expulsar daquele lugar todo um povo a quem se recusa historicamente o direito a uma pátria. Fundamentado na palavra de que Jerusalém será restaurada sob o domínio de Israel, acredita-se que não há nenhum problema como o genocídio promovido sobre um povo miserável e indefeso. Mas, tem só um problema, a Palavra diz que Jerusalém não será a mesma, a nova Jerusalém, descrita na Palavra, será realmente nova e descerá do Céu. O propósito dessa guerra esdrúxula é destruir o povo palestino e dar lugar à construção de um Resort para milionários e bilionários que nada tem a ver com as profecias bíblicas.

Mas, para que servem essas palavras que escrevo? Nada! São completamente inúteis.

domingo, 12 de janeiro de 2025

ACAMPAMENTO É UMA DOIDEIRA!!!

 


 


A ideia de acampar, por si só já é uma coisa boa, montar a barraca num lugar bonito, entre árvores frondosas, perto de uma grande represa com vista para uma praia tranquila, curtir o pôr do sol e esperar o amanhecer tomando uma cervejinha em boa companhia...



... Um verdadeiro Paraíso! Damos nomes a todos os animais que circulam pelo bosque ou se banhando nas águas mornas do lago de Itaipu. Os animais são domesticados, as aves são cantoras e as árvores fazem a harmonia das músicas toda vez que o vento balança os galhos e derruba as folhas num eterno desfile de papel picado imaginário. De manhã, quando se bota a cara amassada pela porta da barraca os olhos brilham com as mangas que caíram madurinhas durante a madrugada, vêm como vinha o maná dos hebreus, a cada dia, e não adianta guardar para o dia seguinte porque elas caem com data de validade para o mesmo dia, no dia seguinte só servem para atrair as moscas varejeiras. Senão guardar, tudo bem, o maná amanhece em frente da barraca outra vez!



Enquanto o chá espera o desjejum de frutas e cereais, a porta da barraca se abre para o bom dia que vem descabelado e sorrindo. Não tem nenhuma necessidade de pentear os cabelos, é a natureza me devolvendo o que era meu há pouco quando não tínhamos nenhuma necessidade das coisas comerciais, nem mesmo das roupas ou calçados, a natureza nos bastava e, agora que temos necessidade de roupas por causa dos vizinhos de acampamento, nos olhamos agradecidos por mais um dia feito só para nós dois. Ainda que os outros insistam em nos ver, eles não têm a menor importância, convivemos com eles como convivemos pacificamente com os pássaros e os outros animais que usufruem da natureza maravilhosa da Praia de Porto Mendes.



Desejamos estar no Paraíso e ali permanecer para toda a eternidade, mas é só procurar pelas coisas compradas nalgum comércio e que consideramos necessário para o dia que se nos apresenta gratuitamente pela providência divina, que começa o perrengue. Acampamento não é uma casa organizada, por mais que cuidemos para deixar tudo em algum lugar conhecido, ao procura-lo não encontramos nem por nada deste mundo, daí viramos todas as malas e caixas desarrumando ainda mais o que já era, digamos, uma bagunça organizada. No Jardim do Edem não havia nenhuma necessidade de malas e caixas e as coisas nunca estavam desorganizadas, simplesmente porque não havia coisas, só a natureza. Ah, quem dera o Jardim não estivesse fechado e o anjo que guarda a entrada nos permitisse ficar por lá por uma temporada eterna!

Nem só de manga vive o homem, então vamos almoçar num restaurante onde encontramos frutas e verduras produzidas com uma abundância de agrotóxicos, e uma grande variedade de comida gordurosa e frituras em óleo de soja reutilizado. Uma delícia de comida temperada! Faz mal, mas é muito bom!!! De lanche comemos deliciosos pães de queijo feitos sem nenhuma grama de queijo e bebemos cervejas feitas com milho em vez de cevada. Mas não reclamamos, decidimos que, se estamos acampados em meio à natureza, então todos os produtos são naturais, inclusive as verduras e os demais alimentos, tudo absolutamente orgânicos e, se algum mal nos sobrevier, vamos ao médico e ele que lute para nos curar, ele ganha bem para isso.

As águas da praia do lago estão aquecidas pelo sol escaldante do dia e mergulhamos nela como se usássemos óculos de realidade virtual, as nuvens refletidas na água nos fazem flutuar no espaço, nadamos de costas em nuvens de algodão e rodamos nossos corpos num espaço sem gravidade. Quando os pés tocam as pedras no fundo do rio, percebemos o lago e olhamos para o horizonte infinito onde o sol se põe, daí saímos apressados para fazer pose e guardar para posteridade esse sentimento de pertencimento às belezas incomparáveis da natureza. As imagens no celular nos fazem perceber que estamos entre dois mundos, basta uma mordida no fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal e seremos expulsos do paraíso.



Voltamos felizes para nossa barraca e percebemos uns carros estacionando por perto, uma fogueira foi acessa anunciando churrasco e o capô se abriu para a música sertaneja universitária que nada tem de sertaneja e muito menos de universitária, o timbre da voz nunca muda e as notas parecem gotas torturadas saindo do alto falante. Pegamos nossas cervejas geladas, duas cadeiras de praia e fomos apreciar o anoitecer na beira do lago. Duas horas de sofrência e eles se foram satisfeitos de tanta carne e cerveja temperados com a mais triste música do universo! A natureza agradecida nos recebeu de volta para mais uma noite de paz. Quando amanheceu, um maná de mangas amarelas com data de validade de um dia forrava o chão do nosso pátio.

Três dias vivendo as maravilhas do paraíso e já não sabíamos onde encontrar as mais simples coisas sem ter que revirar o acampamento. Foi nesse terceiro dia que descobrimos que o pior ainda estava por ser encontrado no meio dessa bagunça de vida. Tinha algo que nos incomodava e não era o carregador do celular que se escondera embaixo da mala na caçamba da saveiro, também não era a cantoria da galera do churrasco, menos ainda as moscas varejeiras que se deliciavam com os restos das mangas com prazo de validade vencidos. Não era chuva e nem tempestade. Haveria algo pior num acampamento à beira lago de Itaipu?



Pois havia, inacreditavelmente fatídico, o destino nos fez permanecer isolados no paraíso por mais uma semana. Os alimentos cultivados com agrotóxicos e gordurosos que comemos estavam aos nossos olhos e podíamos ter evitado, a triste música sertanoja estava aos nossos ouvidos e podíamos ter evitado, as mangas com data de validade podíamos jogar para longe, mas o que não se vê, não se ouve, não se sente, como evitar? Em algum lugar entre Dourados, Ponta Porã e Porto Mendes fomos contaminados com o vírus da COVID. Pois, no terceiro dia de acampamento sentimos um leve, mas persistente, sintoma de gripe, fizemos os exames e: POSITIVO!

Agora estamos condenados a viver no paraíso por mais uma semana, graças a Deus com sintomas muito suaves o que nos dá condições de fazer aquilo que lá no fundo do coração mais desejávamos: Ter um tempo só para nós!



terça-feira, 24 de dezembro de 2024

NATAL – A IGREJA E OS SETE PECADOS

 



Blá, blá, blá, na minha ignorância, é tudo o que eu sei dizer sobre o Natal. Então blá, blá, blá. Isso é tudo!  Vai lá, para não decepcionar todo mundo, vou traduzir o que seja esse blá, blá, blá. É quase tudo o que tenho visto sobre o Natal nas redes sociais e também na mídia oficial, aquela a que costumamos chamar de Jornal. Mas faz sentido, é empolgante falar dessa data tão importante para os Crentes e especialmente para o comércio que vende mais que em qualquer outra data comemorativa. O conforto espiritual baseado numa acomodação entre o divino e o profano justifica toda idolatria cristã que a data contém assim como a ganância promovida pelo comércio que usa uma celebração cristã para lucrar.

E por falar em ganância, esse está na lista feita inicialmente pelo Papa Gregório Magno, no século VI e ajustada por Tomás de Aquino, no século XIII. Na lista, aparece com o nome charmoso de Avareza e se fundamenta no texto bíblico da carta de Paulo a Timóteo, que diz: “Porque o amor ao dinheiro é a raiz de toda a espécie de males”. E o amor ao dinheiro é a delícia deste mundo, incluindo aí, claro, todos os comerciantes, o sistema financeiro, chamado de “mercado”, e também as igrejas, tipo uns 99 por cento delas. E haja maldade neste mundo!

Outra delícia do Natal é a comida e a bebida, exagerados, claro, que é para dar sentido de festa para o nascimento do salvador. Apesar de a lista dos sete pecados ser uma construção católica, não há crente que não a considere uma relação de pecados, tipo, capitais. E o Natal é “o” chamativo para que as famílias se reúnam para muita comida, a mais cara que se possa comprar, e bebidas, alcoólicas de preferência que é para alegrar a festa. A ganância, dita ali acima, faz os preços aumentarem ao máximo, só assim se realiza o milagre de dois pecados ao mesmo tempo: Avareza e Gula!

E quando as famílias finalmente se reúnem para as festividades e comem e bebem mais do que deveriam e os ânimos começam a se exaltar não há quem contenha a Ira dos bolsonaristas contra os lulistas e vice-versa. Idolatrado pelos crentes que combatem a idolatria dos santos católicos, Bolsonaro assumiu uma espécie de santidade no meio cristão. No caso, um santo apócrifo fazendo bagunça no meio evangélico.

E, continuando o blá, blá, blá, é só dar uma caminhada pela cidade que se vê claramente a soberba no meio eclesiástico. É cada igreja, e cada um, querendo ser melhor que o outro. As igrejas empresariais mais bem-sucedidas ostentam sua riqueza, enquanto as mais pobres que se danem, quem sabe fecham e os fiéis vêm pagar o dízimo “aqui”. Haja soberba!

Dois outros pecados eu diria que tem uma forte ligação entre si. A inveja e a luxúria são amicíssimas e rivais. Uma provoca a outra, mas uma meio que depende da outra. Quem nunca olhou para o lado, no meio do culto, e pensou que desejaria ter ou ser como a outra pessoa que está no banco da frente? Uma casa bacana, o carro novo, o dinheiro, o charme, o dom, enfim, tudo aquilo que eu queria, mas não tenho e ele tem. E quem têm, muuuuiiiiitas vezes, sem maldade, ou com maldade, escorrega pelos caminhos da luxúria, e leva junto quem está afim de ir, pela inveja mesmo ou pelo desejo de ser melhor que o outro.

Só falta um. Agora estou com preguiça de falar dele!

Têm, também, as virtudes que se contrapõem aos pecados. Mas, convenhamos, quem está interessado?

sábado, 7 de dezembro de 2024

É CATARATA!

 




CAPÍTULO UM 


A vida no sítio é uma maravilha! Contato com a natureza, criação de animais domésticos, produção de alimentos orgânicos, um lago de peixes logo abaixo das nascentes de águas límpidas e o mais importante: sossego. No sítio não há o incômodo barulho dos automóveis e nem a miséria que bate à porta pelos pedintes de rua que carregam mais necessidades do que precisam para viver. É uma maravilha! Seu Amantino é dono do Sítio Alvorada, a 24 quilômetros da sede do distrito de Itahum que, no idioma guarani, significa Pedra Preta.

Lá no Alvorada, Seu Amantino produz de quase um tudo que precisa para viver e vende uns excedentes da produção para poder comprar a coisas que não produz, como roupas, eletrodomésticos, ferramentas e alguns alimentos industrializados. Numa pequena granja, o sitiante produz galinhas que todas as semanas o feirante Josimar compra para revender na feira livre do distrito, junto com as galinhas, que são levadas vivas, também leva verduras, legumes, milho verde, mandioca, queijo e mel. Somando as rendas e descontando as despesas, numa conta que o sitiante faz olhando o dinheiro que lhe resta quando vai para a cidade, ume vez por mês, com a esposa, o lucro gira em torno de uns dois mil e trezentos reais. Esse valor é muito bem administrado pela esposa. Dona Esmeraldina, depois de abastecer o Fiat Uno, compra tudo que consegue com os recursos disponíveis e assim, cada mês se acaba com o saldo zero no bolso do marido, mas sempre fica umas moedas na carteira da administradora que se orgulha de nunca ter ficado sem dinheiro nesta vida, desde que se casou com Seu Amantino.

Era dezembro de 2022 Seu Amantino disse que não ia poder levar dona Esmeraldina para a cidade porque os olhos dele ‘estavam muito curtos’ para dirigir o Fiat Uno. “Mas homem, daí é que tu tens que ir, pra ver um oculista”, respondeu a mulher, e foi empurrando o marido para dentro do carro. O ‘oculista’ concordou em atender, mas Seu Amantino deveria aguardar para fazer ‘um encaixe’ entre um atendimento e outro, então não daria para saber quanto tempo isso demoraria. Enquanto o marido esperava pelo encaixe, dona Esmeraldina foi às compras, que delícia essa liberdade de escolher o que quisesse, ainda mais que nesse ano ela fizera reserva mensal de dinheiro, escondida do marido, desde julho, então o natal seria reforçado.

Dia vinte de dezembro é feriado na cidade, mas as lojas abriram porque estava perto do Natal e parece que nesse dia as tentações eram ainda maiores que nos outros meses. Cada loja tinha enfeites, uns mais bonitos que os outros, luzes piscando, Papai Noel esbanjando felicidade e distribuindo balas, músicas falavam de Jesus pelos alto-falantes e essa mistura do real com o imaginário, do religioso com o profano, confundia um pouco a cabeça da sitiante. Ela amava Jesus justamente porque ele era humilde, se Jesus fosse sitiante, ninguém ia pregar ele na cruz! A não ser que ele resolvesse passar um tempo na cidade. A cidade é o contrário do sítio, tem tanta tentação na cidade que é quase impossível não pecar. Mas as tentações são tão atraentes! Só que custam dinheiro. “Eu queria ser muito rica”. A igreja da frente da praça estava aberta e tinha um presépio grande, Jesus parecia um bebê de verdade! Tinha as vacas no curral onde Jesus nasceu, tinha também umas ovelhas. No sítio também tinha duas ovelhas que Seu Amantino comprara do Juvenal, que mora no sítio Alto Alegre. Dona Esmeraldina ficou um tempo olhando aquele presépio. Tão pobre o menino Jesus! Dona Esmeraldina agora se sentia até orgulhosa de ser pobre, se parecia com o Salvador!

O Padre, que acabara de ouvir e perdoar todos os pecados de uma prostituta, ao ver a mulher comovida diante do menino Jesus, aproximou-se e perguntou se queria confessar os pecados, ela disse que não, daí o Padre perguntou se estava só, se não tinha marido, filhos... “Marido?” então lembrou-se do marido no consultório do oculista, “Jesus Amado” falou para o menino na manjedoura, e saiu às pressas. Parou no meio da igreja e perguntou ao Padre que horas eram, “Virgem Maria!” exclamou aos bancos onde alguns fieis oravam ajoelhados, quando o Padre lhe informou serem quase onze da manhã.

Seu Amantino fora atendido às nove horas mais quinze minutos, a consulta demorou exatos vinte e oito minutos, às nove horas e quarenta e três minutos sentou-se novamente numa cadeira da sala de espera, desta vez não mais aguardando o médico, mas a esposa que prometera estar de volta antes das dez. Quando dona Ermeraldina chegou ele já a esperava do lado de fora do consultório, mas não a reconheceu até que se aproximasse, seus olhos estavam mesmo ruins. O médico receitou óculos, era miopia, as lentes seriam de dois graus para o olho esquerdo e um e meio para o direito. Era preciso ir na loja dos óculos para mandar fazer as lentes e comprar os óculos.

