Translate

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

CHIFRE EM CABEÇA DE CAVALO. EXISTE? EXISTE!

 



Já botei no título o que poderia ser uma mentira, a ciência diz que cavalos não tem chifre, nem as éguas, mas na fazenda do Romero, que fica na fronteira do Brasil com a Bolívia, foi visto uma égua com chifre, um só é verdade, mas era um chifre, e quem viu foi a dona Mineirinha, como era, e ainda é conhecida a mulher do Romero. Só para constar, o nome da Mineirinha é Reinalda Silva Romero. Antes de se casar se chamava Reinalda da Silva Valenzuela, boliviana, filha de pai imigrante fugido da Venezuela quando os militares massacravam o povo pobre que promoveu o Caracazo, em 1989. Juan Valenzuea, o pai da Mineirinha, tinha participado do movimento em repúdio ao governo de Carlos Andrés Pérez, mas se livrou do massacre fugindo para a Bolívia, onde se empregou numa fazenda de gado no município de Puerto Quijarro, casou-se com Josefa de Arenque com quem teve seis filhos, entre eles a belíssima Reinalda.

Puerto Quijarro fica muito perto do Brasil e é comum os moradores de Corumbá atravessarem a fronteira para comprar produtos naquela cidade boliviana onde roupas e calçados são vendidos a preços mais baratos que do lado de cá da fronteira seca. Só oito quilômetros separam a cidade boliviana da brasileira e até a cavalo se percorre essa distância com grande facilidade. Há três anos, Romero fez esse trajeto em seu cavalo Rufino, não era a primeira vez que atravessava para o outro lado da fronteira, mas foi a primeira vez que voltou enamorado, perdidamente enamorado! No balcão da loja de calçados onde fora comprar botinas novas para as festividades de São João, dois olhos lhe sorriram um sorriso encantador, os cabelos negros roçando seus pés enquanto a moça o ajudava a calçar a botinas pareciam prende-lo pelo tornozelo, mas era o coração que já não podia libertar-se daquele corpinho castelhano feiticeiro. “Como te chamas?” Perguntou Romero confessando as emoções no rosto corado, a voz trêmula e sem saber o que fazer com as mãos. “Mi nombre es Reinalda, pero puedes llamarme Reída”. “Eu sou Romero, eu tenho uma fazenda de cavalos”.

Se era mesmo uma fazenda como queria Romero ou apenas um sítio como queiram os vizinhos, isso pouco importa. Interessa saber que Romero criava mesmo os cavalos, e eram de qualidade. O sítio, ou fazenda, como quiser, tinha cinquenta alqueires com uma boa pastagem, piquetes bem definidos por cerca de arame liso, boas instalações para os cavalos e um rio de águas muito limpas fazendo a divisa com a fazenda do Seu Firmino, criador de gado nelore. Romero, agora com 25 anos de idade, mora numa casa grande herdada dos pais falecidos num acidente de carro há menos de um ano, aliás toda a fazenda fora herdada, Romero era filho único, nascera ali e ali pretendia morrer quando a hora chegasse, mas antes de morrer queria se casar e ter filhos, pelo menos quatro. Quatro filhos era também o sonho do Pai, mas depois que o pequeno Romero nasceu, a mãe teve um tumor no útero e teve que o retirar, impossibilitando assim a chegada dos outros três filhos planejados pelo marido. Agora, Romero poderia realizar o sonho do pai, se Reída concordasse.

Reída, que ficara pelo menos uns quinze minutos entre a porta da loja de calçados e a calçada em frente, depois que Romero saíra de sua presença com as botinas no alforje do cavalo Rufino, já não pensava mais em ser gerente da loja, os sonhos viam campos verdes e cavalos, mitos cavalos, Campeiro, Lavradeiro, Campolina, Mangalarga, Mangalarga Marchador, Pampa, Pantaneiro, Pônei... e em todos eles estava montado Romero, menos no Pônei, neste estava uma criança. Seu filho? Estava vendo o destino? Teria um filho com Romero? Se casaria com esse moço que viera comprar um par de botinhas novas para festa de São João? Se Santo Antônio estiver olhando para a Bolívia agora... Quem sabe!

