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quarta-feira, 20 de novembro de 2024

CHIFRE EM CABEÇA DE CAVALO. EXISTE? EXISTE!

 



Já botei no título o que poderia ser uma mentira, a ciência diz que cavalos não tem chifre, nem as éguas, mas na fazenda do Romero, que fica na fronteira do Brasil com a Bolívia, foi visto uma égua com chifre, um só é verdade, mas era um chifre, e quem viu foi a dona Mineirinha, como era, e ainda é conhecida a mulher do Romero. Só para constar, o nome da Mineirinha é Reinalda Silva Romero. Antes de se casar se chamava Reinalda da Silva Valenzuela, boliviana, filha de pai imigrante fugido da Venezuela quando os militares massacravam o povo pobre que promoveu o Caracazo, em 1989. Juan Valenzuea, o pai da Mineirinha, tinha participado do movimento em repúdio ao governo de Carlos Andrés Pérez, mas se livrou do massacre fugindo para a Bolívia, onde se empregou numa fazenda de gado no município de Puerto Quijarro, casou-se com Josefa de Arenque com quem teve seis filhos, entre eles a belíssima Reinalda.

Puerto Quijarro fica muito perto do Brasil e é comum os moradores de Corumbá atravessarem a fronteira para comprar produtos naquela cidade boliviana onde roupas e calçados são vendidos a preços mais baratos que do lado de cá da fronteira seca. Só oito quilômetros separam a cidade boliviana da brasileira e até a cavalo se percorre essa distância com grande facilidade. Há três anos, Romero fez esse trajeto em seu cavalo Rufino, não era a primeira vez que atravessava para o outro lado da fronteira, mas foi a primeira vez que voltou enamorado, perdidamente enamorado! No balcão da loja de calçados onde fora comprar botinas novas para as festividades de São João, dois olhos lhe sorriram um sorriso encantador, os cabelos negros roçando seus pés enquanto a moça o ajudava a calçar a botinas pareciam prende-lo pelo tornozelo, mas era o coração que já não podia libertar-se daquele corpinho castelhano feiticeiro. “Como te chamas?” Perguntou Romero confessando as emoções no rosto corado, a voz trêmula e sem saber o que fazer com as mãos. “Mi nombre es Reinalda, pero puedes llamarme Reída”. “Eu sou Romero, eu tenho uma fazenda de cavalos”.

Se era mesmo uma fazenda como queria Romero ou apenas um sítio como queiram os vizinhos, isso pouco importa. Interessa saber que Romero criava mesmo os cavalos, e eram de qualidade. O sítio, ou fazenda, como quiser, tinha cinquenta alqueires com uma boa pastagem, piquetes bem definidos por cerca de arame liso, boas instalações para os cavalos e um rio de águas muito limpas fazendo a divisa com a fazenda do Seu Firmino, criador de gado nelore. Romero, agora com 25 anos de idade, mora numa casa grande herdada dos pais falecidos num acidente de carro há menos de um ano, aliás toda a fazenda fora herdada, Romero era filho único, nascera ali e ali pretendia morrer quando a hora chegasse, mas antes de morrer queria se casar e ter filhos, pelo menos quatro. Quatro filhos era também o sonho do Pai, mas depois que o pequeno Romero nasceu, a mãe teve um tumor no útero e teve que o retirar, impossibilitando assim a chegada dos outros três filhos planejados pelo marido. Agora, Romero poderia realizar o sonho do pai, se Reída concordasse.

Reída, que ficara pelo menos uns quinze minutos entre a porta da loja de calçados e a calçada em frente, depois que Romero saíra de sua presença com as botinas no alforje do cavalo Rufino, já não pensava mais em ser gerente da loja, os sonhos viam campos verdes e cavalos, mitos cavalos, Campeiro, Lavradeiro, Campolina, Mangalarga, Mangalarga Marchador, Pampa, Pantaneiro, Pônei... e em todos eles estava montado Romero, menos no Pônei, neste estava uma criança. Seu filho? Estava vendo o destino? Teria um filho com Romero? Se casaria com esse moço que viera comprar um par de botinhas novas para festa de São João? Se Santo Antônio estiver olhando para a Bolívia agora... Quem sabe!

Estava! Santo Antônio estava mesmo olhando para Puerto Quijarro, ou talvez para a fazenda de cavalos em Corumbá, o certo é que um ano depois Reída dobrava cuidadosamente a certidão de casamento com seu novo nome: Reinalda Silva Romero. Mas logo foi apelidada de Mineirinha por causa dos belos queijos que fazia e dos pães de queijo que assava no fogão à lenha. Exatos nove meses após a festa de casamento nasceu João Ricardo que agora está encantado com a irmãzinha Janaina que nasceu dia 13 junho de 2.023, dia de Santo Antônio. Mineirinha continua vendo cavalos, muitos cavalos, principalmente os Mangalarga Marchador que o marido amansa e treina para vender. João Ricardo ganhou um pônei de presente de aniversário, mas só vai andar nele quando estiver mais crescido. No dia do seu aniversário, que foi 17 de abrilo, Romero deu a égua Rina de presente para a esposa e ela sempre arruma um tempinho entre os queijos e pães de queijo para montar nela e dar uns galopes. Semana passada ela viu algo estranho, muito estranho enquanto galopava quase na divisa com as terras do Seu Firmino que ficavam do outro lado do rio.