Dona Esmeraldina chegou esbaforida, carregando sacolas de compras, pedindo perdão pelo atraso, mas era que tinha encontrado o menino Jesus no curral da igreja e as compras que fizera também demoraram mais do que pensava. Seu Amantino não queria saber das compras e nem do menino Jesus, a menos que ele fizesse o milagre de fazer a esposa não ter gasto todo o dinheiro porque agora tinha que mandar fazer os óculos e o médico lhe disse que não ia ser muito em conta. Dona Esmeraldina abriu uma sacola e tirou umas roupas novas que comprou para o Natal, queria que o marido aprovasse a compra, elas eram bem bonitas! Seu Amantino tirou do bolso a receita dos óculos e mostrou para a mulher. “É miopia, tem que fazer óculos”.

Quando o ano de 2022 terminou os bolsos de Seu Amantino estavam vazios e os trocados que tinham sobrado das compras de fim de ano ainda garantiam que dona Esmeraldina jamais teria ficado sem dinheiro em toda sua vida de casada. Os óculos foram comprados em dez prestações de cem reais cada uma e Seu Amantido estava feliz com seus olhos, agora já podia ver tudo conforme era o certo de se ver, inclusive tudo que a mulher comprou na cidade. “Onde arrumou tanto dinheiro?”

 


CAPÍTULO DOIS


Às cinco horas da manhã o despertador chamou do criado mudo e Seu Amantino foi atender. Desligou a campainha para não atrapalhar o sono de Esmeraldina e foi ao banheiro, lavou o rosto e fez as necessidades que o corpo pedia, daí vestiu as roupas de trabalho e foi para a cozinha preparar o café da manhã, os óculos não foram junto, então voltou ao quarto, abriu a porta bem devagar para não acordar a esposa e foi entrando como se fosse ladrão, pôs os óculos em cima do nariz e viu uma claridadezinha que vinha da cama. “Ué, nunca vi vagalume brilhar tanto assim!” Foi ver mais de perto, a claridade estava bem próxima do rosto da Esmeraldina, chegou ainda mais perto, nem respirava para não acordar a esposa, de repente Esmeraldina deu um pulo e ficou de pé ao lado da cama com o celular na mão. “Que tu tá fazendo aqui homem, tu já não tava lá na cozinha?” Seu Amantino não sabia o que dizer, nem sabia dizer quem agora estava mais assustado. “Eu não queria... queria..., mas não queria... vou tirar o leite da jasmira...” Na cozinha, a água do café fervia, Seu Amantino tomou uma xícara com leite, comeu pão e foi pro curral onde jasmira mugia.

Os pensamentos não saíam da cabeça, até atrapalhavam no serviço, “Que que Esmeraldina tava no celular às cinco da manhã? E pra que aquele susto? Até parece que eu era um estranho ameaçando ela”. Enquanto jasmira comia a ração do coxo, Seu Amantino pôs o balde no chão embaixo dela e começou a tirar o leite, jasmira era boa de leite, dava 12 litros. Já tinha tirado uns cinco quando jasmira resolveu aprontar, encolheu o corpo fazendo uma curva na coluna, ergueu o rabo e soltou uma mijada daquela bem forte. A urina bateu no piso e respingou para todo lado levando sujeira de bosta que tava no chão, junto com a urina, para dentro do balde de leite, mas isso não era problema porque Seu Amantino sempre coa o leite depois que tira e ele fica limpinho, o problema foi que a merda espirrou nos óculos. Seu Amantino resolveu isso limpando com a barra da camisa, não ficou bem limpinho, mas dava pra enxergar, e assim continuou o trabalho. O balde encheu, doze litros, e os óculos estavam em condições de ver. “Que será que Esmeraldina tava vendo no celular às cinco horas?”

O dia foi trabalhoso, de tardezinha Josimar passou para pegar os produtos da feira, Seu Amantino trabalhou muito para deixar tudo preparado, o dia foi de calor, desses que dá em fim de maio quando tem isso que se chama de veranico. Logo vem o inverno e agora só tem mais duas linhas de milho verde, a que colheu hoje, Seu Amantino plantou em 25 de fevereiro, as que ainda falta colher são as plantadas em 04 de março e a última em 11 de março, tem milho para mais duas semanas de feira, daí leva o mel que vai ser colhido no início junho. O tempo foi bom e as espigas estão bonitas. O calor do dia fez o suor escorrer pelo rosto e sempre pingava nos óculos que eram limpos na barra da camisa meio empoeirada. Não ficava bom, mas dava para ver. Umas seis horas da tarde Seu Amantino voltou da roça com os milhos na carroceria do Tobata, vinha devagarinho que é a velocidade do trator, de longe viu a mulher que conversava na frente da casa com alguém, devia ser o Josimar. Andou mais um pouco e viu a mulher abraçada com o homem, parecia que beijava ele. “Não pode ser, eu é que sou o marido dela, se quiser beijar, beija eu!” Limpou os óculos na barra da camisa suada e olhou de novo, agora não estava beijando, só conversando, riam.

De noite, falou pra mulher que tinha visto ela beijando o Josimar, ela ficou vermelha, virou as costas, falou umas coisas que ele não entendeu, ele disse que os óculos estavam sujos e depois que limpou olhou de novo e ela estava só conversando, mas que parecia que tinha visto eles se beijando, ah, sim, parecia. Esmeraldina aproveitou a deixa e pegou os óculos, “homem, tu fez esses óculos têm seis meses, não deve ser os óculos, tu deve estar é com catarata”.  “Catarata, é só pode ser!”

 


CAPÍTULO TRÊS


Seu Amantino ainda era novo para ter catarata, fez aniversário de 57 anos em abril, mas como o sol anda ficando cada vez mais forte e ele não tem costume de usas óculos escuros, pode ser que seja catarata mesmo! Pelo sim, pelo não, decidiu esperar mais um tempo antes de consultar o oculista outra vez, “quem sabe a vista melhora sozinha”. O inverno passou, a primavera também, Seu Amantino sempre limpando os óculos na barra da camisa, mas parece que tinha uma nuvem esbranquiçada nos olhos que atrapalhavam a vista. “É o sol muito forte!” Escorou o sovaco no cabo da enxada e olhou a fazenda do Seu Antônio Scorched Earth, um americano que comprou terras na região para produzir soja para exportação e milho para uma usina de álcool em Maracaju. O americano derrubou todas as árvores que tinha na fazenda que antes era de gado, deixando só um capãozinho perto das nascentes porque foi obrigado por lei e fiscalização. Scorched é vizinho e lindeiro. A soja estava bem desenvolvida graças às boas chuvas que vieram este ano e ao veneno que Seu Scorched manda passar.

Desgraçado!, o grito ecoou pelos campos afora, um sinal de protesto e revolta de quem estava sofrendo por culpa de uma situação causada pelo outro, no caso, o Seu Scorched. Na lavoura de soja ainda se via claramente a marca dos pneus do pulverizador, mas não era isso que aumentava a temperatura e a incidência do sol nos olhos do Seu Amantino, era o desmatamento, até onde seus olhos alcançavam não se via pé de árvore. Verdade que já não enxergava longe por causa da catarata, ou dos óculos que estavam sujos. Limpou os óculos na barra da camisa e olhou: bem longe, mas bem longe mesmo, viu um capãozinho de mato, de onde antigamente saía um riozinho que afluía para o Rio Dourados. A nascente secou de tão ralo que ficou o mato. Antes, quando ali era fazenda de gado, ninguém falava em catarata. Desgraçado!gritou outra vez e bateu com a enxada tão forte no chão que o cabo se quebrou.

Na reserva de mata colheu um galho de guatambu de uns quatro centímetros de diâmetro e dois metros de comprimento, levou para casa e queimou palha de milho e pedaços de galhos e sobre eles pôs o galho de guatambu para secar a seiva. Descascou o galho, verificou se estava reto e levou para o galpão onde trocou por outro que tinha preparado no ano anterior. Encabou a enxada e ia voltar para a roça, mas já era tarde demais para ir e muito cedo para voltar para casa. Ficou pensando no que fazer e decidiu que para tomar água ainda era tempo.

A casa estava vazia, silenciosa, mas da varanda onde Seu Amantino tomava água dava para ouvir uma conversa que não se entendia bem o que era. Vinha do outro lado da casa, lá da sombra do bambu perto da estrada, conversavam e riam. Seu Amantino aguçou o ouvido, parecia que era Esmeraldina, foi ver do canto da casa, mas a vista não era boa, deve ser a catarata! Andou mais um pouco e viu a mulher dando pro Josimar. “Mas, justo o Josimar? Não podia ser outro? O Josimar, se quiser tem que pagar, ele é feirante”. Andou devagarinho para não ser notado. Agora dava para ouvir claramente Esmeraldina dizer: “Eu dou para você com gosto!” Josimar ria, assim meio sem graça, e passava a mão, Esmeraldina também passava a mão. Eles estavam ali, quase na beira da estrada, meio escondidos pelo bambuzal, Seu Amantino estava zangado, mas não queria fazer caso com Josimar, era ele que vendia os produtos da roça na feira e garantia a renda do sítio.

De noite quando Esmeraldina pôs a janta na mesa, Seu Amantino disse que não estava com apetite, ia comer alguma coisa depois, ela que jantasse sozinha. “Que foi homem. Aconteceu alguma coisa?” “Aconteceu”. O assunto não era para ser agora, era para depois da janta, mas a pergunta veio tão de repente que a resposta andou junto, no mesmo repente. “Então diga” disse Esmeraldina, “que eu não quero jantar sozinha, não”. “É o Josimar, você está dando para ele”. Esmeraldina percebeu o flagrante e virou de costas como sempre fazia nessas situações, ficou totalmente corada, ajeitou a saia como que para encomprida-la, puxou a blusa para cima para garantir que cobria bem os seios, gesticulou no ar, virou-se e disse resoluta, como a defender sua causa: “Dei sim, ele tava necessitado, pediu com jeitinho, tu não tava em casa, daí eu dei”. “Mas tu deu de graça? Assim, sem cobrar nada?” “Dei, ele disse que tava com vontade, que queria, eu não resisti, ia perguntar se você concordava, mas tu tava muito longe na roça”. “Mas, pro Josimar!, ele é feirante, tem dinheiro, fosse para outro até que eu não ligava, peixes tem bastante e eu não deixo faltar, só não concordo que tu dês de graça para quem tem dinheiro”.

 


CAPÍTULO QUATRO


“Já é dezembro” disse Seu Amantino, querendo dizer, sem dizer, que estava no tempo de colocar os enfeites de Natal. As rezas já iam começar pelas vizinhanças e, quem sabe, a novena não ia passar pelo Sítio Alvorada! “Este ano vou fazer presépio” retrucou Dona Esmeraldina, lembrando do ano passado quando foi na Igreja de Dourados e viu Jesus tão bonitinho no curral da igreja na frente do altar. Lembrou do padre, tão bondoso, que confessou a prostituta, perguntando se ela também queria confessar os pecados. Lembrou também do Josimar e dos pecados que tinha que confessar se tivesse um padre nas novenas. “Sexta-feira vamos pra Dourados, quero ir na igreja ver Jesus e confessar pro padre”, “Confessar o quê?” Quis saber o marido. “Pecados, ora, tu não tem pecados? Todo mundo tem. E tu bem que podia aproveitar e consultar o oculista”.

A consulta outra vez não estava agendada e Seu Amantino teve que esperar pelo encaixe, enquanto isso Dona Esmeraldina aproveitou para ir às lojas fazer as compras de Natal e, claro passar pela igreja da praça para ver Jesus e confessar os pecados. “O padre perdoou os pecados da prostituta, vai perdoar os meus também, são quase iguais”. Na loja da Big encontrou com o Juvenal do Sito Alto Alegre, ele perguntou se ainda tinha peixe, queria comprar para o Natal, ela disse que sim, tinha limpo no congelador, podia ir amanhã. “O Josimar falou que vocês tinham para vender”. Esmeraldina lembrou do pecado, comprou os enfeites de Natal e foi para a igreja, queria confessar. Jesus estava no mesmo lugar do ano passado, as mesmas ovelhas, o pinheirinho, José e a Virgem Maria e até os Reis Magos que Esmeraldina não tinha reparado quando veio da outra vez. Ela só interessava por Jesus, tão bonito e tão pobre naquela estrebaria! Quando ela vai na estrebaria, lá no sítio, e vê o marido tirando leite, sempre olha em redor para ver se Jesus não está por ali. Como que Maria era virgem, se estava casada com José e Jesus era filho dela? Algumas coisas eram bem difíceis de entender!

O padre escutou a confissão, falou umas coisas para ela sobre fidelidade no casamento, daí perdoou os pecados e fez o sinal da cruz com a mão no ar em frente da cabeça dela enquanto determinava a pena que ela devia cumprir: rezar três pai-nosso, e três ave-marias. Esmeraldina saiu aliviada do confessionário, nunca tinha se confessado, não sabia que era tão fácil ser perdoada, “três pai-nosso, e três ave-marias”, Jesus deve ter escutado porque ela falou isso bem perto do presépio, querendo pegar o menino Jesus no colo. Esmeraldina sempre quis ter um filho, mas Deus não quis, os médicos falaram que era o marido que não podia ter. “Quem sabe o Josimar”. Teve um ímpeto de voltar para o confessionário. “Será que pensar já é pecado?”

Saiu da igreja e foi andando lentamente para o consultório do oculista, os enfeites de Natal e as roupas novas dentro da sacola maior, os sapatos novos em outra sacola. Só faltava ir pro mercado fazer as compras de comida e cerveja, tava com vontade de beber. Mal se importava se o marido já fora atendido, os pensamentos estavam longe dele, “quero aprender a dirigir o Fiat Uno, andar por aí”.

O oftalmologista, ou oculista como quer Seu Amantino, disse que ele não tinha catarata, ao que Seu Amantino se opôs com firmeza. “Eu sei que é catarata, é o sol forte que está causando isso. Depois que o Scorched derrubou todas as árvores da fazenda, o sol ficou mais forte, até o córrego secou, é isso que trouxe a catarata!” Esmeraldina poderia confirmar se ela estivesse ali, mas ultimamente ela andava tão estranha que parecia nem se importar mais com a catarata do marido. O médico insistiu, disse que olhando nos aparelhos só aparecia a miopia, e também um pouco de astigmatismo. A miopia aumentara, ia receitar novos óculos.

Na volta para casa Dona Esmeraldina não tirava os olhos dos pés do marido enquanto dirigia e também prestava muita atenção nas trocas de marcha. “Que que você olha tanto pros meus pés?” “Quero aprender guiar o Fiat Uno!”. “Semana que vem os óculos ficam prontos, não era catarata, era só a miopia que aumentou e os óculos que estavam sujos!”