Estava! Santo Antônio estava mesmo olhando para Puerto Quijarro, ou talvez para a fazenda de cavalos em Corumbá, o certo é que um ano depois Reída dobrava cuidadosamente a certidão de casamento com seu novo nome: Reinalda Silva Romero. Mas logo foi apelidada de Mineirinha por causa dos belos queijos que fazia e dos pães de queijo que assava no fogão à lenha. Exatos nove meses após a festa de casamento nasceu João Ricardo que agora está encantado com a irmãzinha Janaina que nasceu dia 13 junho de 2.023, dia de Santo Antônio. Mineirinha continua vendo cavalos, muitos cavalos, principalmente os Mangalarga Marchador que o marido amansa e treina para vender. João Ricardo ganhou um pônei de presente de aniversário, mas só vai andar nele quando estiver mais crescido. No dia do seu aniversário, que foi 17 de abrilo, Romero deu a égua Rina de presente para a esposa e ela sempre arruma um tempinho entre os queijos e pães de queijo para montar nela e dar uns galopes. Semana passada ela viu algo estranho, muito estranho enquanto galopava quase na divisa com as terras do Seu Firmino que ficavam do outro lado do rio.

O marido tinha saído há três dias para fazer negócios de cavalos em Campo Grande, mas chegara da viagem ontem, mesmo dia que Seu Firmino viajara para Dourados, para participar da Expoagro, onde tencionava comprar um lote de bezerros nelore. Sempre que Romero viajava e ficava quatro ou cinco dias fora voltava cansado, mas com vontade de ir outra vez para a cidade, os negócios eram bons e ele ficava feliz cada vez que ia. Homem é pra isso, fazer negócios e ganhar dinheiro, agora com dois filhos era preciso aumentar os lucros porque as despesas aumentavam por conta própria, e se ele quisesse mais dois filhos, então quanto mais negócios, melhor.  Só que tinha uma coisa muito estranha, tinha um cavalo pastando perto da casa do Seu Firmino, Mineirinha reparou com cuidado, era o Rufino, o cavalo do marido. Como poderia estar Rufino nos pastos do vizinho se ele tinha ido com o cavalo para Puerto Quijarro comprar botinas novas para as festas juninas que se aproximavam?

A égua Rina andava devagar para ver se acalmava os pensamentos acelerados da dona. “Se o Firmino tá em Dourados, que será que o Rufino está fazendo com a dona Maria que é a mulher do Firmino?” De volta para casa, Rina, a égua da Mineirinha, foi direto para a porteira do piquete e depois de solta correu pelo pasto, mas de um jeito meio esquisito. Mineirinha ficou a olhá-la enquanto pensava no porquê de Rufino estar com a mulher do Firmino. Lá longe a Rina relinchava, parecia incomodada, Mineirinha notou que tinha alguma coisa diferente na cabeça, Rina deu a volta no piquete e veio se aproximando da dona, andando meio sem jeito, parecendo desconfortável, foi aí que Mineirinha notou alguma coisa diferente na cabeça da égua, ela tinha um chifre bem no meio da cabeça. Como isso podia ser? Tinha isso a ver com o Rufino pastando na fazenda do vizinho com a Maria, mulher do Firmino?

No dia seguinte, os vizinhos queriam tirar uma foto e mandar para o Consultor do Globo Rural, mas Romero disse que não, isso poderia criar caso na fazenda do vizinho do outro lado do rio. Chamou a mulher de lado e disse: “Melhor não, vou mandar matar a Rina e te dou outra égua para ti”. Assim o assunto deu-se por encerrado, ficando só as fofocas e o causo da égua da Mineirinha com um chifre na cabeça que até hoje se conta por verdadeiro. Eu nada sei, só estou contando o causo!

sábado, 16 de novembro de 2024

A FELICIDADE

 



A felicidade é, certamente, a ausência de dor. Ah, e de coceira também! Não se pode ser feliz depois que uma dor nova aparece e fica incomodando. Já não bastava a dor anterior que veio para fazer morada permanente no joelho e, antes desta, a dor do estômago e, antes desta ainda, a dor nas costas? Eu nem sei por que se diz “dor nas costas”, assim, no plural, se eu só tenho uma costa, que fica ali entre a cabeça e a bunda, e essa dor dói porque é dor de hérnia de disco. Quem dera fosse disco dos Beatles, daí pelo menos seria uma dor divertida!