O marido tinha saído há três dias para fazer negócios de cavalos em Campo Grande, mas chegara da viagem ontem, mesmo dia que Seu Firmino viajara para Dourados, para participar da Expoagro, onde tencionava comprar um lote de bezerros nelore. Sempre que Romero viajava e ficava quatro ou cinco dias fora voltava cansado, mas com vontade de ir outra vez para a cidade, os negócios eram bons e ele ficava feliz cada vez que ia. Homem é pra isso, fazer negócios e ganhar dinheiro, agora com dois filhos era preciso aumentar os lucros porque as despesas aumentavam por conta própria, e se ele quisesse mais dois filhos, então quanto mais negócios, melhor.  Só que tinha uma coisa muito estranha, tinha um cavalo pastando perto da casa do Seu Firmino, Mineirinha reparou com cuidado, era o Rufino, o cavalo do marido. Como poderia estar Rufino nos pastos do vizinho se ele tinha ido com o cavalo para Puerto Quijarro comprar botinas novas para as festas juninas que se aproximavam?

A égua Rina andava devagar para ver se acalmava os pensamentos acelerados da dona. “Se o Firmino tá em Dourados, que será que o Rufino está fazendo com a dona Maria que é a mulher do Firmino?” De volta para casa, Rina, a égua da Mineirinha, foi direto para a porteira do piquete e depois de solta correu pelo pasto, mas de um jeito meio esquisito. Mineirinha ficou a olhá-la enquanto pensava no porquê de Rufino estar com a mulher do Firmino. Lá longe a Rina relinchava, parecia incomodada, Mineirinha notou que tinha alguma coisa diferente na cabeça, Rina deu a volta no piquete e veio se aproximando da dona, andando meio sem jeito, parecendo desconfortável, foi aí que Mineirinha notou alguma coisa diferente na cabeça da égua, ela tinha um chifre bem no meio da cabeça. Como isso podia ser? Tinha isso a ver com o Rufino pastando na fazenda do vizinho com a Maria, mulher do Firmino?

No dia seguinte, os vizinhos queriam tirar uma foto e mandar para o Consultor do Globo Rural, mas Romero disse que não, isso poderia criar caso na fazenda do vizinho do outro lado do rio. Chamou a mulher de lado e disse: “Melhor não, vou mandar matar a Rina e te dou outra égua para ti”. Assim o assunto deu-se por encerrado, ficando só as fofocas e o causo da égua da Mineirinha com um chifre na cabeça que até hoje se conta por verdadeiro. Eu nada sei, só estou contando o causo!

sábado, 16 de novembro de 2024

A FELICIDADE

 



A felicidade é, certamente, a ausência de dor. Ah, e de coceira também! Não se pode ser feliz depois que uma dor nova aparece e fica incomodando. Já não bastava a dor anterior que veio para fazer morada permanente no joelho e, antes desta, a dor do estômago e, antes desta ainda, a dor nas costas? Eu nem sei por que se diz “dor nas costas”, assim, no plural, se eu só tenho uma costa, que fica ali entre a cabeça e a bunda, e essa dor dói porque é dor de hérnia de disco. Quem dera fosse disco dos Beatles, daí pelo menos seria uma dor divertida!

Os médicos sempre dizem que a dor vai passar porque eles estudaram medicina e também o corpo humano, então é preciso fazer duas coisas para a dor passar: Acreditar nos médicos e tomar os analgésicos que eles receitam. Eu não acredito nos médicos, tem duas profissões que nunca dão garantia do serviço prestado, uma são os médicos. Eles sempre garantem que o tratamento que eles indicam é o melhor caminho para a cura, e cobram caro por isso, muito caro! Mas se a doença piora e o paciente morre, então a culpa é do destino, e eles cobram até para emitir o atestado de óbito. Tem gente, muita gente! Que vende carro e até a casa onde mora para pagar as despesas hospitalares e o doente morre, mas ninguém devolve o dinheiro gasto no hospital. Nos analgésicos eu acredito.