 

 

CAPÍTULO CINCO


Depois que confessou os pecados pro padre, Esmeraldina prometeu que se o marido a ensinasse a dirigir o Fiat Uno ela não ia pecar de novo, não esse mesmo pecado. O marido prometeu, e até explicou umas coisas enquanto voltavam para casa e depois, no sítio, ensinou ela a ligar o Fiat com a marcha no ponto morto. Depois do ano novo ia ensinar mais, até que ela dirigisse sozinha. Esmeraldina ficou excitadíssima! De noite presenteou o marido com dose dupla de carinho, igual nem nunca tinha acontecido. De manhã, Seu Amantino levantou cantando, estava feliz. Voltou mais cedo da roça, “vim mais cedo para você treinar dirigir o Fiat Uno”. Três dias depois já era Natal e Dona Esmeraldina já sabia até trocar marcha do Fiat Uno, só não sabia, ainda, dar marcha ré. As noites eram boas e Esmeraldina vivia em santidade com o marido, até que o pecado veio desejar feliz Natal.

O médico ensinou Seu Amantino a limpar os óculos com um spray limpa lentes da visiolux e usar paninho próprio para secar, e proibiu que limpasse os óculos na barra da camisa. “Se o senhor continuar limpando os óculos na camisa vai ter mesmo catarata”, e deu dois frascos do spray e dois paninhos de microfibras de presente. Seu Amantino prometeu que ia ensinar a mulher a dirigir o Fiat Uno e o Natal foi comemorado com cerveja, luzes piscando, champanhe e muita alegria. Seu Juvenal, do sítio Alto Alegre veio jantar com a família e trouxe um frango assado e pudim de sobremesa, também veio o Anísio, vizinho de sítio do Juvenal, com a esposa e os dois filhos e trouxe um lombo de porco e um bolo que a esposa fez. Trouxe também uma caixa de cerveja da Brahma. Era quase meia-noite quando Josimar chegou, só gaguejou um Feliz Natal e foi embora, não quis se demorar porque tinha compromisso cedo no dia seguinte, Seu Amantino ficou sem saber se insistia para que ficasse, enquanto Esmeraldina tomava, de um gole só, mais um copo de cerveja Brahma que o Anísio trouxe.

Quando acabaram as latas de Brahma, começaram a abrir as garrafas de Antarctica que Seu Amantino comprara no mercado em Dourados no dia que mandara fazer os óculos novos. À meia-noite comemoraram oficialmente o Natal abrindo champanhe e logo as visitas foram embora que sitiante acorda cedo. Ninguém se lembrou de Jesus, também ele não estava ali, não tinha presépio nem curralzinho com vacas e ovelhas de enfeite. Tinha o curral de verdade, mas Jesus não estava lá, devia estar na igreja onde o padre escuta e perdoa os pecados das prostitutas.  Esmeraldina ainda quis tomar mais uma cerveja, o marido achou que tinha tomado que chega, mas atendeu o pedido da esposa, queria agrada-la, daqui a pouco iriam para a cama.

 

Na véspera de ano novo, dia 31 de dezembro de 2023, é bom que se registre esse dia, foi quando, pela primeira vez, Esmeraldina viajou sozinha no Fiat Uno, saiu do sítio às duas da tarde e foi até a vila de Itahum, vinte e qutro quilômetros de distância. “Que aventura maravilhosa! Agora sou dona de mim!” Andou devagar, máximo de 40 quilômetros por hora, chegou na vila e foi direto pro mercado comprar as cervejas para o ano novo, que era só o que ia comprar, mas lembrou que a erva de chimarrão estava acabando então comprou um quilo, viu um pano de prato bonito com FELIZ 2024 escrito, não resistiu e levou dois, pegou também umas caixinhas de gelatina para fazer sobremesa, dois quilos de batatinha, fermento de bolo, farinha de tapioca, café instantâneo, dois refrigerantes, um par de chinelos havaianas, quatro cachos de uvas e se dirigiu ao caixa para pagar. “Virgem Maria, a cerveja!” Decidiu levar duas caixas de latas, mas a não conseguia decidir entre as da Brahma e as da Amstel. Ainda sem saber qual levar, sentiu uma mão passando levemente pela cintura e uma voz bem no ouvido: “Amstel é melhor!”

Esmeraldina já sabia bem engatar a marcha a ré, mas errou três vezes e quando conseguiu engatar saiu tão de pressa que bateu contra a mureta do estacionamento amassando o para-choque traseiro, “É o diabo que atenta a gente, só pode ser”. Entrou pela Rua Coronel Tibúrcio e foi até a rodovia, parou depois da curva para respirar e tentar pensar. Quis voltar para Itahum e confessar o pecado na Igreja Doutrina dos Apóstolos, mas já era tarde demais, e uma coisa tão boa nem pode mesmo ser pecado!

 

 

CAPÍTULO SEIS


Depois de beber muitas cervejas com o marido, Esmeraldina lembrou que já sabia dirigir o Fiat Uno e resolveu agradecer pelas aulas de direção de um jeito muito especial, mais especial que no dia das primeiras aulas. Estava vestindo uma saia jeans curta de cor verde e camiseta branca de gola V com bordados na frente. Enquanto seu Amantino pegava a cerveja na geladeira, Esmeraldina sentou-se no sofá, de repente pensou ter ouvido Josimar lhe falar e olhou para trás com os olhos arregalados, o marido sorriu, “que foi mulher? Parece assustada!” Parecia, e estava assustada. Não respondeu, só pegou o copo de cerveja e ficou um tempo a pensar que podia ser Josimar, talvez ele dissesse: “É uma amstel, essa é da boa”. O Corpo aqueceu, Esmeraldina automaticamente passou a mão nos seios, tomou um gole de cerveja e sorriu. “Você bebeu muito hoje”. A voz do marido parecia com a do Josimar, Esmeraldina propôs um brinde, e puxou a saia para cima para poder afastar as pernas uma da outra e sentou-se no colo, de frente para o marido. “Vamos brindar um ano de felicidade!” Tomou mais um pouco da cerveja e derramou, maliciosamente, o restante na camiseta, sobre os seios. Amantino não sabia o que fazer, mas ela pediu que ele a ajudasse a tirar a camiseta que estava molhada.

 

A madrugada estava silenciosa no sítio Alvorada. Se o galo cantou, ninguém saberia dizer. Se estivesse acordado, Seu Amantino diria que  essa foi a noite mais feliz do seu casamento, Esmeraldina estava muito sexy, depois de tirar a camiseta, afastou um pouco mais as pernas para a saia subir e deixar a calcinha bem à vista, Amantino desabotoou calmamente os três botões que prendiam a saia à cintura e a tirou pela cabeça da esposa, ela estava linda, mais até do que quando a viu nua pela primeira vez na noite do casamento no apartamento do Bravo City Hotel que o padrinho Argemiro alugou para passarem a Lua de Mel. Tinha bebido demais? Seja lá o que for, a felicidade se renovara. Era preciso procurar uma autoescola para Esmeraldina tirar a carteira de motorista.

Esmeraldina parecida estar acordada quando ouviu alguém que andava pela casa, foi ver quem era, saiu do quarto sem abrir e nem fechar a porta, passou pela sala sem perceber os móveis e viu uma claridade na cozinha para onde foi sem pensar uma única palavra se quer. Uma caixa de som tocava ‘Meu mundo e nada mais”, mas não era Guilherme Arantes que cantava, era o Josimar, ele cantava lindamente, Esmeraldina sentiu o corpo aquecer outra vez, transara com o marido pensando em Josimar, agora ele cantava para ela. Josimar apareceu ao seu lado com uma Amstel e dois copos. Antes de servir a cerveja abraçou-a carinhosamente e beijou seus lábios, Esmeraldina perdeu o chão, flutuava nos braços do amado que também estava a meio metro acima do piso, começaram a dançar no ar e Josimar cantava em seu ouvido: “Eu queria tanto estar no escuro do teu quarto, à meia-noite à meia-luz, sonhando...” Josimar propôs: “Brindemos um ano de felicidades!” Beberam e Esmeraldina derramou um pouco de cerveja na blusa, sobre os seios, Josimar a ajudou a tirar a blusa e fizeram amor sobre a mesa da cozinha. Esmeraldina gemia de prazer, gemeu tão alto que acordou Amantino. “Que foi mulher, tá passando mal?” Esmeraldina levou um susto que sacudiu todo seu corpo, acordou, parecia atônita.

Amantino dormiu outra vez, foi só um pesadelo, ao seu lado Esmeraldina espantava o sono com seus pensamentos acelerados. Olhou o relógio do criado mudo: três horas! Olhou o marido que roncava e tentou dormir. Josimar estava mesmo na cozinha? Olhou o marido outra vez e se convenceu que fora só um sonho, sonho não, um pesadelo. Um lindo pesadelo! Virou para o outro lado, agora pensava que Josimar talvez estivesse mesmo na cozinha, ficou com vontade de ir até lá. Puxou o trino da porta, a dobradiça rangeu, Amantino respirou fundo e resmungou qualquer coisa ininteligível, Esmeraldina saiu para a sala, foi até a cozinha e viu a chave do Fiat Uno sobre a mesa, pegou para guardar na estante, ficou com a chave na mão um longo tempo se imaginando na direção do Fiat Uno, viajando sem destino pelo mundo afora. Colocou as chaves na estante, outra vez se imaginou viajando, mas desta vez não era sem destino, ao contrário, viajava feliz pois sabia que no final da viagem iria encontrar o destino, o lugar onde seria feliz para sempre, e Josima a esperava de braços abertos.

O dia amanheceu e Amantino continuava dormindo, sonhava com Esmeraldina, no sonho ele a via sendo coroada rainha da beleza de Dourados! Recebia a coroa e o cetro das mãos do prefeito, daí desfilava usando um maiô verde-claro, tinha uma capa sobre o corpo, aberta na frente, dava para ver as curvas da cintura, ela sorria e mandava beijos para ele. O vento fez a janela do quarto ranger e uma trovoada indicando chuva fez Seu Amantino acordar, jasmira mugia no curral. Amantino sabia das obrigações de sitiante, mas queria dormir e continuar sonhando, voltar pra casa com a rainha da beleza, tirar a coroa lentamente, passar o cetro pelo corpo todo, tiraria o maiô beijando o corpo inteiro da rainha, então ela se deitaria na cama usando os sapatos de salto alto, estes ela continuaria usando enquanto fizessem amor. Não conseguiu dormir, procurou Esmeraldina na cama, mas ela não estava.

 

 

CAPÍTULO SETE 


Jasmira estava inquieta, também pudera, com duas horas de atraso seu Amantino abriu a porteira para a vaca entrar na estrebaria. O dia estava chuvoso, antes de sentar embaixo da jasmira, seu Amantino passou a mão pelas costas dela para escorrer a água acumulada, daí tirou o leite enquanto a vaca comia a ração no coxo. Chamou a boneca e depois a estrela, total trinta litros. Tampou os tarros, bateu o coador para limpar a espuma, pôs tudo no carrinho de transporte e rumou para casa, “Esmeraldina já deve estar esperando para fazer os queijos”.

Seu Amantino largou o leite no lugar de sempre no puxado da casa e saiu para cuidar dos serviços, levou as vacas para o pasto, fez limpeza da estrebaria, tratou as galinhas, recolheu os ovos, cuidou dos porcos e foi dar ração para os peixes. Já era pouco mais que dez horas quando voltou para o galpão e descansou sentado num saco de farelo de arroz que misturava na ração dos animais para suplementar proteínas e fibras. “A essas horas o queijo já deve estar no coalho”, pensou enquanto acendia um cigarro. A fumaça subia formando uma nuvem em sua frente, trazendo a lembrança da catarata, “ainda bem que não era”, e riu. Ficou com vontade de ver Esmeraldina, a chuva ainda caia no quintal. Entre as vigas do telhado viu o cabo de enxada que fizera ano passado quando xingara o Seu Antônio Scorched, culpando-o pela catarata que, afinal, não existia. Olhou no relógio: dez e meia! “Ainda dá tempo de consertar a cerca”, levantou e foi buscar o esticador de arame que guardara na garagem do Fiat Uno.

Com o alicate e um pedaço de arame para fazer a emenda da cerca na mão, seu Amantino permanecia parado em frente da garagem sem entender o que estava acontecendo. O Fiat Uno, que estivera ali desde ontem quando Esmeraldina chegou de Itahum trazendo as cervejas para comemorar o Ano Novo e estava com o para-choque traseiro amassado, agora já não estava na garagem. “Será que Esmeraldina foi comprar mais cerveja? Nesse tempo de chuva? Decerto volta logo”.

O conserto da cerca foi mais trabalhoso que seu Amantino imaginara, quando voltou para casa era mais de meio-dia. Tirou a capa de chuva e as botas e entrou chamando por Esmeraldina, que não respondia, os tarros de leite ainda estavam no mesmo lugar e a garagem vazia. Na cozinha, nem sinal de almoço, andou pela casa chamando pela mulher e só recebia silêncio por resposta. Esmeraldina não estava em casa. Foi ver o celular e não tinha mensagem da mulher. Ligou, mas o celular dela estava desligado, de certo estava sem bateria! Seu Amantino ficou preocupado, com esse tempo de chuva era perigoso ela ter se acidentado, “Porque foi sair de carro se mal sabe dirigir?”

Sem notícias da esposa, o jeito foi fazer o almoço e esperar, com esse tempo chuvoso não dava para sair por aí de bicicleta e além do mais, se algo de grave tivesse acontecido alguém já teria vindo avisar. Com o chimarrão pronto, jogou o toco do cigarro no fogo e tirou da geladeira as sobras do dia anterior, “dá que chega para mim”. O rádio ligado na 94 FM dava as notícias policiais informando os piores acontecimentos das últimas 24 horas, noticiou três acidentes automobilísticos, mas nenhum era Fiat Uno.

Duas da tarde seu Amantino decidiu buscar ajuda no vizinho, seu Juvenal tem uma Pampa, “de certo que vai me levar para Itahum”. Quando embarcou na bicicleta chegou o Josimar para dizer que essa semana não ia pegar os produtos para a feira, ia viajar para Campo Grande visitar os parentes e só voltaria dia 13. Depois de saber da notícia, seu Amantino falou que Esmeraldina tinha sumido e o Fiat Uno não estava na garagem. “Só pode ser que ela saiu de Fiat e aconteceu alguma coisa”. Josimar ficou apavorado, quis saber mais notícias, pegou o celular para ligar, tentou disfarçar que não sabia o número, mas seu Amantino disse que não adiantava ligar que o celular dela estava desligado. Josimar se ofereceu para ir atrás e ver se tinha acontecido alguma coisa na estrada. “Não se preocupa que eu vou ver se aconteceu alguma coisa”, e foi sem dizer mais palavras.

Anoiteceu e não chegou notícias, nem de Esmeraldina, nem de Josimar. O rádio ficou ligado direto na 94 FM, “notícia ruim é ali que sai”. Dez da noite o telefone tocou: “Seu Amantino, estou em Dourados, até agora ainda não tenho notícia da sua esposa. Amanhã vou para Campo Grande, então não vou poder mais procurar”.

Sem conseguir dormir, seu Amantino só tinha uma pergunta que girava sua cabeça: “Cadê a Esmeraldina?”

 


CAPÍTULO OITO   


No terceiro dia sem notícias de Esmeraldina, seu Amantino começou a ficar desesperado. Depois de procurar por toda a vizinhança e ligar para cada hospital de Dourados, foi aconselhado a procurar a polícia. O delegado do Primeiro Distrito disse que ele deveria registrar um boletim de ocorrência do desaparecimento, mas isso não parecia bom, iam mandar a notícia para as rádios e as fofocas iam ser piores que o sumiço da mulher. Esmeraldina sumiu dia primeiro, cinco dias depois o pão acabou e seu Amantino não sabia fazer outro, a comida do almoço saia e voltava para a geladeira quase sem diminuir, as louças deixaram seu lugar no armário e estão se acumulando na pia sem serem lavadas, as cervejas que sobraram do ano novo já terminaram, ainda tem uma garrafa de vinho e duas de pinga, “tem que dar para o fim de semana”. Josimar disse que não ia levar os produtos para a feira porque ia para Campo Grande. Esmeraldina sumiu na segunda-feira, um dia depois o Josimar foi para Campo Grande. “Não, se quisesse fugir com o Josimar, não ia sair de Fiat Uno”.