Os médicos sempre dizem que a dor vai passar porque eles estudaram medicina e também o corpo humano, então é preciso fazer duas coisas para a dor passar: Acreditar nos médicos e tomar os analgésicos que eles receitam. Eu não acredito nos médicos, tem duas profissões que nunca dão garantia do serviço prestado, uma são os médicos. Eles sempre garantem que o tratamento que eles indicam é o melhor caminho para a cura, e cobram caro por isso, muito caro! Mas se a doença piora e o paciente morre, então a culpa é do destino, e eles cobram até para emitir o atestado de óbito. Tem gente, muita gente! Que vende carro e até a casa onde mora para pagar as despesas hospitalares e o doente morre, mas ninguém devolve o dinheiro gasto no hospital. Nos analgésicos eu acredito.

Mas, não tem jeito, quarta-feira vou ter que ir ao médico, sem a receita dele não tem como comprar os remédios, e são muitos, alguns deles o posto de saúde me dá de graça, de graça porque eu paguei os impostos e com o “meu” dinheiro dos impostos o governo compra os remédios para me dar “de graça” no posto do saúde. Só que os mais caros não têm no posto de saúde, daí tem que comprar na farmácia, dessas de rede, que dão desconto se fizer cadastro. Elas, as farmácias, não cobram impostos, ou cobram, mas os remédios são caros, os preços estão “pela hora da morte”, muito sugestivo para as funerárias, elas amam a hora da morte, é quando elas ganham dinheiro. Pelo menos elas, as funerárias, dão garantia, se pagar a fortuna que elas cobram, seu morto será velado e enterrado, mas para permanecer enterrado é preciso pagar uma mensalidade até que Jesus volte.

Se eu pudesse me livrar das dores, dos médicos, dos remédios e da funerária eu poderia ser feliz, não fosse a coceira. Coceira é um treco que aparece na pele e vai dando vontade de coçar, mas se você coçar, a coceira aumenta e dá vontade de coçar ainda mais. É uma delícia coçar! especialmente se for na região da virilha! Não é à toa o dito popular: “Coçando o saco”. Não sei como fica esse dito no caso das mulheres, não me atrevo a sugerir nada. Mas coçar faz a pele irritar e a felicidade sucumbe na irritação da pele, então é melhor ir ao médico e comprar a pomada que ele receitar e buscar a felicidade sem as coceiras.

O meu sonho é ser feliz!  Sem dores, sem médicos, sem remédios, sem funerária e sem coceira. Num mundo assim, quase apocalíptico, onde os animais selvagens vivem pacificamente com os domesticados, não haverá nenhuma doença ou maldade na Terra. Gananciosos como o Elon Musk não viverão, nem a direita raivosa, nem os extremistas revolucionários, nem haverá relacionamento sexual entre homens e mulheres. Pera aí, que graça vai ter, se o que comanda o prazer de viver é o sexo e a ganância?

Melhor rever meu conceito de felicidade. Deixemos o mundo apocalíptico para depois e fiquemos com o mundo atual, ainda que com médicos e remédios. Supondo que seja possível viver sem médicos, sem remédios, sem funerárias e sem coceiras, mas ainda resta uma dor esquisita, a dor da consciência. Se algum remédio houver para essa dor, eu o quero, então, tratada essa dor, hei de viajar até mil quilômetros, se for preciso, para encontrar a felicidade. E ela estará lá, à minha espera, e eu a encontrarei!

terça-feira, 12 de novembro de 2024

UMA LOUCURA POR MIM! (Texto Completo)

 


 

O RESTAURANTE

 

            Dourados é uma cidade universitária, por isso atrai uma grande quantidade de jovens de vários estados que vêm estudar, muitos desses jovens gostam mais de bares e restaurantes do que dos bancos da faculdade! Nada que seja proibido, é até incentivado pela grande quantidade de estabelecimentos que se espalham pela cidade, muitos em ruas próximas do centro. Na rua Ponta Porã, um pouco afastado dessa muvuca fica o Ristorante e Pizzeria do Gringo, que atende um público um pouco diferenciado, moradores antigos da cidade preferem um som ambiente mais calmo para beber e conversar, e saber que quando falam serão ouvidos, o Ristorante fica lotado, especialmente nos finais de semana.