Mas, não tem jeito, quarta-feira vou ter que ir ao médico, sem a receita dele não tem como comprar os remédios, e são muitos, alguns deles o posto de saúde me dá de graça, de graça porque eu paguei os impostos e com o “meu” dinheiro dos impostos o governo compra os remédios para me dar “de graça” no posto do saúde. Só que os mais caros não têm no posto de saúde, daí tem que comprar na farmácia, dessas de rede, que dão desconto se fizer cadastro. Elas, as farmácias, não cobram impostos, ou cobram, mas os remédios são caros, os preços estão “pela hora da morte”, muito sugestivo para as funerárias, elas amam a hora da morte, é quando elas ganham dinheiro. Pelo menos elas, as funerárias, dão garantia, se pagar a fortuna que elas cobram, seu morto será velado e enterrado, mas para permanecer enterrado é preciso pagar uma mensalidade até que Jesus volte.

Se eu pudesse me livrar das dores, dos médicos, dos remédios e da funerária eu poderia ser feliz, não fosse a coceira. Coceira é um treco que aparece na pele e vai dando vontade de coçar, mas se você coçar, a coceira aumenta e dá vontade de coçar ainda mais. É uma delícia coçar! especialmente se for na região da virilha! Não é à toa o dito popular: “Coçando o saco”. Não sei como fica esse dito no caso das mulheres, não me atrevo a sugerir nada. Mas coçar faz a pele irritar e a felicidade sucumbe na irritação da pele, então é melhor ir ao médico e comprar a pomada que ele receitar e buscar a felicidade sem as coceiras.

O meu sonho é ser feliz!  Sem dores, sem médicos, sem remédios, sem funerária e sem coceira. Num mundo assim, quase apocalíptico, onde os animais selvagens vivem pacificamente com os domesticados, não haverá nenhuma doença ou maldade na Terra. Gananciosos como o Elon Musk não viverão, nem a direita raivosa, nem os extremistas revolucionários, nem haverá relacionamento sexual entre homens e mulheres. Pera aí, que graça vai ter, se o que comanda o prazer de viver é o sexo e a ganância?

Melhor rever meu conceito de felicidade. Deixemos o mundo apocalíptico para depois e fiquemos com o mundo atual, ainda que com médicos e remédios. Supondo que seja possível viver sem médicos, sem remédios, sem funerárias e sem coceiras, mas ainda resta uma dor esquisita, a dor da consciência. Se algum remédio houver para essa dor, eu o quero, então, tratada essa dor, hei de viajar até mil quilômetros, se for preciso, para encontrar a felicidade. E ela estará lá, à minha espera, e eu a encontrarei!

terça-feira, 12 de novembro de 2024

UMA LOUCURA POR MIM! (Texto Completo)

 


 

O RESTAURANTE

 

            Dourados é uma cidade universitária, por isso atrai uma grande quantidade de jovens de vários estados que vêm estudar, muitos desses jovens gostam mais de bares e restaurantes do que dos bancos da faculdade! Nada que seja proibido, é até incentivado pela grande quantidade de estabelecimentos que se espalham pela cidade, muitos em ruas próximas do centro. Na rua Ponta Porã, um pouco afastado dessa muvuca fica o Ristorante e Pizzeria do Gringo, que atende um público um pouco diferenciado, moradores antigos da cidade preferem um som ambiente mais calmo para beber e conversar, e saber que quando falam serão ouvidos, o Ristorante fica lotado, especialmente nos finais de semana.

            José é um pacato cidadão, apesar de nunca ter entrado no Gringo, já passou em frente muitas vezes, até parou uma vez na porta para ver como era lá dentro, quando o garçom lhe perguntou se queria entrar, pediu uma informação qualquer e saiu. Uma semana depois voltou ao restaurante e pediu que lhe trouxesse uma garrafa de água, o garçom convidou para que entrasse e ficasse à vontade, mas José preferiu ficar na porta e observar. Tudo o que queria era saber como as pessoas se comportavam naquele lugar. “É o espelho do mundo, mas não vejo o reflexo de mim”. Uma moça que entrava virou a cabeça pensando que José tinha lhe falado, mas ele saiu, o namorado puxou-a para dentro e foram sentar-se à uma mesa onde já estava outro casal à sua espera.

            O carro do José, um Ford KA, recebeu as mãos suadas do dono sobre o capô e ficou esperando que a chave fosse enfiada na porta para liberar as travas e permitir que aquela timidez toda entrasse e tomasse conta da direção. Mas os olhos do dono estavam baixos demais para qualquer movimento das mãos. Enquanto isso, bem diante dos olhos do Ford KA, duas mulheres acendiam seus cigarros e reclamavam da solidão em meio a tantos homens solteiros loucos por um encontro. “O Cupido deve estar de folga, ou bebeu demais na muvuca dos estudantes no Centro”. A loira, que acendeu o cigarro primeiro e aparentava, assim como a outra, uns cinquenta anos, deu uma baforada longa e soprou para o alto, deixou os olhos subirem com a fumaça, então exclamou com sua pele tristemente branca: “Se eu fosse uma índia, faria um sinal de fumaça”.