Nos primeiros dias seu Amantino tirou o leite das vacas e fez todas as tarefas do sítio, só não limpou a casa e mal fez comida para as refeições. Aos poucos foi relaxando, deixou de fazer os queijos e de se alimentar, sempre bebia no fim de tarde e à noite, “a companhia da bebida é melhor que a companhia da solidão”. Já não tomava mais banho e nem jantava, bebia até espantar o desespero e caía na cama com a roupa do serviço. Cada dia ao acordar olhava o calendário, já fazia dez dias que ela se fora, “Esmeraldina é muito corajosa e forte para ficar desse tanto de tempo sem voltar para casa. Donde será que se meteu?” Seu Amantino lavou o rosto e viu no espelho o tanto que a solidão lhe fizera mal. A barba crescida, os cabelos em desalinho e a cara emagrecida carregando um olhar desesperado fizeram seu Amantino arrancar o espelho da parede e joga-lo com violência para fora da janela. Nesse dia não fez nada no sítio e quando anoiteceu e a cachaça finalmente trouxe algum consolo, seu Amantino refletiu que o quarto era o pior lugar da casa, decidiu nunca mais entrar lá e passou a dormir no chão da sala.

No dia seguinte acordou com alguém chamando da porta, era Juvenal, queria saber se tinha notícias da esposa e também queria comprar uns peixes. Quando seu Amantino apareceu no vão da porta Juvenal quase saiu correndo, não imaginava o vizinho tão mal assim. Que Esmeraldina não voltara isso era óbvio pelas condições em que se encontrava a casa e o seu morador, perguntou pelos peixes, seu Amantino pediu que pegasse quantos quisesse no freezer, Juvenal pegou três e pesou, separou o dinheiro e pôs sobre a mesa onde restos de comida apodreciam. Amantino estava visivelmente abatido, magro, sujo, cabelos desalinhados, barba crescida e olhos afundados na cara. Mal conseguia articular as palavras e o corpo enfraquecido mal se movia. Juvenal decidiu leva-lo para sua casa e cuidar dele, mas Amantino recusou, não sairia dali até que Esmeraldina voltasse. “Se Esmeraldina voltar e eu não estiver aqui, vai dizer que eu a abandonei”.

Juvenal pegou os peixes e foi embora, voltou uma hora depois acompanhado da esposa e fizeram uma faxina na casa, mesmo sob os protestos de Amantino, trouxeram também um prato de comida e asseguraram que dali em diante trariam pelo menos uma refeição diária, Amantino disse que não queria, era desperdício, mas com a presença dos vizinhos deu até fome. Depois que comeu, sentiu voltarem as energias e decidiu que iria cuidar das tarefas do sítio, mas desistiu depois de sentir tonturas. Desse dia em diante Juvenal vinha todos os dias à hora do almoço com uma marmita de comida que seu Amantino dividia entre as refeições do almoço e da janta, ainda bebia sempre depois de jantar. Às vezes passava mal e vomitava, mas não conseguia evitar a bebida. Um dia pediu que Juvenal lhe trouxesse um pão, queria voltar a tomar café com pão de manhã. Vinte dias sem Esmeraldina!

 


CAPÍTULO NOVE

 

O dia 25 de janeiro amanheceu abafado, com sol forte pela manhã, mas previsão de tempestade para o final do dia. A grama ao redor da casa estava coberta pelas folhas das árvores frutíferas do pomar entre a casa e a lavoura de milho e mandioca que Seu Amantino deveria ter colhido para que Josimar vendesse na feira livre de Itahum. Há duas semanas que o comerciante vem e não encontra nada pronto para levar. “Semana que vem, pode vir que vou deixar tudo pronto”. O mato crescendo no quintal não era nenhuma garantia de que o sitiante teria ânimo para trabalhar na roça.

O sol quente de janeiro e o tempo firme o dia todo não foram suficientes para tirar Amantino de dentro da casa. Juvenal apareceu por volta do meio-dia, deixou o almoço na mesa e tentou animar o vizinho. Amantino permanecia imóvel na cadeira à um canto da cozinha onde pitava um cigarro de palha sem demonstrar nenhuma importância ao que o vizinho falava. “Come um pouco, vizinho” foi o apelo final do Juvenal antes de ir embora. No meio da tarde Amantino tentava levantar do colchão onde dormia no chão da sala, mas a dor na cabeça e no corpo era tão forte que desistiu, urinou ali mesmo, quis defecar, mas o intestino estava tão preso que não conseguiu. Sentia dores pelo corpo, já nem se reconhecia mais como ser humano. Sentiu fome, engatinhou até a cozinha, ergueu-se até a mesa e puxou a marmita para o chão, comeu com as mãos algumas gramas do alimento e não quis mais. Afastou a marmita e se arrastou de volta ao colchão na sala onde ficou olhando para o nada da sua vida sem Esmeraldina.

Às sete horas da noite viu uma claridade invadindo a casa seguida de um barulho ensurdecedor. Pensou estar nalguma guerra, mais clarões e mais bombas, depois ouviu um forte assobio, pensou ser uma sirene, a casa parecia se mexer, o assobio aumentava e diminuía, Amantino pensou estar girando no ar, sendo levado para um lugar muito estranho, para o céu, para o inferno, era difícil definir. O assobio aumentava e Amantino se viu outra vez no meio de uma guerra, as bombas continuavam a explodir e ele combatia o bom combate dos guerreiros de Deus. Uma legião de diabos tentava mata-lo e tomar o reino dos céus, mas ele não se intimidava, avançava corajosamente contra o poder do inimigo e ia matando os anjos do mal, até que ouviu outra vez um assobio muito forte, mais forte que os anteriores e em seguida outra explosão seguida de uma rajada de balas, daí viu uma Santa que lhe estendia a mão e dizia: “Não tenha medo, Amantino, eu cuido de você”, depois disso não ouviu mais nada.

No outro dia, bem cedo, Juvenal veio ao Sítio Alvorada acompanhado de Anísio para ver como Amantino tinha passado a noite após o temporal, talvez precisasse de ajuda. O vento foi muito forte, destelhou grande parte da casa e da garagem que eram cobertas com telha de barro. No curral não sobrou nenhuma das telhas de Eternit e o galinheiro ficou destruído.  “Aqui foi pior”, disse Anísio que mal acreditava no que estava vendo, “parece cenário de guerra”, respondeu Juvenal temendo pela vida do dono do sítio.

A varanda tinha pedaços de telha esparramados por toda extensão, galhos de árvores, folhas e muita sujeira também se acumulavam por ali. Juvenal empurrou a porta da cozinha e viu a marmita no chão, a casa estava em silêncio. “Será que ainda dorme?” Perguntou Anísio, receoso pela resposta que Juvenal não teve coragem de dar. Lentamente adentraram à sala onde Amantino parecia desacordado. “Morreu!” Exclamou, alarmado, Juvenal, mas foi tirar a dúvida tomando o pulso. “Tá vivo! Chama a ambulância, liga pro SAMU”.

Amantino chegou desacordado no Hospital da Vida em Dourados, mal respirava e o pulso era fraco. O médico de plantão atendeu de urgência, aplicou soro e vários remédios na veia. Aos poucos a vida foi voltando ao corpo do sitiante, o médico achou por bem deixa-lo na UTI por um dia até que apresentasse melhoras mais significativas. Questionado sobre algum parente que pudesse ser avisado, Juvenal disse que não tinha, a mulher sumira há quase um mês e filhos não tinha, outros parentes ninguém sabia, mas, se precisasse, ele podia ser referência para contato, só não podia ficar porque tinha que tocar o sítio.

A internação durou cinco dias, dois na UTI e mais três num quarto coletivo, onde se recuperou bem e teve alta. Juvenal foi avisado e veio buscar o amigo. O médico recomendou e insistiu que Amantino não ficasse sozinho em casa, seria bom se pudesse ficar com alguém de companhia para garantir que se alimentasse e tomasse os remédios nos horários determinados na receita, mas principalmente porque a solidão poderia ser fatal dado o estado psicológico do paciente. Juvenal propôs que Amantiono passasse uns dias com sua família, mas o sitiante protestou que não poderia deixar o Alvorada porque, se Esmeraldina voltasse, era importante que o encontrasse em casa, principalmente agora que estava bom outra vez, “Ela vai voltar e eu quero estar lá”.

 

 

CAPÍTULO DEZ

 

O asfalto da estrada passava por baixo da pampa do Seu Juvenal , mas a viagem que Amantino fazia era de volta à casa do pai. Agora tinha dezoito anos e o pai é que dirigia a Pic-up Fiat 147, usada, adquirida na concessionária da Fiat na Marcelino Pires, vinha orgulhoso do carro ‘novo’ e disse que ensinaria o filho a dirigir assim que terminassem a colheita do milho. O pai estava muito animado e cantarolava ao volante, a estrada que passava por baixo era de terra e alguns solavancos faziam o carro derrapar aqui e ali causando medo no jovem Amantino. “Pode confiar que eu sei dirigir!”, “Mas, você bebeu pinga, devia andar mais devagar”, “Um homem precisa beber de vez em quando, agora que você fez dezoito, vai beber comigo”. Um mês depois, um acidente fatal ceifou a vida do pai e da mãe, não sobrou nada da Pic-up, perda total. Amantino fez o velório no sítio e enterrou os pais no cemitério de Itahum.

Juvenal diminuiu a velocidade e entrou pela estrada vicinal, “é o mundo que passa por baixo da gente”, Amantino via a vida de um jeito novo, cada sítio tinha um pedaço de natureza e outro de lavoura e gado, “Deus e o Diabo”, os pensamentos enchendo a Pampa de um modo que até Juvenal se sentia oprimido. “Tá tudo bem, Amantino?” “Sim, agora eu vejo o Céu e o Inferno, antes eu só via eu e Esmeraldina”. Juvenal teve vontade de levar Amantino de volta ao hospital. “Decerto foi a Santa que me abriu os meus olhos para ver o que antes era impossível”. Amantino parecia delirar, por precaução, Juvenal levou o carro direto ao sua casa, Amantino não quis descer do carro, insistiu que não ficaria ali, mas Juvenal garantiu que seria só para um café. Desceram, Amantino olhou longamente para o quintal, um gramado bem cuidado ao redor da casa, horta, árvores frutíferas e o laguinho dos patos, “esse é o pedaço do Céu”. Mais adiante a lavoura...

Dona Maria Aparecida chamou da porta da cozinha, “entrem, vou passar o café”. No canto da mesa Juvenal abriu a receita e verificou quais remédios poderia dar nessa hora. Amantino concordou em tomar todos que era preciso, mas depois do café, e assim fez, daí pediu para voltar logo para casa que queria rezar para a Santa e pedir ajuda para estar bem quando Esmeraldina voltasse, “ela me disse que ia cuidar de mim”. Maria Aparecida não entendeu nada, Juvenal menos ainda, Seu Amantino nunca fora religioso, nem sequer uma ave maria ele rezada quando tinha novena e ainda falava que santo nem existia, agora queria rezar para santa, “que santa?” “Não sei”, respondeu Juvenal, ele agora anda devoto dessa santa, só ainda não revelou qual.

Quando ficaram sabendo que Seu Amantino estava hospitalizado, os vizinhos de sítio resolveram se unir para ajudar na reforma do telhado da casa, da garagem e do curral, a jasmira, a boneca e a estrela Juvenal já tinha levado para tirar leite e cuidar com os bezerros. Levou também os quinze porcos do chiqueiro. As galinhas estavam soltas pelo quintal. A lavoura ficou abandonada, desde ano novo que o mato crescia livre e nada se colhia dali. No dia que Amantino foi levado de ambulância para o Hospital da Vida, Seu Anísio visitou cada um dos vizinhos para explicar a situação e convidou para uma reunião, queria unir as forças para ajudar, organizou um mutirão para consertar os telhados e já estavam finalizando o serviço quando Juvenal encostou a Pampa no pátio.

Amantino caminhou lentamente até o curral e perguntou por que estavam tirando o telhado, “Não estamos tirando, mas colocando de volta. A tempestade arrancou tudo, Seu José tinha umas telhas de sobra e cedeu para repor, a garagem destelhou quase a metade e a casa ficou um lado quase descoberto.” “Tempestade! Que tempestade?” Aquilo tudo parecia uma grande novidade, mal se lembrava do curral; da jasmira, da boneca e da estrela nenhuma lembrança, nem dos porcos, das galinhas ou dos peixes, a lavoura parecia nunca ter existido. Lembrou-se da casa e foi entrando calmamente, olhou para o tanque e a máquina de lavar roupas na varanda, os bancos e a mesa de tábuas onde Esmeraldina fazia os queijos, duas folhagens plantadas nos vasos, a cozinha estava limpa e arrumada, olhou as paredes e entrou na sala ondo dormira desde que Esmeraldina foi embora, o colchão não estava mais ali, só o sofá, uma mesa de centro e a estante com a televisão e uns enfeites de porcelana. Passou a mão cuidadosamente pela parede ao lado da estante, no canto da sala, “foi aqui que a Santa apareceu.”


CAPÍTULO ONZE

 

Desde que Esmeraldina foi embora sem dar notícias, as famílias da vizinhança especulam sobre os porquês de ela ter sumido. Primeiro havia uma unanimidade sobre uma fuga com Josimar, ela dava pra ele mesmo que o marido a repreendesse por ser ele feirante e ter dinheiro, “não se dá de graça para quem tem dinheiro”. Logo no dia seguinte do sumiço de Esmeraldina, Josimar viajou para Campo Grande e ficaou ausente por quase duas semanas. Desde antes do Natal já se falava que Esmeraldina teria demonstrado interesse por ele, eram flagrantes os olhares de desejo entre ambos, Seu Anísio estava no mercado em Itahum quando viu Josimar abraçando Esmeraldina e a aconselhando a comprar Amstel. Não havia dúvida que teriam fugido para ficarem juntos. Mas, duas semanas depois Josimar voltou para Itahum e dizia não saber nada do paradeiro dela.

O mistério do desaparecimento de Esmeraldina intrigava a todos, mas a fé que Amantino passou a depositar na Santinha do Itahum despertou o interesse da vizinhança porque parecia que a Santa exercia um controle sobrenatural sobre o sitiante. Cada decisão era levada ao altar onde a imaginária santinha estaria. Só havia o altar, nenhuma imagem ou escultura, o altar e a fé,  até o Padre Márcio, da Igreja Doutrina dos Apóstolos de Itahum, ficou a pensar se a devoção a santos católicos deveria ter mesmo imagens de adoração, Amantino adorava a Santa que não tinha imagem, apenas um altar, e sua fé parecia maior que a das beatas do Itahum, que rezavam centenas de ave-marias para, logo em seguida, saírem da Igreja fofocando abundantemente sobre a vida vulgar dos habitantes pecadores do povoado.