            José é um pacato cidadão, apesar de nunca ter entrado no Gringo, já passou em frente muitas vezes, até parou uma vez na porta para ver como era lá dentro, quando o garçom lhe perguntou se queria entrar, pediu uma informação qualquer e saiu. Uma semana depois voltou ao restaurante e pediu que lhe trouxesse uma garrafa de água, o garçom convidou para que entrasse e ficasse à vontade, mas José preferiu ficar na porta e observar. Tudo o que queria era saber como as pessoas se comportavam naquele lugar. “É o espelho do mundo, mas não vejo o reflexo de mim”. Uma moça que entrava virou a cabeça pensando que José tinha lhe falado, mas ele saiu, o namorado puxou-a para dentro e foram sentar-se à uma mesa onde já estava outro casal à sua espera.

            O carro do José, um Ford KA, recebeu as mãos suadas do dono sobre o capô e ficou esperando que a chave fosse enfiada na porta para liberar as travas e permitir que aquela timidez toda entrasse e tomasse conta da direção. Mas os olhos do dono estavam baixos demais para qualquer movimento das mãos. Enquanto isso, bem diante dos olhos do Ford KA, duas mulheres acendiam seus cigarros e reclamavam da solidão em meio a tantos homens solteiros loucos por um encontro. “O Cupido deve estar de folga, ou bebeu demais na muvuca dos estudantes no Centro”. A loira, que acendeu o cigarro primeiro e aparentava, assim como a outra, uns cinquenta anos, deu uma baforada longa e soprou para o alto, deixou os olhos subirem com a fumaça, então exclamou com sua pele tristemente branca: “Se eu fosse uma índia, faria um sinal de fumaça”.

            Acabada a fumaceira e dispensadas as bitucas, as duas mulheres, dotadas de pelo menos cinquenta anos de sabedoria, deram-se aos olhares dos muitos homens solteiros que bebiam cervejas e comiam pizza recheadas de risos, conversas animadas e olhares fugidios. A mesa ainda estava lá, disponível, então sentaram-se e encomendaram a janta e fizeram um brinde à solteirice. “Viva!” José continuava lá fora, com a certeza de que ali, naquele restaurante, bebia o seu desejo de relacionamento. Entrou no Ford KA e sentiu-se abraçado pelo sinto de segurança, abraçou o volante e sentiu um forte desejo de fazer um acordo com o Cupido e entrar no restaurante. Corou o rosto de vermelho e pensou que melhor seria ir para casa, os sonhos não seguem nenhuma regra, mas entrar no Ristorante, ah, isso seria uma loucura!

 

 

A MULHER BONITA DE UNS CINQUENTA ANOS

 

Janice é uma mulher dessas que se pode chamar de culta, fez faculdade de filosofia na Universidade Católica de Campo Grande na década de 1.990, quando conheceu o Eduardo, jovem estudante de economia da Universidade Federal. Ambos se formaram em 1996, dois anos depois iniciaram juntos o curso de Letras, Janice queria ser professora, enquanto Eduardo sonhava com a carreira de escritor e já dava seus pitacos no Jornal Correio do Estado, publicando suas crônicas. Nessa época os cabelos da Janice ainda eram loiros e passavam do meio das costas, quase até a cintura.

O casamento foi em 1.999, logo depois que Janice conseguiu seu primeiro emprego de professora de filosofia numa escola particular. Fã de Proudhon e Bakunin, por influência do agora marido, recebeu sua primeira observação sobre suas aulas ainda no primeiro semestre letivo. O diretor solicitou que fosse dado menos ênfase aos movimentos anarquistas, era um pedido de alguns pais de alunos que entendiam que a escola não podia se colocar ideologicamente na contramão do neoliberalismo e da globalização, importante ideário do desenvolvimento capitalista mundial. A professora Janice tinha os cabelos ruivos que chegavam até quase o meio das costas.