            Acabada a fumaceira e dispensadas as bitucas, as duas mulheres, dotadas de pelo menos cinquenta anos de sabedoria, deram-se aos olhares dos muitos homens solteiros que bebiam cervejas e comiam pizza recheadas de risos, conversas animadas e olhares fugidios. A mesa ainda estava lá, disponível, então sentaram-se e encomendaram a janta e fizeram um brinde à solteirice. “Viva!” José continuava lá fora, com a certeza de que ali, naquele restaurante, bebia o seu desejo de relacionamento. Entrou no Ford KA e sentiu-se abraçado pelo sinto de segurança, abraçou o volante e sentiu um forte desejo de fazer um acordo com o Cupido e entrar no restaurante. Corou o rosto de vermelho e pensou que melhor seria ir para casa, os sonhos não seguem nenhuma regra, mas entrar no Ristorante, ah, isso seria uma loucura!

 

 

A MULHER BONITA DE UNS CINQUENTA ANOS

 

Janice é uma mulher dessas que se pode chamar de culta, fez faculdade de filosofia na Universidade Católica de Campo Grande na década de 1.990, quando conheceu o Eduardo, jovem estudante de economia da Universidade Federal. Ambos se formaram em 1996, dois anos depois iniciaram juntos o curso de Letras, Janice queria ser professora, enquanto Eduardo sonhava com a carreira de escritor e já dava seus pitacos no Jornal Correio do Estado, publicando suas crônicas. Nessa época os cabelos da Janice ainda eram loiros e passavam do meio das costas, quase até a cintura.

O casamento foi em 1.999, logo depois que Janice conseguiu seu primeiro emprego de professora de filosofia numa escola particular. Fã de Proudhon e Bakunin, por influência do agora marido, recebeu sua primeira observação sobre suas aulas ainda no primeiro semestre letivo. O diretor solicitou que fosse dado menos ênfase aos movimentos anarquistas, era um pedido de alguns pais de alunos que entendiam que a escola não podia se colocar ideologicamente na contramão do neoliberalismo e da globalização, importante ideário do desenvolvimento capitalista mundial. A professora Janice tinha os cabelos ruivos que chegavam até quase o meio das costas.

As letras levaram Eduardo ao jornalismo e nas horas vagas continuava a escrever seus contos e crônicas. O casamento ia bem e os gêmeos nasceram em 2005. Quando Joãozinho e Marcinha fizeram o terceiro ano de idade, as professoras da escola organizaram uma festinha, Janice levou bolo, bolachas, salgados e refrigerantes e convidou os pais dos coleguinhas dos filhos para comemorar o aniversário dos gêmeos. Eduardo estava cobrindo o noticiário de um acidente grave ocorrido a pouco entre um trem e uma van escolar e só chegou quando a festa tinha acabado e os pais já tinham quase todos ido embora, ficando apenas a Janice que conversava animadamente com o Vicente, pai das meninas Júlia e Lorena que tinham um e dois anos mais que os filhos dela. A conversa estava tão animada e eles estavam tão próximos um do outro quando Eduardo chegou, que Janice corou completamente ao vê-lo, Eduardo sorriu, cumprimentou Janice com um beijo e entrou na conversa com o mesmo ânimo dos dois, fazendo perguntas e rindo e falando do seu trabalho e das crônicas e contos que escrevia. Em casa, Janice não sabia como se comportar, Eduardo percebeu o desconforto da esposa e tratou de acalma-la dizendo que não se preocupasse, ele confiava nela e ‘aquilo’ serviria para sua próxima crônica. “Estava mesmo precisando de inspiração”.

Depois desse episódio, o amor entre ele se fortaleceu e a confiança também, Eduardo tinha admiradoras do seu trabalho com quem se relacionava amigavelmente, Janice também tinha seus admiradores e nem um nem outra demonstravam ciúmes por causa disso. Um dia Janice disse se sentir bem com essa liberdade, ao que Eduardo respondeu rindo: “Somos anarquistas!” Eduardo lançou seu primeiro livro de Contos em 2.015, em 2.020 publicou um romance e em 2.023 o segundo romance, este já em Dourados, um ano depois da mudança. Janice continua lecionando filosofia, continua bonita, mas agora os cabelos são castanho-claro e compridos até os ombros. Joãozinho e Marcinha estão se preparando para o vestibular. Os pais encontraram uma pizzaria muito legal na rua Ponta Porã e sempre vão lá. Sábado passado reservaram uma mesa, mas ao se sentarem o telefone tocou e Eduardo teve que sair às pressas para o Jornal de onde só saiu uma hora depois, Janice ficou, continuou tomando a cerveja que tinham começado e enquanto esperava pela volta do marido, o garçom lhe disse que “o cara que você estava esperando chegou”.