Foi depois de orar fervorosamente diante do altar que Seu Amantino decidiu que as vacas jasmira, boneca e estrela e também os porcos deveriam ficar com o Juvenal, em troca este concordou em trazer de Itahum, e até de Dourados se fosse o caso, tudo que Amantino precisasse até o valor combinado pelo arrendamento dos animais, o que sobrasse seria pago em dinheiro. O Anísio propôs arrendar os tanques de peixe e também a roça, a Santinha aprovou e o contrato foi feito pelo prazo de três anos com a inclusão do chiqueiro, tudo gerando renda à base de 15 por cento em favor do proprietário. Anísio quis incluir o galinheiro e a horta, mas a Santinha tinha outro propósito, eles seriam deixados aos cuidados da Dona Maria José, uma viúva de uns cinquenta anos que morava com o filho Marcelo e a nora no sítio Esperança, lindeiro com o sítio do seu Anísio. Desde que o filho se casara, a nora tomou conta da casa e Dona Maria José vivia desconfortavelmente dentro da própria casa. À noite, no mesmo horário em que Amantino orava pra Santinha, Dona Maria José teve uma visão que fez seus olhos brilharem. “Que foi mãe? Parece que viu Jesus?” Perguntou o filho quase rindo. “Jesus não, mas eu ouvi uma voz de mulher, uma voz feminina, tão suave que parecia que flutuava no ar, ela me dizia que eu deveria ajudar o Amantino, que ele tá precisando de minha ajuda. E sabe? Acho que lá eu vou ter lugar para fazer o que eu quero, que aqui já não tem mais lugar para mim, né?” A resposta desconcertou o filho que imediatamente passou a se sentir culpado por ter casado e permanecido na casa da mãe. A intenção era ajudar a mãe, fazer-lhe companhia e cuidar dela, mas aos poucos a nora foi tomando conta da casa e a companhia, que de início era agradável, passou a ser um incômodo, dona Maria José passou a ser um estorvo para quem nunca fora importante.

Dona Maria José entrou no Fiat Uno que herdara do marido decidida a só voltar no final do dia, tinha muito o que fazer na casa do Seu Amantino. O filho não sabia o que estava acontecendo com a mãe, mas a nora sabia, sabia que agora seria a verdadeira dona da casa por pelo menos um dia. Sabia também que, sem a sogra em casa, teria que limpar a casa e lavar as louças e as roupas.

O Fiat Uno entrou no Sítio Alvorada e estacionou na garagem onde costumava estar o carro que Esmeraldina levara no fatídico dia de ano-novo. O barulho do motor esparramou-se pelo quintal e foi levado pelo ar pela casa a dentro até chegar na sala onde Amantino fazia sua prece matinal diante do altar. O ronco do motor do Fiat Uno fez o coração pulsar dentro do peito, quis sair correndo, mas a Santinha o proibiu. O coração acelerado e o rosto vermelho do sangue que se lhe explodia pelas faces, o pelo todo arrepiado. Seria Esmeraldina voltando? “Não Amantino, não é Esmeraldina, é só um presente que mandei para você!”


CAPÍTULO DOZE

 

Maria José bateu a porta do Fiat Uno e andou lentamente para fora da garagem, olhou para a casa e calculou a distância: 10 metros, uns quinze passos, então voltou o olhar para o carro que silenciosamente ficara estacionado na garagem, pensou em como isso podia ser tão familiar se era a primeira vez que guardava o carro ali, tão familiar que nem se quer  se dera ao trabalho de perguntar se poderia mesmo guarda-lo neste lugar privativo. Balançou a cabeça e até sorriu, além da garagem, mais dez metros estava o galinheiro. Havia algumas galinhas ciscando pelo quintal, pensou em trazer uma choca com pintinhos de casa, talvez umas galinhas poedeiras e um galo para reproduzir e encher o galinheiro, frangos caipiras para comer e até vender os excedentes! “Vou falar com Seu Amantino, se ele concordar...” Enquanto seu olhar voltava para a casa onde desejava trabalhar nesse dia, viu a horta completamente abandonada, o mato crescia sobre os canteiros e já davam semente, nenhuma verdura além de uns teimosos pés de couve com as folhas completamente destruídas pelas lagartas. “Se Seu Amantino concordar...”

Entrou pela varanda e parou na área de serviço, estava suja, mas não era o abandono de que se falava antes que Amantino fora hospitalizado em Dourados, a máquina de lavar roupas estava coberta com um pano florido meio encardido, de certo para proteger da poeira, o tanque tinha um pouco de água dentro e panos de limpeza pendurados na borda, as folhagens pediam água, sobre a mesa da varanda não havia nada além de uma fina camada de poeira. Num armário ao lado do tanque Maria José encontrou produtos de limpeza, tomou um balde e foi enche-lo na torneira do tanque, pôs sabão em pó na água e, com um pano de limpeza na mão começou o que seria a nova rotina para sua vida.

No primeiro dia Seu Amantino mal balbuciou algumas palavras, disse um bom dia acanhado, considerou a comida do almoço boa e falou tchau acompanhado de um leve aceno de mão. Três dias depois perguntou se Dona Maria José gostaria de cuidar das galinhas, desde que não faltasse para a casa, poderia fazer o que quisesse com o excedente. Ela quis, trouxe uma choca com pintinhos e algumas poedeiras e um galo da raça Plymouth Rock, ela não sabia dizer corretamente o nome, então só dizia plimut, que como se diz mesmo. Trouxe também ração para os pintinhos e quirera e milho para os adultos, assim iniciou a criação de galinhas caipiras que logo começaria a dar lucro, além dos pratos deliciosos preparados para as refeições com Seu Amantino.

Um mês depois a horta já dava as primeiras verduras para salada do almoço, “almeirão produz rápido”. As alfaces de verão já estavam no ponto de replantar, cenoura e beterraba crescendo e a cebolinha e a salsinha que vieram com as mudas desenvolvidas, já temperavam a comida na mesa do Seu Amantino. As plantas cresciam na horta e a alegria se renovava a cada dia no espírito de Maria José que agora já não era mais ‘Dona’, mas apenas Maria José. Seu Amantino também não era mais ‘Seu’, agora ela o chamava apenas de Amantino, “assim é melhor!”

Dia 10 de março Amantino pôs, pela primeira vez desde que voltara do hospital, os pés para fora da casa. A princípio aceitou dormir no quarto, desde que ninguém mais entrasse lá, do quarto ia ao banheiro, à sala onde fazia as orações, à cozinha para as refeições e de volta ao altar, seu lugar preferido, diante da Santinha imaginária, daí voltava ao quarto e assim passava cada dia sem ver sequer a luz do sol. No dia 10 de março apareceu pálido na varando onde viu surpreso que Maria José fazia um queijo. Trouxera um tarro com dez litros de leite que agora já estavam talhados e ela já prensava a coalhada na forma para escorrer o soro, apertou bem de um lado e virou a forma para apertar do outro, repetiu esse movimento várias vezes então colocou na prensa onde deixaria até o dia seguinte. Amantino olhava para ela, ora vendo a nova companheira de cada dia, ora vendo Esmeraldina, sentiu um mal-estar e procurou uma cadeira, Maria José o viu pálido, mas que diferença isso fazia? Pálido ele já estava desde que ela ali chegara há um mês. Amantino titubeou pela varanda, quase caiu, agarrou-se como pode ao varal que atravessava o ambiente, o arame cedeu, ele deu mais um passo e agarrou-se ao pilar de madeira, Maria José correu em socorro e levou-o abraçado para dentro, deu-lhe um copo de água e fez vento no rosto com a aba do avental. Quando recuperou o ânimo, Amantino quis ver o quintal, admirou-se de como a horta estava bem cuidada e as verduras crescendo saudáveis. Perguntou das galinhas e daquele galo de raça, “é plimut”. Amantino voltou os olhos para ela e, de novo, a confundiu momentaneamente com Esmeraldina, na garagem o Fiat Uno. “Onde será que ela está?”  



CAPÍTULO TREZE

 

Com a Páscoa se aproximando, as ave-marias das novenas circulavam de sítio em sítio e já se aproximavam perigosamente do Alvorada, onde a Santinha do Itahum se mantinha fiel e invisível. “Nenhuma ave-maria vai ter aqui, porque a Santinha não gosta de vãs repetições”. Amantino passara a vida inteira no ateísmo e agora se convertera a uma religião particular e era devoto fiel da Santinha que lhe falara pela primeira vez quando, em fins de janeiro, perdera completamente o sentido da vida, e ela lhe dissera: “Não tenha medo, Amantino, eu cuido de você”.  Cada decisão que tomava era submetida ao altar e só com a aprovação da Santinha era encaminhada. E estava dando tudo certo. O Juvenal pagava pelos porcos e pelas vacas, o Anísio pelo uso dos tanques de peixe, do chiqueiro e da roça e agora a Maria José cuidava da casa, da horta e do galinheiro. Amantino só tinha de despesa o salário da Maria José, mas o dinheiro do arrendamento era suficiente e ainda sobrava e do jeito que ela cuidava do galinheiro, logo venderia galinhas para Josimar comercializar na feira.

Depois do mal-estar que tivera na varanda, Amantino rezou diante do altar e pediu conselho para a Santinha que lhe respondeu afirmativamente que deveria ajudar Maria José nos cuidados com a horta e dedicar nisso pelo menos três horas por dia de trabalho, Maria José disse que ele poderia também cuidar da galinhas, se quisesse, mas ele disse que não, a Santinha só dissera para ajudar no trabalho da horta, e assim o fez, cada dia após as orações e o desjejum ia para a horta de onde só saia às onze horas com as roupas sujas e suadas trazendo para casa algumas verduras para a salada do almoço. Os primeiros dias lhe foram sofríveis, faltavam as energias necessárias para o trabalho e as horas pareciam não passar, mal conseguia dar algumas enxadadas e os olhos escureciam, então parava escorado no cabo da enxada e inclinava a cabeça para o sangue voltar a circular e respirava fundo clamando pela intercessão da Santinha em seu favor, daí continuava lentamente seu trabalho. Com o trabalho, a fome aumentava, com mais alimentos, as energias também aumentavam e assim Amantino ia tendo cada vez mais disposição para o trabalho.

Quando a semana santa chegou e os vizinhos convidaram Amantino para participar das festividades ele disse que sim, poderiam fazer o almoço da Páscoa em sua casa, já tinha verduras suficientes na horta para a salada e pediria à Maria José que matasse algumas galinhas para assar no forno. Também encomendaria ao Juvenal que trouxesse algumas garrafas de vinho de Dourados. Juvenal concordou e trouxe, também, um bom assado de porco e algumas cervejas, Anísio trouxe peixes, também assados no forno, não trouxe bebidas porque ia beber com Amantino do vinho que este mandara comprar em Dourados. Maria José assou os frangos e as famílias celebravam a Páscoa da Ressurreição do Salvador com muitos assados e bebidas quando alguém chamou do quintal.

Maria José se prontificou a ver quem era e o que queria quando Amantino a chamou e disse: “Se for índio pedindo comida, mandas entrar que tem bastante aqui.” “Índios não comemoram a Páscoa, Amantino.” “Não comemoram a Páscoa, mas sentem fome.” Maria José saiu para o quintal e lá se demorou mais do que se imaginava, quando voltou e todos já se inquietavam da demora, a única pergunta que fizeram foi: “Que aconteceu, Maria José?” Ela estava pálida, respirava ofegante e suava limpando a testa com o pano de prato que saíra em suas mãos. Amantino levantou-se de pronto e correu eu seu socorro, tomou-lhe as mãos suadas e a acompanhou até uma cadeira. Maria José pediu um copo de água, que foi trazido pelas mãos de Amantino. “O que foi que aconteceu?” “Era um vendedor” balbuciou, “Ele queria vender um quadro.” Todos riram aliviados, não havia nenhum perigo em um vendedor de quadros. “Quadros, que quadros? Mas, por que você parece tão assustada com um vendedor de quadros? Ele tentou fazer algum mal a você?” “Não, ele não fez mal nenhum, ele só quer vender um quadro, uma pintura que ele mesmo pintou.” “Bom, mas você não comprou o quadro, então voltemos ao almoço”, disse Seu Anísio e todos se voltaram para a farta mesa de assados e bebidas. “Ele deixou a pintura lá fora, disse que só Amantino pode pega-la e só deve tirar o embrulho diante do altar da Santinha”.

Antes de entrar na cozinha, Maria José ouviu do vendedor de quadros uma história que era assustadora, inacreditável e comovente ao mesmo tempo. “Eu conheci a Santinha” ele disse “ela era linda e muito dedicada, eu a conheci quando eu fazia pinturas para as freiras do Colégio Imaculada Conceição, elas queiram que eu as desenhasse cuidando das crianças das séries iniciais da escola, não queriam uma fotografia, mas um desenho caricaturado para que o mundo as visse com os olhos de Deus. Enquanto eu pintava, chegou uma voluntária vestida nos padrões franciscanos, usava um véu e um hábito religioso, disse que era franciscana e se dedicava integralmente à Deus fazendo obra de atendimento às pessoas com necessidades prementes de atendimento à saúde, alimentação e proteção. Ela tocou em meu ombro e eu senti que algo de sobrenatural se passava comigo, fiquei aturdido, minhas mãos tremiam, mas ela me tocou outra vez e eu senti uma paz tão grande que nem sei como explicar, daí ela olhou-me diretamente nos olhos e disse: ‘Você é um pintor de Deus’. O que isso podia significar? Eu não sei, só sei que desde esse dia eu só fiz pinturas que retratassem a grandeza do poder divino. Ela me disse que morava num lugar chamado ‘Toca de Assis’, me disse para ir até lá e fazer algumas pinturas, eles não iam ter como pagar, mas que Deus iria prover tudo o que eu precisasse. Eu fui, não sei que força me movia para lá, eu não tinha nada a ganhar, mas eu fui movido por um poder que era maior do que eu, levei o cavalete, os pinceis, tinta, tudo o que precisava, e o que eu vi? Gente pobre, muito pobre! Pessoas que chegavam famintas e doentes, tinham feridas pelo corpo e na alma, e aquelas freiras e mais outras pessoas cuidavam de cada um como se fossem filhos de um Deus vivo! “Eles são filhos de Deus e o nosso cuidado é o milagre que Deus faz em cada um”. “Para receber um milagre é preciso estar aqui? Perguntei. “Não, o milagre é para quem tem fé, mas também para quem precisa, mesmo não tendo fé, o milagre transforma a vida e daí a fé vem atrás como se estivesse a reboque”. Maria José estava espantada, esse vendedor não viera para vender um quadro, mas para falar de milagres. Que sabia ele da conversão do Amantino? “Na verdade” ele disse “eu não vim aqui para vender esse quadro, eu vim a mando da Santinha, ela pediu que eu fizesse esta pintura especialmente para o Seu Amantino, é a imagem da Santa que ele venera, eu não posso tirar o embrulho, então eu vou deixar a pintura aqui e depois você entrega para ele, deixa que ele venha buscar aqui fora, na área de serviço, ele só deve abrir o embrulho depois que ele estiver sozinho diante do altar, ninguém pode estar com ele.” Disse isso e foi embora. 