As letras levaram Eduardo ao jornalismo e nas horas vagas continuava a escrever seus contos e crônicas. O casamento ia bem e os gêmeos nasceram em 2005. Quando Joãozinho e Marcinha fizeram o terceiro ano de idade, as professoras da escola organizaram uma festinha, Janice levou bolo, bolachas, salgados e refrigerantes e convidou os pais dos coleguinhas dos filhos para comemorar o aniversário dos gêmeos. Eduardo estava cobrindo o noticiário de um acidente grave ocorrido a pouco entre um trem e uma van escolar e só chegou quando a festa tinha acabado e os pais já tinham quase todos ido embora, ficando apenas a Janice que conversava animadamente com o Vicente, pai das meninas Júlia e Lorena que tinham um e dois anos mais que os filhos dela. A conversa estava tão animada e eles estavam tão próximos um do outro quando Eduardo chegou, que Janice corou completamente ao vê-lo, Eduardo sorriu, cumprimentou Janice com um beijo e entrou na conversa com o mesmo ânimo dos dois, fazendo perguntas e rindo e falando do seu trabalho e das crônicas e contos que escrevia. Em casa, Janice não sabia como se comportar, Eduardo percebeu o desconforto da esposa e tratou de acalma-la dizendo que não se preocupasse, ele confiava nela e ‘aquilo’ serviria para sua próxima crônica. “Estava mesmo precisando de inspiração”.

Depois desse episódio, o amor entre ele se fortaleceu e a confiança também, Eduardo tinha admiradoras do seu trabalho com quem se relacionava amigavelmente, Janice também tinha seus admiradores e nem um nem outra demonstravam ciúmes por causa disso. Um dia Janice disse se sentir bem com essa liberdade, ao que Eduardo respondeu rindo: “Somos anarquistas!” Eduardo lançou seu primeiro livro de Contos em 2.015, em 2.020 publicou um romance e em 2.023 o segundo romance, este já em Dourados, um ano depois da mudança. Janice continua lecionando filosofia, continua bonita, mas agora os cabelos são castanho-claro e compridos até os ombros. Joãozinho e Marcinha estão se preparando para o vestibular. Os pais encontraram uma pizzaria muito legal na rua Ponta Porã e sempre vão lá. Sábado passado reservaram uma mesa, mas ao se sentarem o telefone tocou e Eduardo teve que sair às pressas para o Jornal de onde só saiu uma hora depois, Janice ficou, continuou tomando a cerveja que tinham começado e enquanto esperava pela volta do marido, o garçom lhe disse que “o cara que você estava esperando chegou”.

 

 

JOSÉ

 

A descrição do José eu vou deixar para ele mesmo, vou transcrever fielmente a narrativa que ele me fez depois de ter feito sua mais importante loucura. Ao final, rindo, ele me disse ter perdido de vez a timidez, “agora sou outro homem” ele disse, e emendou: “agora vou fazer mais loucuras e viver mais feliz!” Vai aí o que ele me disse:

“Eu sou José, nem estou me reconhecendo depois da loucura que fiz no restaurante do Gringo. Não foi ruim, mas quando penso no que aconteceu acho meio assustador eu ter feito aquilo. Tem alguma força que não é minha agindo em mim, uma força interior descontrolada ou algo que vem do sobrenatural, se bem que nenhuma divindade me levaria a uma situação que poderia ser desastrosa, eu me mataria se a situação se transformasse em vexame. Ninguém nunca foi até o Sol, mas eu fui no Ristorante!

            Eu nunca tive amigos, quando era criança vivia me escondendo das visitas em nossa casa, na escola ficava pelos cantos enquanto os outros brincavam na hora do recreio. Eu gostaria de me enturmar, mas uma timidez extrema me segurava pela mão e eu não conseguia me aproximar dos colegas.  Na adolescência, eu ficava olhando para as garotas e as achava lindas, me sentia atraído por elas, algumas até se aproximavam, daí eu ficava vermelho de vergonha e me afastava, mesmo querendo ficar. Quando me tornei adulto, meus amigos eram os livros, eu gostava de ler romances e fotonovelas, depois veio a televisão e as telenovelas, eu amava ver televisão, a televisão fala comigo e eu não preciso ter vergonha. Aos vinte e seis anos arrumei um emprego de guarda noturno numa empresa de vigilância, daí fui morar sozinho, agora já estou com cinquenta e oito e continuo trabalhando de vigilante e morando sozinho. Eu nunca tive uma namorada ou amigo com quem eu pudesse desabafar, eu nunca fui o número um para ninguém. Lá em casa, somos só eu e o meu Ford KA.