 

 

JOSÉ

 

A descrição do José eu vou deixar para ele mesmo, vou transcrever fielmente a narrativa que ele me fez depois de ter feito sua mais importante loucura. Ao final, rindo, ele me disse ter perdido de vez a timidez, “agora sou outro homem” ele disse, e emendou: “agora vou fazer mais loucuras e viver mais feliz!” Vai aí o que ele me disse:

“Eu sou José, nem estou me reconhecendo depois da loucura que fiz no restaurante do Gringo. Não foi ruim, mas quando penso no que aconteceu acho meio assustador eu ter feito aquilo. Tem alguma força que não é minha agindo em mim, uma força interior descontrolada ou algo que vem do sobrenatural, se bem que nenhuma divindade me levaria a uma situação que poderia ser desastrosa, eu me mataria se a situação se transformasse em vexame. Ninguém nunca foi até o Sol, mas eu fui no Ristorante!

            Eu nunca tive amigos, quando era criança vivia me escondendo das visitas em nossa casa, na escola ficava pelos cantos enquanto os outros brincavam na hora do recreio. Eu gostaria de me enturmar, mas uma timidez extrema me segurava pela mão e eu não conseguia me aproximar dos colegas.  Na adolescência, eu ficava olhando para as garotas e as achava lindas, me sentia atraído por elas, algumas até se aproximavam, daí eu ficava vermelho de vergonha e me afastava, mesmo querendo ficar. Quando me tornei adulto, meus amigos eram os livros, eu gostava de ler romances e fotonovelas, depois veio a televisão e as telenovelas, eu amava ver televisão, a televisão fala comigo e eu não preciso ter vergonha. Aos vinte e seis anos arrumei um emprego de guarda noturno numa empresa de vigilância, daí fui morar sozinho, agora já estou com cinquenta e oito e continuo trabalhando de vigilante e morando sozinho. Eu nunca tive uma namorada ou amigo com quem eu pudesse desabafar, eu nunca fui o número um para ninguém. Lá em casa, somos só eu e o meu Ford KA.

            Eu sei que o destino existe, é só ver as novelas ou os filmes na televisão. Serendipity, sim é esse o termo que significa alguma coisa boa que o destino tem reservado. Eu acredito no destino, só não sei muito bem o que eu devo fazer para que o destino me alcance. Na verdade eu não sabia, agora eu sei, depois que eu parei pela primeira vez na porta daquele restaurante, a pizzaria do Gringo, eu passei a ter certeza que o destino estava lá dentro, mas para entrar lá é preciso ter coragem, muita coragem, e isso eu não tinha, até que um dia eu fui, deixei o destino fazer o que quisesse, mesmo sabendo que ia ser uma loucura, que se dane, pelo uma vez na vida o destino tem que ter razão. O que aconteceu? Bom eu vou te dizer o que aconteceu.” E ele me contou a história que narro a seguir:

 

 

A LOUCURA

 

- Boa noite senhor!

O garçom cumprimentou o cliente que estava à porta. Tinha ainda a bandeja na mão, pois acabara de atender uma mesa próxima, pôs a toalha sobre o ombro e se dispôs ao recém-chegado oferecendo um lugar para que pudesse sentar-se.

- Eu estou procurando por uma mulher bonita, de uns cinquenta anos, ela já deve ter chegado.

- Como é o nome dela?

- Ela tem cabelos castanho-claro, compridos até os ombros...

- Por favor, me acompanhe.

Pode-se dizer que o bar estava lotado, diz-se lotado quando todas as mesas estão ocupadas. No caso, havia ainda algumas poucas mesas disponíveis, para uma delas o garçom ia encaminhar o cliente antes dele perguntar pela ‘mulher bonita de uns cinquenta anos”. Enquanto andavam por entre as mesas, José dos Santos, o cliente, pensava em que situação estava se metendo, tinha mesmo uma ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’ sozinha numa mesa à sua espera? Bem, à sua espera já era querer demais, dissera-o ao garçom sem muito pensar, simplesmente disse, era o que desejava, encontrar uma ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’, conhece-la, fazer amizade, talvez iniciar um namoro...

- Aqui, senhor!

José teve um sobressalto, como se acordasse atrasado com o despertador tocando ao ouvido. O coração acelerou, as mãos tremeram. Olhou para o garçom e queria se desculpar, mas ele já estava atendendo outra mesa que o chamara. José estava atônito, estacado diante da mesa ocupada pela ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’, ela tinha cabelos castanho-claros, parecia simpática e era muito, muito atraente.

- Sim?

A ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’ disse “sim?”, então era uma pergunta. José queria responder, mas como responder uma pergunta que diz simplesmente: Sim?

- Ugh... eu, eu...

- O garçom disse que o senhor estava me procurando.

- É, desculpe, acho que eu fiz uma besteira.

José não teve coragem de prosseguir com seu plano mirabolante. Nem dá para afirmar que era um plano, enquanto dirigia seu Ford Ka pelas ruas da cidade pensava que seria legal encontrar uma ‘mulher bonita de uns cinquenta anos’ hoje. Tem um ditado que diz que o pecado é como um pássaro que voa sobre a cabeça, não há nenhum problema em o pássaro voar sobre tua cabeça, mas deixa-lo fazer ninho, aí já é o mal. Não que fosse pecado deixar uma mulher bonita de uns cinquenta anos voar sobre a cabeça de José, mas pedir ao garçom para fazer ninho na mesa dessa mulher...