CAPÍTULO CATORZE

 

Às duas da tarde Maria José perambulava pela casa vazia, limpando e arrumando tudo no lugar devido enquanto Amantino pegava cuidadosamente a pintura deixada pelo artista sobre a mesa da área. Era uma tela de uns quarenta centímetros de largura por uns cinquenta ou sessenta de altura e estava toda envolta em papel de embrulho rosa. Amantino passou levemente a mão sobre papel e percebeu que estava emoldurada. Ficou imaginando como seria o rosto da Santinha e como o pintor poderia saber da santa. Maria José aproximou-se lentamente e lhe contou a história dita pelo artista, ele vira a Santa, falara com ela, era uma freira franciscana. “Então ela está viva? Como pode estar viva se os Santos estão todos mortos?” Maria José não sabia responder, também ela tinha suas dúvidas quanto às imagens de santos. Fora devota de São José e de todas as Nossas Senhoras que conhecia da igreja, até que decidira conhecer a Palavra e encontrou na sua bíblia vária passagens que diziam que não se deve fazer imagens de adoração, viu também que quem morre não vai para lugar nenhum até que Jesus volte pela segunda vez. Perguntou ao Padre Marcio, de Ithum, mas ele só disse que mesmo a bíblia dizendo isso, a Igreja Católica ensinava diferente e era preciso obedecer a igreja. Maria José não se convenceu, decidiu seguir os ensinamentos da bíblia e tirou todas as imagens de santos que tinha em casa e nunca mais foi à missa e nem nas novenas. Agora via ali, nas mãos de Amantino, um quadro com a imagem da Santinha, justo Amantino que nunca tivera fé em santo nenhum.

“Para que uma imagem?” A Santinha nunca reivindicara uma imagem, bastava o altar e a devoção. Agora vinha esse artista dizendo que fora ela própria, a Santinha, que lhe enviara com o quadro pintado. Ainda não se via nada além do papel de embrulho. Com o quadro nas mãos Amantino relutou até que Maria José pôs a mão em seu ombro e carinhosamente lhe disse: “Se ela pediu, é porque dever ter alguma importância”. Sim, isso parecia um argumento forte. Amantino olhou para dentro de casa, de longe viu a sala e imaginou-se prostrado diante da imagem da Santa. “A única imagem diante de quem eu me prostrei até hoje foi da Esmeraldina, mas ela foi embora, não merece mais minha devoção”.

Antes de buscar o quadro na área de serviço, Amantino preparara um lugar no altar onde o quadro ficaria escorado na parede, buscou mais algumas flores no quintal para que a Santinha tivesse pelo menos dois vasos floridos diante de si, mas agora já não tinha convicção de que deveria colocar a imagem sobre o altar. Chamou Maria José, queria saber sua opinião, ela lera a bíblia, o que dizia lá sobre imagens de santos no altar? “A bíblia diz que não se deve fazer imagens de adoração, mas isso é a bíblia da igreja católica”. “Católica? Os católicos têm um milhão de santos e fazem imagens para todos eles!” “Por isso que eu não vou mais lá”.

Depois de ficar mais de vinte minutos olhando para o altar, com o quadro embrulhado em papel rosa nas mãos, Amantino saiu da sala carregando a imagem da santa para fora e foi guardá-la na garagem. “Se a Santa quiser fazer um milagre com essa pintura, então faça daqui mesmo”. Ali deixou o quadro pendurado num prego e voltou para a sala onde prostrou-se diante da santinha imaginária para fazer seus pedidos diários, pediu que ela fizesse um milagre para ele ver o seu Fiat Uno outra vez naquela garagem onde deixara a imagem pendurada num prego.



CAPÍTULO QUINZE

 

A notícia da imagem da Santinha espalhou-se rapidamente e junto com ela a informação, exagerada, de que ela já havia feito muitos milagres. Pessoas de toda vizinhança vinham para saber da Santinha, queriam rezar diante da imagem, cura para diversas doenças e muitas outras causas seriam apresentadas diante do altar, se seu Amantino permitisse, mas ele não queria que houvesse peregrinação, pediu para Maria José mandar todo mundo embora.

Em Itahum, as missas da Paróquia continuavam enaltecendo os Santos católicos, mas os fieis iam, aos poucos, incorporando mais uma santidade, herética, segundo padre Márcio. O Zé Jardineiro curou-se milagrosamente da Covid depois de fazer uma promessa à Santinha do Itahum, promessa que cumpriu uma semana depois da cura indo a pé até o Sitio Alvorada onde fez uma longa oração ajoelhado em frente da casa. Maria da Conceição trocou a devoção à Santa do seu nome pela Santinha e viu aumentar repentinamente a clientela em sua lojinha de bugigangas trazidas do Paraguai, Adélia dos Santos trocou Santo Antônio pela Santinha e arrumou namorado, em menos de duas semanas já estava noiva e prometida para o Josias da borracharia, juraram convidar Seu Amantino para padrinho de casamento. Dona Amábile rezava o terço todos os dias, mas a graça de ser curada das feridas da perna nunca chegava, foi só trocar a Virgem Maria pela Santinha do Itahum nas contas do rosário que, em três dias apareceu um curandeiro e lhe indicou um composto de ervas medicinais e ela ficou boa, agora não para em casa, é o dia inteiro anunciando o milagre pela vila. Padre Márcio, coitado, está entre a cruz do altar e a espada da fé do povo.   Se pelo menos ele soubesse quem era a Santinha, poderia promover uma campanha de beatificação e, quem sabe, um processo de santificação. “Essa Santa pode me levar ao reconhecimento em Roma, ou a uma eleição para vereador. Mas assim, sem sequer uma imagem para se saber quem é fica difícil”. Com a notícia do quadro doado pelo pintor, Padre Márcio decidiu fazer uma visita ao Sitio Alvorada, saiu logo depois da missa matinal na Paróquia Doutrina dos Apóstolos e bateu palmas em frente à casa do Amantino pouco depois das nove horas. Maria José disse que ninguém poderia ver o altar, mas o padre insistiu, queria saber quem era a Santa, qual o nome dela, se o quadro com a imagem da Santa estava lá, se o pintor sabia quem seria ela, já que ele pintou a imagem, teria ela vivido mesmo em Itahum ou era só uma referência ao distrito? Amantino estava trabalhando na horta e não adiantaria nada Maria José chama-lo. O padre insistiu, queria rezar no altar, “uma Santa não deve ficar isolada, refém de um único fiel”. “A Santa é de todos, o altar é particular”. Maria José repetia a resposta dada por Amantino quando questionado sobre tamanha privacidade da Santinha. Padre Márcio se descabelava, estava ofegante, muito ansioso, as lágrimas já se lhe fluíam dos olhos. Virou-se de costas e andou decidido no rumo da horta, no terceiro passo estacou aterrorizado diante da faca pontuda que Maria José lhe estendia decidida. “Mais um passo e eu afundo essa faca no teu peito!” Não havia dúvida, pela expressão do olhar e a quantidade de sangue que avermelhavam o rosto, ela estava falando a verdade, o padre recuou, balbuciou algumas palavras num quase silencioso protesto e voltou agoniado para a Paróquia.

Notícias de milagres se multiplicavam em Itahum, as beatas da igreja protestavam junto ao padre, “Isso é um absurdo, o senhor não pode permitir”. O padre não tinha respostas, era desanimador ver a fé do povo se desviar dos ensinamentos católicos, muitos fieis já deixavam de ir às missas e a coleta do dinheiro diminuía a cada semana. “Tem gente querendo fazer um altar para a Santinha no meio da praça”, disse uma das beatas, Marlene, a mais revoltada das três. “Eu sei”, disse o padre tristemente, “eles queriam fazer o altar aqui na frente da igreja, mas eu não deixei”.

Não só os católicos, mas os crentes também estavam sentindo o drama da fé. A Cristã do Brasil e a Assembleia de Deus já contabilizavam mais de dez membros desviados. “Isso é ação do maligno”, disse o Pastor Josafá da Assembleia, na reunião de líderes, “Vou convocar a igreja a uma semana de jejum, vamos fazer uma corrente de oração, se isso continuar vamos ficar sem recursos financeiros em pouco tempo”. Uma das irmãs desviadas para a Santinha testemunhou na praça onde escolhiam o lugar para a construção do altar, que a Santinha lhe aparecera em sonhos e lhe pedira que pregasse boas novas de salvação que viriam dos lugares públicos e não mais dos altares fechados em igrejas. “Deus não vive em templos feitos por mãos humanas”. E todos ficavam maravilhados com a pregação da irmã que até há poucos dias viviam enfurnada numa igreja tradicional onde as mulheres tinham que se calar. 



CAPÍTULO DEZESSEIS

 

Quando Padre Márcio abençoou e despediu os fiéis ao final da missa dominical, a praça anunciava a inauguração do altar em homenagem à Santa milagreira do Itahum. Católicos, Crentes, Umbandistas, Muçulmanos, ateus e até a família do João Ribeiro, os únicos seguidores da Ordem Rosacruz no distrito, todos se reuniam diante do altar e ouviam atentamente cada testemunho de milagre operado pela Santa. Zé Jardineiro levou as ferramentas de serviço para serem benzidas, mas não tinha ninguém para as benzer; Maria da conceição montou uma barraca com as bugigangas que trazia do Paraguai, mas até agora ainda não vendera nada; Adélia dos Santos chorava emocionada vendo o noivo anunciar aos berros que se casariam em um mês, ali mesmo, diante do altar, iria abrir uma borracharia em frente da casa da noiva e ensinaria a profissão para os filhos que iriam nascer, todos sob a proteção da Santinha; Dona Amábile também testemunhou seu milagre e atrás dela tinha uma fila com vária pessoas esperando a vez de falar.

Aos poucos a praça ia enchendo de gente, fieis oravam fervorosamente com os braços erguidos em direção ao altar, muitos choravam emocionados, outros davam saltos no ar como se dançassem rock’n’ roll. Quando o presbítero Ananias, da Igreja Presbiteriana, anunciou que deixaria seu cargo em favor do ministério da Santinha houve uma comoção na praça, o povo aplaudiu emocionado a decisão e pediu em coro que ele fizesse uma oração poderosa. Uma comissão foi formada para ungi-lo presbítero neste novo ministério. Ele aceitou prontamente, ergueu as mãos sobre o povo e começou a falar em línguas estranhas, ninguém entendia nada, mas havia poder naquelas palavras, uma mulher caiu de costas e foi amparada pelas pessoas que estavam atrás dela, as irmãs que eram crentes logo identificaram que ela “caiu na unção”, logo outras mulheres também caíram na unção, alguma homens também, o povo foi abrindo espaço para os que caiam e muitas mãos se estenderam em oração sobre os ungidos. Ananias fez uma longa oração citando passagens bíblicas e reafirmando, de tempos em tempos, que Deus não habita em templos feito por homens e que não havia nenhuma dúvida que, diante dos testemunhos de tantos milagres, a Santinha era a única verdadeira intermediária entre os homens e Deus e ali, naquela praça, se fundaria a verdadeira Igreja da Santinha, “o mundo vai conhecer o verdadeiro caminho da fé!”

O Presbítero Ananias ainda orava com intensidade quando foi interrompido por gritos vindo do meio da multidão, era o cego Bartolomeu que clamava pela cura. Bartolomeu era respeitado no distrito, homem forte e inteligente, por anos fora jogador do Itahum Esporte Clube, frequentava a missa todos os domingos, ia para a Zona do baixo meretrício nos sábados e namorava a filha do Ademir da Casa Agropecuária, mas teve Catarata quando trabalhava na fazenda do seu Antônio Scorched Earth. Depois de desmatar a área e preparar a terra para o plantio, Bartolomeu olhou aquele campo limpo e percebeu que agora o sol brilhava com mais intensidade, foi erguendo os olhos para o céu até olhar diretamente para o sol, as vistas escureceram, depois disso apareceu uma nuvem branca na frente dos olhos e a vista foi enfraquecendo até que ficou totalmente cego. O patrão, o inglês Scorched Earth quis demiti-lo por justa causa, “ficou cego porque olhou pro sol, eu não mandei fazer isso”. Depois de ouvir atentamente seu advogado, fez a demissão e pagou, a contragosto, todos os direitos do trabalhador. Por cinco anos Bartolomeu fez promessa para vários Santos, um dia bateram palmas em frente da casa onde morava com os pobes pais, era o Pastor Manoel, da Igreja Pentecostal Amor e Fé. O pastor o convenceu a ir ao culto dos milagres que acontecia todas as terça-feira, ali Bartolomeu começou uma campanha de nove semanas. Pela fé ele seria curado, pela fé ele doou tudo o que ainda lhe restara do acerto de contas com o patrão Scorched Earth. Ao final das nove semanas estava sem dinheiro, sem a namorada, e continuava cego, as pessoas, quando o viam, meneavam a cabeça e zombavam dele. “É burro mesmo, deu todo dinheiro pro pastor!” A Santinha não pedia dinheiro, todos os milagres que fizera foram de graça, Bartolomeu não tinha dinheiro, nem fé, mas ouviu dizer que Amantino também não tinha fé, e a Santinha apareceu justamente em sua casa. Uma certa esperança renascia em seu coração quando adentrou pela praça, guiado pelas mãos dos pais, também empobrecidos.

Cada passo no meio daquela multidão que o exprimia era uma luta, nada podia ver, os pais criam no milagre e o convenceram a seguir pelo meio da turba, uma mulher caiu na unção sobre ele levando-o junto para o chão arrastando os pais que se desesperavam tentando evitar a queda brusca. O corpo da mulher estava inerte em cima de Bartolomeu. Com cuidado tiraram ele debaixo da mulher e assim seguiram em frente até chegar ao altar onde o presbítero orava. Bartolomeu clamava, como o personagem o personagem bíblico de mesmo nome. O presbítero interrompeu a oração, olhou fixamente para Bartolomeu, impôs as mãos sobre a cabeça e orou fervorosamente, o povo silenciou completamente, estaria prestes a acontecer o maior milagre da Santinha? Ananias orou com intensidade como jamais fora capaz de orar, esperava que Bartolomeu caísse na unção, mas ele se mantinha de pé, atônito tanto quanto o presbítero que agora decidira que seria o momento de declarar a cura, apertou as mãos mais fortemente sobre a cabeça de Bartolomeu e disse: “Eu declaro, em nome da Santinha do Itahum, que este meu filho na fé está curado, e que caia por terra todo o mal!” Dizendo isso, fez um movimento ainda mais intenso sobre a cabeça do Bartolomeu jogando-o ao chão. A multidão, vendo que Bartolomeu caíra na unção, prostrou-se de joelhos diante do presbítero gritando “Aleluia, aleluia!” Da porta da igreja, o padre Márcio via desiludido a sua mais fiel beata, a Marlene, ajoelhando-se diante do altar da Santinha. Aos poucos Bartolomeu conseguiu levantar, esfregou os olhos, a praça estava completamente em silencio, à espera do grito de vitória, mas Bartolomeu só esfregava os olhos, nada via, apalpou ao redor a procura dos pais, segurou na mão direita da mãe e na esquerda do pai, e bradou com todas as forças que tinha nos pulmões: “Você é um filho da puta, canalha como os outros!”


CAPÍTULO DEZESSETE

Ao ouvir o grito de Bartolomeu, o Padre esfregou as mãos satisfeito, “agora a Marlene levanta dos joelhos e volta para a Igreja e os fieis dizimistas também.” O murmúrio do povo e o desespero do Presbítero eram o bálsamo abençoador para esse domingo. Enquanto o cego Bartolomeu se retirava do meio do povo, o Padre Márcio fechava as portas da igreja sorrindo.