            Eu sei que o destino existe, é só ver as novelas ou os filmes na televisão. Serendipity, sim é esse o termo que significa alguma coisa boa que o destino tem reservado. Eu acredito no destino, só não sei muito bem o que eu devo fazer para que o destino me alcance. Na verdade eu não sabia, agora eu sei, depois que eu parei pela primeira vez na porta daquele restaurante, a pizzaria do Gringo, eu passei a ter certeza que o destino estava lá dentro, mas para entrar lá é preciso ter coragem, muita coragem, e isso eu não tinha, até que um dia eu fui, deixei o destino fazer o que quisesse, mesmo sabendo que ia ser uma loucura, que se dane, pelo uma vez na vida o destino tem que ter razão. O que aconteceu? Bom eu vou te dizer o que aconteceu.” E ele me contou a história que narro a seguir:

 

 

A LOUCURA

 

- Boa noite senhor!

O garçom cumprimentou o cliente que estava à porta. Tinha ainda a bandeja na mão, pois acabara de atender uma mesa próxima, pôs a toalha sobre o ombro e se dispôs ao recém-chegado oferecendo um lugar para que pudesse sentar-se.

- Eu estou procurando por uma mulher bonita, de uns cinquenta anos, ela já deve ter chegado.

- Como é o nome dela?

- Ela tem cabelos castanho-claro, compridos até os ombros...

- Por favor, me acompanhe.

Pode-se dizer que o bar estava lotado, diz-se lotado quando todas as mesas estão ocupadas. No caso, havia ainda algumas poucas mesas disponíveis, para uma delas o garçom ia encaminhar o cliente antes dele perguntar pela ‘mulher bonita de uns cinquenta anos”. Enquanto andavam por entre as mesas, José dos Santos, o cliente, pensava em que situação estava se metendo, tinha mesmo uma ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’ sozinha numa mesa à sua espera? Bem, à sua espera já era querer demais, dissera-o ao garçom sem muito pensar, simplesmente disse, era o que desejava, encontrar uma ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’, conhece-la, fazer amizade, talvez iniciar um namoro...

- Aqui, senhor!

José teve um sobressalto, como se acordasse atrasado com o despertador tocando ao ouvido. O coração acelerou, as mãos tremeram. Olhou para o garçom e queria se desculpar, mas ele já estava atendendo outra mesa que o chamara. José estava atônito, estacado diante da mesa ocupada pela ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’, ela tinha cabelos castanho-claros, parecia simpática e era muito, muito atraente.

- Sim?

A ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’ disse “sim?”, então era uma pergunta. José queria responder, mas como responder uma pergunta que diz simplesmente: Sim?

- Ugh... eu, eu...

- O garçom disse que o senhor estava me procurando.

- É, desculpe, acho que eu fiz uma besteira.

José não teve coragem de prosseguir com seu plano mirabolante. Nem dá para afirmar que era um plano, enquanto dirigia seu Ford Ka pelas ruas da cidade pensava que seria legal encontrar uma ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’ hoje. Tem um ditado que diz que o pecado é como um pássaro que voa sobre a cabeça, não há nenhum problema em o pássaro voar sobre tua cabeça, mas deixa-lo fazer ninho, aí já é o mal. Não que fosse pecado deixar uma mulher bonita de uns cinquenta anos voar sobre a cabeça de José, mas pedir ao garçom para fazer ninho na mesa dessa mulher...

- Senhor?

José sentiu uma mão delicada a segurar seu braço.

- Vem, sente-se. Acho que o senhor precisa de um pouco de água. Garçom, um copo de água, por favor.

José tomou a água num gole, a mulher bonita de uns cinquenta anos tomou um copo de cerveja, ela esboçou um sorriso, era o sorriso mais lindo que José já vira na vida, era o sorriso que desejava enquanto dirigia seu Ford Ka.

- Diga, como é teu nome? Por que estava me procurando?

- Meu nome é José, José dos Santos. Essa parte não é difícil, mas, por que eu estava te procurando... isso é bem difícil... isso foi uma loucura minha...

- Uma loucura? Eu estava precisando mesmo de uma...

Ela estava também precisando de uma loucura. Que loucura! O bar estava lotado agora, nenhuma mesa estava disponível e havia clientes aguardando na porta. Em cada mesa parecia ter alguma loucura acontecendo. José desviou os olhos à esquerda da mulher bonita à sua frente e olhou para a mesas diante de si, na mesa mais próxima todos bebiam um brinde a alguém ou a alguma coisa, na outra tinha dois casais e o marido de uma colocava disfarçadamente um dos pés por debaixo da mesa, entre as pernas da mulher do outro enquanto conversava animadamente com o marido dela. O pássaro estava fazendo seu ninho!  Se olhasse cada mesa tinha lá um pássaro querendo fazer ninho... sim tinha lá suas exceções! José era uma exceção. Era?