- Senhor?

José sentiu uma mão delicada a segurar seu braço.

- Vem, sente-se. Acho que o senhor precisa de um pouco de água. Garçom, um copo de água, por favor.

José tomou a água num gole, a mulher bonita de uns cinquenta anos tomou um copo de cerveja, ela esboçou um sorriso, era o sorriso mais lindo que José já vira na vida, era o sorriso que desejava enquanto dirigia seu Ford Ka.

- Diga, como é teu nome? Por que estava me procurando?

- Meu nome é José, José dos Santos. Essa parte não é difícil, mas, por que eu estava te procurando... isso é bem difícil... isso foi uma loucura minha...

- Uma loucura? Eu estava precisando mesmo de uma...

Ela estava também precisando de uma loucura. Que loucura! O bar estava lotado agora, nenhuma mesa estava disponível e havia clientes aguardando na porta. Em cada mesa parecia ter alguma loucura acontecendo. José desviou os olhos à esquerda da mulher bonita à sua frente e olhou para a mesas diante de si, na mesa mais próxima todos bebiam um brinde a alguém ou a alguma coisa, na outra tinha dois casais e o marido de uma colocava disfarçadamente um dos pés por debaixo da mesa, entre as pernas da mulher do outro enquanto conversava animadamente com o marido dela. O pássaro estava fazendo seu ninho!  Se olhasse cada mesa tinha lá um pássaro querendo fazer ninho... sim tinha lá suas exceções! José era uma exceção. Era?

- Qual foi a tua loucura? Me conte.

- É que, na verdade, eu não estava procurando você, quer dizer, estava, mas não era você, não era você, mas era você.

- Daí você me achou.

- Sim, daí o garçom me trouxe até aqui.

- Então vamos brindar a tua loucura, garçom um copo, não precisa, toma nesse da água mesmo.

Então brindaram à loucura, depois brindaram ao seu primeiro encontro, daí brindaram alguém ter feito uma loucura por uma mulher bonita de uns cinquenta anos, brindaram à vida, ao amor, aos desejos sexuais dos idosos, à filosofia, à literatura e ao marido da mulher bonita de uns cinquenta anos.

- Marido?

- Sim, olha ele aí, ele é escritor, vai amar essa história, certamente amanhã estará publicada na Folha de Dourados.


domingo, 3 de novembro de 2024

UMA LOUCURA POR MIM! (PARTE 1 e 2)

 PARTE 1   -   O RESTAURANTE



            Dourados é uma cidade universitária, por isso atrai uma grande quantidade de jovens de vários estados que vêm estudar, muitos desses jovens gostam mais de bares e restaurantes do que dos bancos da faculdade! Nada que seja proibido, é até incentivado pela grande quantidade de estabelecimentos que se espalham pela cidade, muitos em ruas próximas do centro. Na rua Ponta Porã, um pouco afastado dessa muvuca fica o Ristorante e Pizzeria do Gringo, que atende um público um pouco diferenciado, moradores antigos da cidade preferem um som ambiente mais calmo para beber e conversar, e saber que quando falam serão ouvidos, o Ristorante fica lotado, especialmente nos finais de semana.

            José é um pacato cidadão, apesar de nunca ter entrado no Gringo, já passou em frente muitas vezes, até parou uma vez na porta para ver como era lá dentro, quando o garçom lhe perguntou se queria entrar, pediu uma informação qualquer e saiu. Uma semana depois voltou ao restaurante e pediu que lhe trouxesse uma garrafa de água, o garçom convidou para que entrasse e ficasse à vontade, mas José preferiu ficar na porta e observar. Tudo o que queria era saber como as pessoas se comportavam naquele lugar. “É o espelho do mundo, mas não vejo o reflexo de mim”. Uma moça que entrava virou a cabeça pensando que José tinha lhe falado, mas ele saiu, o namorado puxou-a para dentro e foram sentar-se à uma mesa onde já estava outro casal à sua espera.

            O carro do José, um Ford KA, recebeu as mãos suadas do dono sobre o capô e ficou esperando que a chave fosse enfiada na porta para liberar as travas e permitir que aquela timidez toda entrasse e tomasse conta da direção. Mas os olhos do dono estavam baixos demais para qualquer movimento das mãos. Enquanto isso, bem diante dos olhos do Ford KA, duas mulheres acendiam seus cigarros e reclamavam da solidão em meio a tantos homens solteiros loucos por um encontro. “O Cupido deve estar de folga, ou bebeu demais na muvuca dos estudantes no Centro”. A loira, que acendeu o cigarro primeiro e aparentava, assim como a outra, uns cinquenta anos, deu uma baforada longa e soprou para o alto, deixou os olhos subirem com a fumaça, então exclamou com sua pele tristemente branca: “Se eu fosse uma índia, faria um sinal de fumaça”.