O Presbítero Ananias ficou atônito com as palavras duras do cego Bartolomeu. “Logo se vê que não era um homem de fé”. Esse insucesso poderia pôr a perder todo o cerimonial de fundação oficial do movimento religioso Santinha do Itahum, não fosse pela divina intervenção da Santa que inspirou o feirante Josimar. Até então calado e só observando os acontecimentos, o feirante ficava imaginando essa multidão se reunindo na praça em dia de feira, o movimento nas barracas quintuplicaria! Quanto mais as pessoas caiam na unção, mais Josimar se aproximava de onde estava o Presbítero Ananias. Quando o cego Bartolomeu gritou à plenos pulmões e saiu guiado pelos pais, Josimar tomou o seu lugar diante do Presbítero. Se o milagre fosse bem-sucedido iria sugerir a construção de um altar no início da feira, mas agora já não sabia o que fazer. Aguardou pacientemente que o Presbítero falasse alguma coisa ao povo, mas este parecia ter emudecido completamente.

O povo ainda lotava a praça, uns murmuravam contra o presbítero, outros oravam fervorosamente levantando as mãos aos céus, alguns clamavam em um quase desespero pela intervenção da Santinha, ela não deixaria esse povo todo abandonado à própria sorte. A única liderança desse movimento era o recém instituído Presbítero, mas ele estava totalmente abatido, choramingava a um canto. Josimar não queria perder aquela clientela toda à sua frente, ergueu as mãos e gritou ao povo com firmeza, impondo a voz disse muito seguro de si: “Caríssimos fieis da Santinha do Itahum, .... caríssimos... povo da Santinha, ouçam por favor, eu ouvi a voz da Santa, e ela me pediu para comunicar que aqui não é o local adequado para a construção do altar em sua homenagem, o altar deve ser erigido na entrada do Sítio Alvorada onde ela apareceu, é lá que ela faz morada, é de lá que emana o poder para os milagres. Por isso, caros irmãos, fieis da Santinha, no próximo domingo faremos uma procissão até o Sítio Alvorada e lá construiremos o altar para peregrinação de milagres”.

No dia seguinte, bem cedo, se ouvia da casa do Amantino, um barulho que parecia de uma construção. Um caminhão estacionou próximo da entrada do sítio e vozes de trabalhadores entravam casa adentro acompanhadas de outros barulhos de madeira sendo empilhada e ferramentas sendo usadas. Maria José, que desde a semana passada, dormia no quarto de visitas e acordava sempre antes do dia clarear esperava por Amantino com a mesa posta para o desjejum. Mal o dia clareou e o caminhão estacionou, ela ouviu as portas, de um lado e de outro bater e pessoas conversando, mas não deu bola, quando Amantino chegou para o café da manhã ela já expressava preocupação com aquele insistente barulho de trabalhadores em frente do sítio. Amantino ameaçou um sorriso e deu de ombros. “Maria?” Ele disse ‘Maria’ como se dissesse que havia ganho na loteria, os olhos adquiriam uma cor quase azul e o sorriso parecia tão enigmático quanto o da Monalisa. Era um sorriso, mas era como se expressasse um desejo. Maria José ficou pensando que, se Amantino tivesse escrito seu nome desse jeito que acabara de falar, certamente ele acrescentaria três pontinhos, pensou isso e sorriu. “Você falou Maria como se estivesse fazendo uma pergunta”. “Sim, eu resumi todas as perguntas que eu tinha para te fazer em uma única palavra”.  “Maria?” ela repetiu, “agora percebi o quanto meu nome é bonito! Acho que ninguém ainda tinha dito ele desse jeito”. Amantino tomou tranquilamente seu café, daí pediu que mais tarde Maria José fosse saber do que se tratava aquele tumulto em frente do sítio.

 

 

CAPÍTULO DEZOITO

 

“Eles vão fazer um altar”. “Altar? Pra quê?” “Pra Santinha!”. “Maria, deixa eles fazerem o altar, vai ser útil”. Amantino saiu da cozinha e foi preparar mais um canteiro na horta, enquanto isso, os ruídos de construção continuavam invadindo a casa onde Maria José cantarolava uma música, ‘Deixa eles fazerem, vai ser útil’, o que isso significava Maria José ainda não tinha a menor ideia, também ainda não entendera o porquê de Amantino nunca ter tirado o papel de embrulho do quadro da Santinha.

Às oito e meia o feirante Josimar chamou da varanda, Maria José ainda cantarolava, Josimar bateu palmas e chamou outra vez, “já vou”, gritou Maria José da cozinha e a cozinha gritou de volta o mesmo grito dela. O Sítio Alvorada olhava o feirante de todos os lados, parecia censura-lo por estar ali. Da estrada, o altar em construção já o acusava de estar cometendo pecado capital, não era para a Santinha que construía o altar, mas para cultuar seu desejo de lucros com os romeiros. Amantino o ignorava desde a horta, mas isso não parecia uma acusação, o sitiante ignorava qualquer que tentasse lhe falar sobre a Santinha. A esperança era Maria José, ela era a única a quem Amantino ouvia e falava, mas ela o defenderia com a própria vida se preciso fosse. Depois que enfrentou o Padre Márcio com uma faca, ninguém nunca mais tentou se aproximar da horta sem autorização dela, e nem com autorização, que ela nunca autorizou ninguém a ir até lá para falar com Amantino. Da cozinha mesmo Maria José gritou outra vez: “Pode fazer o altar da Santinha, se quiser, vai ser útil! Agora vai que estou muito ocupada aqui”.

Josimar ficou pensando se tinha mesmo entendido o que Maria José dissera, o que estava construindo não era um altar, mas uma barraca onde pretendia vender seus produtos para os romeiros. Queria que Amantino soubesse disso e que o altar só seria construído com a autorização dele e com a indicação do lugar mais adequado, Amantino era a pessoa mais importante desse processo, a Santinha só aparecera para ele e na casa dele. Se Amantino quisesse, ele poderia ser o líder dessa Seita! Se cobrasse dízimo ficaria rico muito rápido! Chamou a Maria José mais uma vez para lhe explicar que o altar ainda não estava sendo construído e que ela deveria falar com Amantino, mas ela se recusou a sair da cozinha, “Eu não vou aí perder o meu tempo, já disse que o altar pode ser construído e que vai ser útil. Agora sai daí e vai trabalhar que eu preciso de silêncio, tenho muito trabalho para fazer, preciso deixar a casa bonita para o Amantino” e continuou a cantarolar.

Sem mais argumentos, Josimar virou-se e deu alguns passos em direção à estrada e parou, olhou em direção da horta e avaliou o risco. Valeira a pena? Josimar não era o Padre Márcio, era amigo de Amantino de longa data, tinham negociado juntos por muito tempo, havia confiança entre eles, apesar do caso com a mulher dele, ex-mulher já que ela desaparecera. Seria melhor se falasse com ele, não era só a Seita da Santinha, era a possibilidade de iniciar ali um negócio muito rentável, Amantino poderia se interessar. Sim, valeria a pena! De mais a mais, Maria José parecia mesmo muito ocupada deixando a casa bonita para Amantino e talvez nem perceberia ele avançando pelo quintal. Virou-se, olhou firmemente para o rumo da horta, respirou fundo, encheu-se de coragem e avançou quatro passos, mas congelou apavorado por que da varanda Maria José estendera o braço direito com a faca de carnear na mão avisando: “Mais um passo e eu arranco teu pescoço!”

Às onze horas, pontualmente como sempre, Amantino tirou as botinas e adentrou pela casa para tomar banho e trocar de roupas, Maria José cantarolava uma música qualquer, Amantino prestou atenção no ritmo e assoviou as notas da música, Maria José tirou a panela de arroz do fogo, deixou o pano de cozinha sobre a mesa e se aproximou dele, ainda cantarolando, sorriu, Amantino também, ela disse: “Acho que podemos formar uma boa dupla!” Amantino sorriu outra vez e fez um sinal com a mão indicando para ela e depois para ele mesmo, “Já somos uma boa dupla, só falta registrar”.

Depois do almoço Amantino disse que ia tirar uma soneca e pediu que Maria José fosse falar com Josimar e pedir que ele viesse tomar um café às três da tarde para falarem sobre a construção do altar e também sobre os cultos à Santinha. Maria José foi desarmada até a obra para falar ao Josimar, disse a ele que o Amantino o esperava para o café das três e que queria lhe falar sobre “tudo isso”, Josimar questionou se ela iria autorizar que falasse com Amantino, ao que ela respondeu que não se preocupasse, porque a faca de carnear estava bem guardada.

“Entra Josimar, vem tomar um café com leite, tem pão caseiro, melado, mel e nata, tem também um bolo de cenoura que a Maria fez”. “Agora eu acredito, a Santinha faz milagres mesmo!” Josimar sentou-se à mesa e, razoavelmente constrangido, tomou o café com leite, comeu o pão caseiro com melado e nata e comeu também o bolo de cenoura, enquanto refletia sobre a proposta do Seu Amantino.

Não dá para dizer que Seu Amantino seja lá um grande negociador, nascido e criado na roça, tudo o que aprendeu foi plantar e vender os excedentes para atravessadores como Josimar. Mas, depois que Esmeraldina foi embora e Amantino teve a crise depressiva e concordou em arrendar quase tudo que tinha, aprendeu que arrendamento parece ser um bom negócio, ou outros trabalham e ele ganha. Agora estava ali, diante de uma oportunidade de arrendar algo que era seu, ainda que fosse só uma ilusão, todavia, essa ilusão tinha o poder de mobilizar multidões com a promessa dos milagres. “Quem não quer um milagre?”

Amantino era homem de caráter, não faria nada para enganar as pessoas, então disse que a Santinha decididamente não existia, tudo que acontecera fora só ilusão, nos primeiros dias que sentiu a presença da Santa acreditou piamente, mas depois que foi melhorando do seu estado emocional, reconheceu que quem fez o milagre verdadeiro em sua vida foi mesmo Maria José, se alguma santa naquela casa existia, então ela estaria, neste exato memento lavando roupas na varanda. “Então a Santinha é só uma ilusão?” “Isso mesmo, não existe nenhuma Santinha do Itahum, e nunca existirá”. Josimar afastou a cadeira, abriu os braços sobre a mesa, fechou a mão direita deixando o dedo indicador adiante em direção do Seu Amantino e afirmou convicto: “Então vamos vender uma ilusão porque a Santinha do Itahum existe sim, e vale muito dinheiro”.

 

 

 CAPÍTULO DEZENOVE


Josimar concordou em arrendar parte do Sítio na lateral da estrada, próximo da entrada para a casa do Seu Amantino e ali construiu sua barraca, também concordou em adquirir os direitos de uso da imagem da Santinha do Itahum, pela qual pagou à vista vinte e cinco mil reais e mais cinco prestações de três mil, com esse valor Amantino prometeu que faria uma reforma na casa, e assim o fez. Josimar queria comprar também o quadro com a pintura da Santinha, mas Amantino não aceitou que fizesse qualquer proposta, “Isso é uma obra de arte, não posso vender”. Josimar insistiu para ver a pintura, mas Amantino disse que nem ele mesmo ainda vira e, talvez nem ele nem ninguém nunca veria.

Ainda discutiam sobre a pintura quando chegou seu Anísio, o vizinho que arrendara as terras de lavoura, esfregava os olhos e parecia desconfortável, cumprimentou Seu Amantino e também Josimar e falou do que sentia. “Seu Amantino, eu soube que o senhor teve problema nas vistas, que era catarata, eu queria saber o que o senhor fez para se curar”. “Catarata? Bem eu...” Se Amantino interrompeu a frase no meio porque se lembrou de quando sentiu pela primeira vez aquela ‘cegueira’, foi enquanto olhava para a fazenda do Inglês Scorched... “Eu estava trabalhando lá perto da divisa do Scorched”, continuou Seu Anísio, “fiquei olhando aquela imensidão de terras sem nenhuma árvore, e o sol brilhando como se fosse uma fogueira nos meus olhos, depois disso em passei a enxergar uma nuvenzinha cinzenta na frente do meu olho esquerdo. Será que é catarata?” Se era catarata ou não Seu Amantino não saberia dizer, talvez fosse, talvez pudesse ser que os óculos estavam sujos, mas que a desgraça da lavoura do Scorched tinha a ver com isso não havia dúvida.

Josimar ponderou que a fazenda do Inglês poderia estar disseminando um mal espiritual e aproveitou para informar que já estava construindo um altar na entrada do Sítio Alvorada e que ali haveria culto em louvor à Santinha no próximo sábado. “Vamos colocar toda essa situação do Scorched em oração, tenho certeza que a Santa vai limpar todo o mal que pode estar vindo de lá”.

Seu Anísio olhou desconfiado para Josimar, daí perguntou para Amantino se ele tinha intenção de construir um altar e fazer culto para a Santinha, Amantino disse que isso era com o Josimar, ele não tinha mais nada a ver com a Santa. “Mas tem um altar na tua casa, não tem?” “Tinha”, disse Anantino, e continuou “a Santa agora pertence ao Josimar”, e pediu que Seu Anísio lhe entregasse os óculos, entrou em casa e limpou-os com o produto que o médico lhe receitara e devolveu para Seu Anísio na esperança de que a catarata sumisse, Seu Anísio agradeceu por enxergar melhor, mas ainda reclamou da nuvem. “É, então das duas uma, ou você vai no culto e pede um milagre para a Santinha ou você vai ao oculista e marca uma cirurgia, não sei qual vai sair mais barato. O certo é que precisamos denunciar o Scorched, ele vai ter que plantar árvores e reflorestar aquele terreno!”


CAPÍTULO VINTE

 

Enquanto o altar ia sendo construído na beira da estrada, Amantino ia destruindo o altar na sala da casa, onde por algum tempo cultuou a Santinha do Itahum e dedicou suas orações com fervor. Tirou as flores uma a uma e as guardou cuidadosamente em uma caixa de papelão que Juvenal trouxera do mercado, tirou a toalha branca que cobria a mesa do altar e a deu para Maria José lavar e guardar na gaveta, levou as flores para fora de casa e as descartou próximo da horta. De volta para a sala, tirou a mesa do altar e a levou para o galpão onde a desmanchou cuidadosamente, demonstrando respeito pelo tempo que dispensou diante do móvel. Sim esse altar cumpriu um papel importante na recuperação da sua saúde mental, depois que Esmeraldina se fora e um vazio insuportável tomou conta da sua alma, Seu Amantino encontrou consolo orando diante do altar. Mas, com a chegada de Maria José tudo mudou, o vazio que sentia foi sendo preenchido pela presença dela e o altar começou a perder sentido, com o tempo foi percebendo que o altar fora só uma ilusão e que ele fizera foi substituir Esmeraldina pela figura invisível da Santinha.

Amantino e Maria José conversavam sobre isso logo na manhã seguinte enquanto tomava chimarrão. “Mas, e o quadro que o pintor veio trazer, o que ele significa e, por que você ainda não o desembrulhou?” Amantino encheu a cuia de água quente e passou-a para Maria como se passasse uma grande responsabilidade a ela, esse assunto o incomodava e Maria José já percebera isso, mas agora que o altar deixara de existir... “Eu nunca quis falar disso porque a Santinha veio para preencher o vazio que a Esmeraldina deixou, e colocar uma pintura no altar e como preencher o altar com uma figura no lugar da Santinha, era exatamente o fato de ela ser invisível que fazia sentido ela ser Santa. Quando o pintor deixou a imagem, eu entendi que não fazia sentido adorar uma imagem feita por um homem, uma imagem é frágil, pode facilmente ser destruída, queimada ou jogada fora por qualquer um, uma Santa só tem poder se ela for invisível, por isso ela é superior a qualquer ser humano. Essa imagem não pode nunca ocupar um altar, então eu não quero nem ver, vou queimar ela”.