- Qual foi a tua loucura? Me conte.

- É que, na verdade, eu não estava procurando você, quer dizer, estava, mas não era você, não era você, mas era você.

- Daí você me achou.

- Sim, daí o garçom me trouxe até aqui.

- Então vamos brindar a tua loucura, garçom um copo, não precisa, toma nesse da água mesmo.

Então brindaram à loucura, depois brindaram ao seu primeiro encontro, daí brindaram alguém ter feito uma loucura por uma mulher bonita de uns cinquenta anos, brindaram à vida, ao amor, aos desejos sexuais dos idosos, à filosofia, à literatura e ao marido da mulher bonita de uns cinquenta anos.

- Marido?

- Sim, olha ele aí, ele é escritor, vai amar essa história, certamente amanhã estará publicada na Folha de Dourados.


domingo, 3 de novembro de 2024

UMA LOUCURA POR MIM! (PARTE 1 e 2)

 PARTE 1   -   O RESTAURANTE



            Dourados é uma cidade universitária, por isso atrai uma grande quantidade de jovens de vários estados que vêm estudar, muitos desses jovens gostam mais de bares e restaurantes do que dos bancos da faculdade! Nada que seja proibido, é até incentivado pela grande quantidade de estabelecimentos que se espalham pela cidade, muitos em ruas próximas do centro. Na rua Ponta Porã, um pouco afastado dessa muvuca fica o Ristorante e Pizzeria do Gringo, que atende um público um pouco diferenciado, moradores antigos da cidade preferem um som ambiente mais calmo para beber e conversar, e saber que quando falam serão ouvidos, o Ristorante fica lotado, especialmente nos finais de semana.

            José é um pacato cidadão, apesar de nunca ter entrado no Gringo, já passou em frente muitas vezes, até parou uma vez na porta para ver como era lá dentro, quando o garçom lhe perguntou se queria entrar, pediu uma informação qualquer e saiu. Uma semana depois voltou ao restaurante e pediu que lhe trouxesse uma garrafa de água, o garçom convidou para que entrasse e ficasse à vontade, mas José preferiu ficar na porta e observar. Tudo o que queria era saber como as pessoas se comportavam naquele lugar. “É o espelho do mundo, mas não vejo o reflexo de mim”. Uma moça que entrava virou a cabeça pensando que José tinha lhe falado, mas ele saiu, o namorado puxou-a para dentro e foram sentar-se à uma mesa onde já estava outro casal à sua espera.

            O carro do José, um Ford KA, recebeu as mãos suadas do dono sobre o capô e ficou esperando que a chave fosse enfiada na porta para liberar as travas e permitir que aquela timidez toda entrasse e tomasse conta da direção. Mas os olhos do dono estavam baixos demais para qualquer movimento das mãos. Enquanto isso, bem diante dos olhos do Ford KA, duas mulheres acendiam seus cigarros e reclamavam da solidão em meio a tantos homens solteiros loucos por um encontro. “O Cupido deve estar de folga, ou bebeu demais na muvuca dos estudantes no Centro”. A loira, que acendeu o cigarro primeiro e aparentava, assim como a outra, uns cinquenta anos, deu uma baforada longa e soprou para o alto, deixou os olhos subirem com a fumaça, então exclamou com sua pele tristemente branca: “Se eu fosse uma índia, faria um sinal de fumaça”.

            Acabada a fumaceira e dispensadas as bitucas, as duas mulheres, dotadas de pelo menos cinquenta anos de sabedoria, deram-se aos olhares dos muitos homens solteiros que bebiam cervejas e comiam pizza recheadas de risos, conversas animadas e olhares fugidios. A mesa ainda estava lá, disponível, então sentaram-se e encomendaram a janta e fizeram um brinde à solteirice. “Viva!” José continuava lá fora, com a certeza de que ali, naquele restaurante, bebia o seu desejo de relacionamento. Entrou no Ford KA e sentiu-se abraçado pelo sinto de segurança, abraçou o volante e sentiu um forte desejo de fazer um acordo com o Cupido e entrar no restaurante. Corou o rosto de vermelho e pensou que melhor seria ir para casa, os sonhos não seguem nenhuma regra, mas entrar no Ristorante, ah, isso seria uma loucura!