            Acabada a fumaceira e dispensadas as bitucas, as duas mulheres, dotadas de pelo menos cinquenta anos de sabedoria, deram-se aos olhares dos muitos homens solteiros que bebiam cervejas e comiam pizza recheadas de risos, conversas animadas e olhares fugidios. A mesa ainda estava lá, disponível, então sentaram-se e encomendaram a janta e fizeram um brinde à solteirice. “Viva!” José continuava lá fora, com a certeza de que ali, naquele restaurante, bebia o seu desejo de relacionamento. Entrou no Ford KA e sentiu-se abraçado pelo sinto de segurança, abraçou o volante e sentiu um forte desejo de fazer um acordo com o Cupido e entrar no restaurante. Corou o rosto de vermelho e pensou que melhor seria ir para casa, os sonhos não seguem nenhuma regra, mas entrar no Ristorante, ah, isso seria uma loucura!


PARTE 2   -  UMA MULHER BONITA DE UNS CINQUENTA ANOS



Janice é uma mulher dessas que se pode chamar de culta, fez faculdade de filosofia na Universidade Católica de Campo Grande na década de 1.990, quando conheceu o Eduardo, jovem estudante de economia da Universidade Federal. Ambos se formaram em 1996, dois anos depois iniciaram juntos o curso de Letras, Janice queria ser professora, enquanto Eduardo sonhava com a carreira de escritor e já dava seus pitacos no Jornal Correio do Estado, publicando suas crônicas. Nessa época os cabelos da Janice ainda eram loiros e passavam do meio das costas, quase até a cintura.

O casamento foi em 1.999, logo depois que Janice conseguiu seu primeiro emprego de professora de filosofia numa escola particular. Fã de Proudhon e Bakunin por influência do agora marido, recebeu sua primeira observação sobre suas aulas ainda no primeiro semestre letivo. O diretor pedia que fosse dado menos ênfase aos movimentos anarquistas, era um pedido de alguns pais de alunos que entendiam que a escola não podia se colocar ideologicamente na contramão do neoliberalismo e da globalização, importante ideário do desenvolvimento capitalista mundial. A professora Janice tinha os cabelos ruivos que chegavam até quase o meio das costas.

As letras levaram Eduardo ao jornalismo e nas horas vagas continuava a escrever seus contos e crônicas. O casamento ia bem e os gêmeos nasceram em 2005. Quando Joãozinho e Marcinha fizeram o terceiro ano de idade, as professoras da escola organizaram uma festinha, Janice levou bolo, bolachas, salgados e refrigerantes e convidou os pais dos coleguinhas dos filhos para comemorar o aniversário dos gêmeos. Eduardo estava cobrindo o noticiário de um acidente grave ocorrido a pouco entre um trem e uma van escolar e só chegou quando a festa tinha acabado e os pais já tinham quase todos ido embora, ficando apenas a Janice que conversava animadamente com o Vicente, pai das meninas Júlia e Lorena que tinham um e dois anos mais que os filhos dela. A conversa estava tão animada e eles estavam tão próximos um do outro quando Eduardo chegou, que Janice corou completamente ao vê-lo, Eduardo sorriu, cumprimentou Janice com um beijo e entrou na conversa com o mesmo ânimo dos dois, fazendo perguntas e rindo e falando do seu trabalho e das crônicas e contos que escrevia. Em casa, Janice não sabia como se comportar, Eduardo percebeu o desconforto da esposa e tratou de acalma-la dizendo que não se preocupasse, ele confiava nela e ‘aquilo’ serviria para sua próxima crônica. “Estava mesmo precisando de alguma inspiração”.

Depois desse episódio, o amor entre ele se fortaleceu e a confiança também, Eduardo tinha admiradoras do seu trabalho com quem se relacionava amigavelmente, Janice também tinha seus admiradores e nem um nem outra demonstravam ciúmes por causa disso. Um dia Janice disse se sentir bem com essa liberdade, ao que Eduardo respondeu rindo: “Somos anarquistas!” Eduardo lançou seu primeiro livro de Contos em 2.015, em 2.020 publicou um romance e em 2.023 o segundo romance, este já em Dourados um ano depois da mudança. Janice continua lecionando filosofia, continua bonita, mas agora os cabelos são castanho-claro e compridos até os ombros. Joãozinho e Marcinha estão se preparando para o vestibular. Os pais encontraram uma pizzaria muito legal na rua Ponta Porã e sempre vão lá. Sábado passado reservaram uma mesa, mas ao  se sentarem o telefone tocou e Eduardo teve que sair às pressas para o Jornal de onde só saiu uma hora depois, Janice ficou, continuou tomando a cerveja que tinham começado e enquanto esperava pela volta do marido, o garçom lhe disse que “o cara que você estava esperando chegou”.