Maria José aguardou o dia todo pela fogueira que Amantino faria para condenar a imagem, mas a Santinha resistia firmemente dentro do embrulho à um canto da garagem e ali guardava seu Fiat Uno. Amantino continuava cuidando da horta e do galinheiro, a cada semana entregava os produtos para serem comercializados por Josimar na feira de Itahum, mas essa semana Josimar encomendara mais produtos porque, além da feira de Itahum, ainda tinha a procissão de inauguração do altar da Santinha e muita gente acorreria ao santuário, era preciso aproveitar a oportunidade e ter um lucro extra com a barraca.


CAPÍTULO VINTE E UM

 

 “Olha, o Sol está vestido de santidade!” O olhar infinito do Presbítero Ananias levou ao céu os rostos de uma centena de fiéis que se aglomeravam na praça, ansiosos pelo início da romaria. O dia que agora mostrava seu Sol vestido de santidade, amanhecera fresco e úmido, uma névoa encobria a pequena Vila de Itahum e quando o Sol dispersou seus raios através da neblina formando uma auréola em seu redor, um verdadeiro espetáculo de santidade fez centenas de peregrinos dobrarem seus joelhos ao chão enquanto murmuravam rezas inúteis diante do deus Sol.

Josimar tomou o microfone das mãos do Presbítero Ananias e convocou o povo à romaria, aconselhando que cada um se certificasse de estar com boa reserva de água para o caminho e sobrinha para se protegerem do sol, e indicou ao motorista do carro de som que iniciasse a jornada. Em cima do carro, além de Josimar e do Presbítero, também estava Leopoldo da Cruz, microempresário do ramo de móveis usados e patrocinador do carro de som. A multidão que ocupava a praça aos poucos foi enchendo as ruas e, a passos ritmados chegarm à rodovia onde seguiram pela lateral da estrada asfaltada até chegarem à estrada vicinal de terra, dali para frente seguiam pelo eixo principal da estrada até chegarem, exaustos, ao Sítio Alvorada onde uma barraca com suprimentos os esperava para o lanche de almoço à um preço razoável.

A única barraca autorizada a vender alimentos e bebidas aos romeiros foi a “J. Santíssima da Fé”, de propriedade do Josímar. Também foram autorizados a se instalar ali a barraca de bugigangas da Maria da Conceição e a barraca de “Óleos da Unção da Santinha do Itahum”, pertencente a um primo de Josimar. Pouco se vendeu na barraca de bugigangas, mas na de alimentação e na de óleo da unção o lucro foi extraordinariamente grande, um verdadeiro milagre da Santinha!

Às duas horas da tarde o Presbítero chamou o povo para a inauguração do altar com as devidas orações, cânticos religiosos e testemunhos de milagres. Enquanto a multidão se aproximava, as irmãs Salete e Elizabete cantavam músicas gospel de cantores famosos como Aline Barros e Fernanda Brum. Alguns retardatários que não conseguiram acompanhar os romeiros em bando ainda chegavam, assim também outros que saíram atrasados de Itahum iam chegando aos poucos e compravam seus lanches na tenda J. Santíssima da Fé e asseguravam a bênção comprando o Óleo da Unção da Santinha do Itahum.

Com o povo organizado na estrada em frente do altar, Josimar falou do emprenho da grande equipe que deslocara para ali durante toda a semana para a construção e, também, do elevado custo que a obra demandara e que ele, movido pela fé na Santinha, e confiante na boa vontade de cada romeiro ali presente, se dispunha a, em nome da nova igreja que ali nascia, antecipar todas as despesas. Disse estar feliz com a obra que realizara e tinha a certeza de que muitos milagres ainda se realizariam nesse lugar, e para provar o que dizia, abriu a palavra para quem quisesse testemunhar da graça recebida na última semana por intercessão da Santinha. Não vou narrar aqui todos os depoimentos para que o texto não se alongue desnecessariamente, mas é bom que se diga que mais de dez pessoas subiram ao altar para agradecer à Santa pelas bênçãos milagrosas que receberam e prometeram contribuir fielmente para nova igreja.

Concluídos os testemunhos, o Presbítero Ananias rezou emocionado em agradecimento aos feitos da Santinha e disse que seria o primeiro a se comprometer financeiramente com a obra e daria fielmente seu dízimo e ainda ofertas no altar, daí enfiou a mão no bolso e tirou de lá duas notas de RS 50,00 e as depositou no Gazofilácio. Josimar tomou o microfone e impondo as mãos sobre a cabeça do Presbítero o apresentou à Santinha como um herói da fé, daí se dirigiu ao público e fez um discurso emocionado falando de como esse povo fiel poderia, hoje mesmo, contribuir para quitar a dívida da igreja com a obra empreendida para esta data. Disse ainda, que com a contribuição dos dízimos e das ofertas voluntárias de cada um ali presente, se iniciaria a construção da igreja, ali mesmo no Sítio Alvorada e apresentou o Gazofilácio diante de todos e pediu que neste momento cada um contribuísse com o que tivesse, mas que a cada mês, durante o culto mensal, todos deveria dar dez por cento de toda a renda para o crescimento da obra da Santinha e para o pagamento das despesas pessoais do Presbítero e do Presidente da nova igreja, ele mesmo!

Um princípio de tumulto se formou quando Seu Anísio adentrou pelo meio do povo montado em seu cavalo, avançou até se aproximar do altar, tirou a carteira cheia de dinheiro do bolso e mostrou para Josimar dizendo: “Eu te conheço, Josimar, e aqui está minha oferta generosa, mas eu só a dou depois que a Santinha curar a catarata do meu olho esquerdo”.

Da varanda de casa, Amantino abraçou afetuosamente Maria José e sussurrou em seu ouvido: “Nem por todo o dinheiro do mundo uma santinha que não existe será capaz de curar o Anísio!”



CAPÍTULO VINTE E DOIS


A semana começou com sol quente e temperaturas em elevação, mas a previsão de chuvas indicava possibilidade de ventos mais fortes durante o dia, e isso preocupava Amantino, porque a Maria foi para a Cidade dirigindo o Fiat Uno, para uma consulta com o médico ginecologista e acabara de avisar que o médico estava atrasado e por isso não daria para fazer as compras de manhã, então ficaria até mais tarde na cidade e só voltaria no final do dia para casa.

Depois de reforçar as amarrações do sombrite sobre os canteiros, Amantino tratou as galinhas e aproveitou para fazer uma limpeza no galinheiro, recolheu todo o esterco das camas das galinhas e levou para o monte de palhas de milho e restos de grama que amontoara atrás da horta, misturando tudo para fazer composto orgânico que serve de adubo para os canteiros. Quando guardou o carrinho de mão no galpão, ficou olhando longamente para a garagem, agora vazia já que Maria tinha ido para Dourados. A garagem vazia fez Amantino sentir uma certa tristeza, ali parece ser sempre um lugar para um Fiat Uno. Por alguns anos era o lugar do seu próprio Fiat, mas Esmeraldina o levara embora. Talvez se ele não tivesse ensinado ela a dirigir, quem sabe ela ainda estaria ali... .

Na parede da garagem viu o quadro da Santinha embrulhado num papel rosa. Foi depois que Esmeraldina sumiu que a presença sobrenatural da santinha lhe aparecera, a divindade ocupara o lugar da Esmeraldina e consolou Amantino até que Maria José viesse morar na casa dele. Mas, nem a santinha e nem Maria José foram capazes de consola-lo completamente, a santinha só ficava, invisível, no altar da sala, Maria José perambula pela casa e lhe faz companhia, mas a cama, a metade dela ainda continua vazia.

Há alguns dias Amantino vem fazendo planos desse casar com Maria, mas, quando vê, como hoje, a garagem vazia, parece que o vazio deixado por Esmeraldina não pode ser preenchido nem por milagre da santinha que já não existe mais, nem por Maria José, a menos que se case com ela.

“A alegria e a tristeza se parecem com esse dia, tem um sol bonito de manhã, mas a previsão é de chuva e ventos fortes!”. Amantino carregou esses pensamentos para dentro da casa vazia e preparou o seu almoço, não tinha apetite, mas comeu assim mesmo, depois guardou as sobras na geladeira e foi dormir, o sono da tarde é sempre reconfortante! Demorou um pouco para pegar no sono, mas quando dormiu só acordou às três da tarde com o tempo carrancudo. Ventava e tinha nuvens pesadas no céu que traziam consigo relâmpagos e trovoadas assustadoras.

Amantino estava assustado, com hora, com o tempo, com Maria José, com a chuva, os raios, tudo era assustador e não adiantava mais orar par a santinha, ela não existia e não existindo nada poderia fazer. Cuidou de fechar a casa e foi para a área de serviço recolher tudo que estivesse solto por lá. Quando acabou de tirar a toalha da mesa, ouviu um barulho de carro e percebeu que era um Fiar Uno e ficou aliviado de Maria José ter chegado antes que o tempo piorasse. O Fiat Uno segui direto para a garagem, mas em vez de Maria José, quem o dirigia era um estranho que logo correu em direção da casa e entregou as chaves para Amantino. “O que aconteceu com a Maria?” Foi só o que Amantino conseguiu gaguejar. “Maria? Não sei de quem o senhor está falando. Eu só trouxe o carro da Esmeraldina, ela pediu para eu devolver ele para o senhor”. Entregou as chaves e foi embora pois seu amigo o esperava na entrada do sítio para lhe dar carona de volta para Dourados.

Um relâmpago rasgou o céu e um trovão fez tremer o universo, Amantino olhou firmemente para o Fiat Uno e o reconheceu, as pernas bambearam, a cabeça fez o sítio girar e os olhos turvaram, Amantino caiu sobre a mesa e escorregou sobre ela tentando segurar-se, mas as forças se esvaíram e ele caiu ao chão, meio consciente, meio inconsciente, chorou copiosamente. Aos poucos foi se recuperando, então orou fervorosamente à santinha clamando por misericórdia, mas daí lembrou que a santinha não existia, quis orar aos santos, mas não acreditava neles também, então olhou para o tempo que agora despejava intensa chuva com trovoadas e pensou que talvez existisse um Deus por trás de tudo isso. Amantino apoiou as mãos no chão e ergueu-se devagar, dobrou as pernas e pôs-se de joelhos, ergueu os braços aos céus que agora lhe pareciam pavorosos, e clamou a esse Deus que talvez exista e que governa toda a natureza, o natural e o sobrenatural. “Deus do céu, se tu existes mesmo, então me diga onde está a Esmeraldina”. Um raio desceu do céu e rasgou ao meio o ipê amarelo que sombreava a garagem nos dias de sol.



CAPÍTULO VINTE E TRÊS

No final da tarde ainda existiam muitas nuvens pesadas no céu e o dia findava tristemente no Sítio Alvorada quando Maria José encostou o Fiat Uno atrás do Fiat Uno que já ocupava a vaga da garagem, reconhecendo imediatamente que o carro ali estacionado era o mesmo que Esmeraldina havia levado quando desapareceu. “Será que voltou?” De dentro do carro, olhou para a casa, mas nenhum movimento percebeu. Desceu receosa, abraçou o tanto de compras que conseguia levar e entrou na cozinha, onde Amantino a esperava aflito. Da porta, e com as compras nos braços, perguntou: “Ela voltou?” Os olhos vermelhos denunciavam tristeza, Amantino quis ser amável, o corpo todo tremia, ergueu uma das mãos e indicou a porta, “Maria, você precisa ir embora”.

Maria José foi até o quarto e colocou na mala todas as lembranças desse tempo na casa de Amantino, cada manhã quando tomavam chimarrão, cada hortaliça que ele trazia para a cozinha, cada frango criado no galinheiro, cada riso e até os planos, alguns ditos, como o de produzir mais verduras e galinhas para vender pro Josimar, e os não ditos, planos de formar uma dupla sertaneja com Amantino e viver junto dele para sempre. A mala estava cheia, mas algumas roupas e sonhos ainda precisavam de lugar, as roupas, pôs numa sacola, os sonhos, preferiu deixar ali mesmo, “eles não servem para nada fora dessa casa”.

Atravessou a cozinha e deitou a mudança na porta, olhou desesperada aquele homem reduzido às cinzas e disse: “Amantino, eu não vi a Esmeraldina, ela voltou?” Amantino mal respirava, afogara-se em suas próprias lágrimas, Maria José tinha mais dó dele do que dela mesma, aproximou-se, afagou seus cabelos, tentou abraçar o que restava de uma cabeça que há poucas horas era de gente. “Ela vai voltar!” foi tudo que ele conseguiu dizer, e desabou sobre a mesa. “Eu fico com você e, se ela voltar, então eu vou embora...”

Quando o dia amanheceu e Maria José já estava com o chimarrão preparado, chamou por Amantino, mas ele não apareceu. Maria José pôs a mesa e fez o café, ferveu o leite e preparou o desjejum, tudo ficou sobre a mesa à espera de que Amantino ainda estivesse vivo e aparecesse para desfrutar do dia que amanhecera com sol quente. Amantino não saiu do quarto, mas Maria José saiu da cozinha porque um carro parou em frente da casa e alguém bateu palmas. Era um homem bonito, bem vestido, usava um terno e gravata e tinha nas mãos um envelope tamanho ofício e perguntou por Amantino, Maria José disse que ele não podia atender porque estava doente, de cama. Então o homem se apresentou dizendo que era advogado e que trazia o pedido do divórcio da sua cliente e precisava que ela assinasse o protocolo de recebimento do documento. Maria José titubeou um minuto, não queria assinar, pediu um tempo e entrou em casa.

A claridade do sol contrastou com a pouca claridade de dentro de casa e Maria José esfregou os olhos, depois ligou a luz para clarear o ambiente e as ideias. Pensou em como daria a notícia para Amantino, fechou a porta decidida a não fazer nada, nem dar a notícia nem voltar para fora. Muito lentamente começou a limpar as louças que estavam sobre a pia, depois pegou uma vassoura e, mais devagar ainda, começou a varrer a sujeira até a porta, mas daí lembrou-se do homem de gravata e guardou a vassoura na dispensa. Do quintal, o advogado gritou: “Senhora, já é hora de receber o documento. Caso a senhora se recusar, eu terei que mandar pelo cartório, daí vai custar mais caro”. Maria José abriu uma fresta da porta, parecia aliviada! “Então o senhor faz o favor de mandar pelo cartório, que vai ficar mais barato do eu receber isso aqui”. Fechou a porta novamente e só a abriu outra vez depois que o barulho do carro desapareceu pela estrada a fora.

Com o quintal livre de advogados, Maria José abriu a casa outra vez o viu o sol que brilhava do lado de fora. Daí foi até a mesa e preparou o desjejum numa bandeja e levou para Amantino que ainda se lamentava para o travesseiro. “Não entra aqui, Maria, eu não quero você no meu quarto”. “Acontece, Amanrino, que eu já entrei, e daqui só saio depois que você comer esse pão com melado e nata e tomar essa xícara de café que eu fiz pra você com todo amor e carinho”.



CAPÍTULO VINTE E QUATRO



POVO ELEITO

  Olá, boa noite! Sim, neste momento em que escrevo estas mal traçadas linhas é noite, e do dia dois de julho e está frio aqui na cidade d...