PARTE 2   -  UMA MULHER BONITA DE UNS CINQUENTA ANOS



Janice é uma mulher dessas que se pode chamar de culta, fez faculdade de filosofia na Universidade Católica de Campo Grande na década de 1.990, quando conheceu o Eduardo, jovem estudante de economia da Universidade Federal. Ambos se formaram em 1996, dois anos depois iniciaram juntos o curso de Letras, Janice queria ser professora, enquanto Eduardo sonhava com a carreira de escritor e já dava seus pitacos no Jornal Correio do Estado, publicando suas crônicas. Nessa época os cabelos da Janice ainda eram loiros e passavam do meio das costas, quase até a cintura.

O casamento foi em 1.999, logo depois que Janice conseguiu seu primeiro emprego de professora de filosofia numa escola particular. Fã de Proudhon e Bakunin por influência do agora marido, recebeu sua primeira observação sobre suas aulas ainda no primeiro semestre letivo. O diretor pedia que fosse dado menos ênfase aos movimentos anarquistas, era um pedido de alguns pais de alunos que entendiam que a escola não podia se colocar ideologicamente na contramão do neoliberalismo e da globalização, importante ideário do desenvolvimento capitalista mundial. A professora Janice tinha os cabelos ruivos que chegavam até quase o meio das costas.

As letras levaram Eduardo ao jornalismo e nas horas vagas continuava a escrever seus contos e crônicas. O casamento ia bem e os gêmeos nasceram em 2005. Quando Joãozinho e Marcinha fizeram o terceiro ano de idade, as professoras da escola organizaram uma festinha, Janice levou bolo, bolachas, salgados e refrigerantes e convidou os pais dos coleguinhas dos filhos para comemorar o aniversário dos gêmeos. Eduardo estava cobrindo o noticiário de um acidente grave ocorrido a pouco entre um trem e uma van escolar e só chegou quando a festa tinha acabado e os pais já tinham quase todos ido embora, ficando apenas a Janice que conversava animadamente com o Vicente, pai das meninas Júlia e Lorena que tinham um e dois anos mais que os filhos dela. A conversa estava tão animada e eles estavam tão próximos um do outro quando Eduardo chegou, que Janice corou completamente ao vê-lo, Eduardo sorriu, cumprimentou Janice com um beijo e entrou na conversa com o mesmo ânimo dos dois, fazendo perguntas e rindo e falando do seu trabalho e das crônicas e contos que escrevia. Em casa, Janice não sabia como se comportar, Eduardo percebeu o desconforto da esposa e tratou de acalma-la dizendo que não se preocupasse, ele confiava nela e ‘aquilo’ serviria para sua próxima crônica. “Estava mesmo precisando de alguma inspiração”.

Depois desse episódio, o amor entre ele se fortaleceu e a confiança também, Eduardo tinha admiradoras do seu trabalho com quem se relacionava amigavelmente, Janice também tinha seus admiradores e nem um nem outra demonstravam ciúmes por causa disso. Um dia Janice disse se sentir bem com essa liberdade, ao que Eduardo respondeu rindo: “Somos anarquistas!” Eduardo lançou seu primeiro livro de Contos em 2.015, em 2.020 publicou um romance e em 2.023 o segundo romance, este já em Dourados um ano depois da mudança. Janice continua lecionando filosofia, continua bonita, mas agora os cabelos são castanho-claro e compridos até os ombros. Joãozinho e Marcinha estão se preparando para o vestibular. Os pais encontraram uma pizzaria muito legal na rua Ponta Porã e sempre vão lá. Sábado passado reservaram uma mesa, mas ao  se sentarem o telefone tocou e Eduardo teve que sair às pressas para o Jornal de onde só saiu uma hora depois, Janice ficou, continuou tomando a cerveja que tinham começado e enquanto esperava pela volta do marido, o garçom lhe disse que “o cara que você estava esperando chegou”.


CHIFRE EM CABEÇA DE CAVALO. EXISTE? EXISTE!

  Já botei no título o que poderia ser uma mentira, a ciência diz que cavalos não tem chifre, nem as éguas, mas na fazenda do Romero, que ...