PARTE 1 - O RESTAURANTE
Dourados é
uma cidade universitária, por isso atrai uma grande quantidade de jovens de
vários estados que vêm estudar, muitos desses jovens gostam mais de bares e
restaurantes do que dos bancos da faculdade! Nada que seja proibido, é até
incentivado pela grande quantidade de estabelecimentos que se espalham pela
cidade, muitos em ruas próximas do centro. Na rua Ponta Porã, um pouco afastado
dessa muvuca fica o Ristorante e Pizzeria do Gringo, que
atende um público um pouco diferenciado, moradores antigos da cidade preferem
um som ambiente mais calmo para beber e conversar, e saber que quando falam serão
ouvidos, o Ristorante fica lotado,
especialmente nos finais de semana.
José é um pacato
cidadão, apesar de nunca ter entrado no Gringo, já passou em frente muitas
vezes, até parou uma vez na porta para ver como era lá dentro, quando o garçom
lhe perguntou se queria entrar, pediu uma informação qualquer e saiu. Uma
semana depois voltou ao restaurante e pediu que lhe trouxesse uma garrafa de
água, o garçom convidou para que entrasse e ficasse à vontade, mas José
preferiu ficar na porta e observar. Tudo o que queria era saber como as pessoas
se comportavam naquele lugar. “É o espelho do mundo, mas não vejo o reflexo de
mim”. Uma moça que entrava virou a cabeça pensando que José tinha lhe falado,
mas ele saiu, o namorado puxou-a para dentro e foram sentar-se à uma mesa onde
já estava outro casal à sua espera.
O carro do José,
um Ford KA, recebeu as mãos suadas do dono sobre o capô e ficou esperando que a
chave fosse enfiada na porta para liberar as travas e permitir que aquela
timidez toda entrasse e tomasse conta da direção. Mas os olhos do dono estavam
baixos demais para qualquer movimento das mãos. Enquanto isso, bem diante dos
olhos do Ford KA, duas mulheres acendiam seus cigarros e reclamavam da solidão
em meio a tantos homens solteiros loucos por um encontro. “O Cupido deve estar
de folga, ou bebeu demais na muvuca
dos estudantes no Centro”. A loira, que acendeu o cigarro primeiro e aparentava,
assim como a outra, uns cinquenta anos, deu uma baforada longa e soprou para o
alto, deixou os olhos subirem com a fumaça, então exclamou com sua pele tristemente
branca: “Se eu fosse uma índia, faria um sinal de fumaça”.
Acabada a
fumaceira e dispensadas as bitucas,
as duas mulheres, dotadas de pelo menos cinquenta anos de sabedoria, deram-se
aos olhares dos muitos homens solteiros que bebiam cervejas e comiam pizza recheadas
de risos, conversas animadas e olhares fugidios. A mesa ainda estava lá,
disponível, então sentaram-se e encomendaram a janta e fizeram um brinde à
solteirice. “Viva!” José continuava lá fora, com a certeza de que ali, naquele
restaurante, bebia o seu desejo de relacionamento. Entrou no Ford KA e
sentiu-se abraçado pelo sinto de segurança, abraçou o volante e sentiu um forte
desejo de fazer um acordo com o Cupido e entrar no restaurante. Corou o rosto
de vermelho e pensou que melhor seria ir para casa, os sonhos não seguem
nenhuma regra, mas entrar no Ristorante, ah, isso seria uma loucura!
PARTE 2 - UMA MULHER BONITA DE UNS CINQUENTA ANOS
Janice é uma mulher dessas que se pode chamar de culta, fez faculdade de filosofia na Universidade Católica de Campo Grande na década de 1.990, quando conheceu o Eduardo, jovem estudante de economia da Universidade Federal. Ambos se formaram em 1996, dois anos depois iniciaram juntos o curso de Letras, Janice queria ser professora, enquanto Eduardo sonhava com a carreira de escritor e já dava seus pitacos no Jornal Correio do Estado, publicando suas crônicas. Nessa época os cabelos da Janice ainda eram loiros e passavam do meio das costas, quase até a cintura.
O casamento foi em 1.999, logo depois
que Janice conseguiu seu primeiro emprego de professora de filosofia numa
escola particular. Fã de Proudhon e Bakunin por influência do agora marido,
recebeu sua primeira observação sobre suas aulas ainda no primeiro semestre
letivo. O diretor pedia que fosse dado menos ênfase aos movimentos anarquistas,
era um pedido de alguns pais de alunos que entendiam que a escola não podia se
colocar ideologicamente na contramão do neoliberalismo e da globalização,
importante ideário do desenvolvimento capitalista mundial. A professora Janice
tinha os cabelos ruivos que chegavam até quase o meio das costas.
As letras levaram Eduardo ao
jornalismo e nas horas vagas continuava a escrever seus contos e crônicas. O
casamento ia bem e os gêmeos nasceram em 2005. Quando Joãozinho e Marcinha
fizeram o terceiro ano de idade, as professoras da escola organizaram uma
festinha, Janice levou bolo, bolachas, salgados e refrigerantes e convidou os
pais dos coleguinhas dos filhos para comemorar o aniversário dos gêmeos.
Eduardo estava cobrindo o noticiário de um acidente grave ocorrido a pouco
entre um trem e uma van escolar e só chegou quando a festa tinha acabado e os
pais já tinham quase todos ido embora, ficando apenas a Janice que conversava
animadamente com o Vicente, pai das meninas Júlia e Lorena que tinham um e dois
anos mais que os filhos dela. A conversa estava tão animada e eles estavam tão
próximos um do outro quando Eduardo chegou, que Janice corou completamente ao
vê-lo, Eduardo sorriu, cumprimentou Janice com um beijo e entrou na conversa
com o mesmo ânimo dos dois, fazendo perguntas e rindo e falando do seu trabalho
e das crônicas e contos que escrevia. Em casa, Janice não sabia como se
comportar, Eduardo percebeu o desconforto da esposa e tratou de acalma-la
dizendo que não se preocupasse, ele confiava nela e ‘aquilo’ serviria para sua
próxima crônica. “Estava mesmo precisando de alguma inspiração”.
Depois desse episódio, o amor entre
ele se fortaleceu e a confiança também, Eduardo tinha admiradoras do seu
trabalho com quem se relacionava amigavelmente, Janice também tinha seus
admiradores e nem um nem outra demonstravam ciúmes por causa disso. Um dia
Janice disse se sentir bem com essa liberdade, ao que Eduardo respondeu rindo:
“Somos anarquistas!” Eduardo lançou seu primeiro livro de Contos em 2.015, em
2.020 publicou um romance e em 2.023 o segundo romance, este já em Dourados um
ano depois da mudança. Janice continua lecionando filosofia, continua bonita,
mas agora os cabelos são castanho-claro e compridos até os ombros. Joãozinho e
Marcinha estão se preparando para o vestibular. Os pais encontraram uma
pizzaria muito legal na rua Ponta Porã e sempre vão lá. Sábado passado
reservaram uma mesa, mas ao se sentarem
o telefone tocou e Eduardo teve que sair às pressas para o Jornal de onde só
saiu uma hora depois, Janice ficou, continuou tomando a cerveja que tinham
começado e enquanto esperava pela volta do marido, o garçom lhe disse que “o
cara que você estava esperando chegou”.
ÓTIMO, TEXTO
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