terça-feira, 29 de outubro de 2024

VEM


Vem ficar comigo

Nem que seja por um dia

Pra me fazer viver

 

Mas vem com saudades

Que eu te quero inteira

E boa como um dia de querer

 

E traz junto contigo

Aquele aroma gostoso do trigo

E o fermento que me faz crescer

 

Traz também o sonho

De viver comigo eternamente

E o impossível que dura para sempre

 

Então vem

E deixe eu te querer

Até que o impossível seja você!





sábado, 26 de outubro de 2024

A FESTA

 



Tinha um punhado de gente andando de um lado para outro e do outro para um, e era um punhado bem grande de gente, nem dava para contar, o Adriano pegou o celular e filmou aquelas gentes todas que estavam lá, indo e vindo e indo de novo, e tinha música e um montão de barracas vendendo de um tudo que se pode comprar em barracas que se enfileiram numa rua e ao redor da praça. Adriano continuou filmando porque era bem curioso ver tanta gente se agitando num sábado à noite, mas ele não sabia o que era, daí perguntou para um sujeito que tinha os cabelos bem compridos, trançados, estilo rastafári, usava calças bem largas, estilo oversized e uma camiseta, também de um número maior que o “normal”, destaquei porque agora já nem sei mais o que é normal, tantas pessoas pareciam usar camisetas e calças maiores que o número que até então me parecia normal que parece que o normal mudou. O de cabelos rastafári olhou meio desconfiado para Adriano e mostrou a enorme faixa sobre o palco, que dizia: FESTOP-FESTIVAL DE TODOS OS POVOS! Não falou nada. Nem foi preciso!

Adriano escutou um falatório bem alto do outro lado da praça e foi ver o que era, no caminho aquela gentarada toda se cruzando e era gente de todo tipo, uns branquelos como ele, outros negros, mulatos mestiços, índios, sei lá como se classifica os demais que estavam por lá, andando pela praça dava bem para entender a faixa sobre o palco. No meio da praça tinha uma fonte de água e do outro lado uma aglomeração de gente para ver uns escritores lançando livros. Não, eles não estavam atirando livros para cima, estavam dizendo que escreveram novos livros e que iam vende-los para quem quisesse comprar. Não demorou e eles já estavam cada um numa mesa autografando seus livros para quem quisesse adquirir. É bem chique ter um livro autografado pelo autor! Adriano saiu de lá com dois, um do Jaiminho e outro da Ana Cláudia Brida. Duas vezes chique!

No palco principal, uma cantora bonitona, toda vestida de preto, acompanhada por um guitarrista, um contrabaixista e um baterista, todos de preto, contava uma linda canção em guarani. Que voz! Adriano quis saber de onde ela era, talvez de Assunção, no Paraguai, ou de algum outro grande centro urbano. Mas não. Ela é de Dourados! Que talento! E é daqui! O nome dela é Dami Baz. Por esse mesmo palco passaram inúmeras apresentações, música, dança, contadores de história, ao lado da Tenda da Literatura também se apresentavam outros artistas. Parecia haver uma disputa entre o palco principal e a Tenda da Literatura para ver quem apresentava os melhores talentos artísticos.

O FESTOP, eu acho que é o evento cultural mais importante de Dourados, talvez até de Mato Grosso do Sul, são três dias de uma intensa programação congregando as mais diversas manifestações culturais da nossa cidade, trazendo para o mesmo local desde a música clássica trabalhada na Universidade até o funk, passando por pop rock e a música popular, muito bem cantada pelo jovem cantor João Martinelli, que ainda beira os dezesseis anos de idade.

O Festival de Todos os Povos está no calendário oficial de eventos da cidade de Dourados e de lá não deve sair nunca mais!

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

YOM KIPPUR

 



“As coisas sempre andam bem quando tudo está bem. Cara, essa foi de uma profundidade filosófica extraordinária! Eu amo filosofia e detesto adaptações, agora mesmo estou lendo um texto adaptado do livro Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Comprei pensando ser o original, mas quando chegou e os meus olhos brilharam e estava tudo bem, daí prestei atenção na capa e lá dizia “Texto Adaptado”, mesmo assim comecei a ler o livro e vou ler até o final, com uma sofrência igual ouvir música sertaneja universitária, esse tal de sertanojo, que é uma adaptação horrível da verdadeira e bela música sertaneja”.

“O Yom Kippur já passou”, disse o judeuzinho que viajava no carro comigo. Eu percebi que um carro diferente tinha passado em alta velocidade, só não entendi a observação do judeuzinho que ia de carona comigo. “Tá”, respondi e continuei andando a 90 quilômetros por hora na minha saveiro. “O Yom Kippur, é importante se você quiser ficar sempre bem”, insistiu o judeu. Olhei de soslaio, esse judeuzinho só podia estar me gozando. “Não estou disputando corrida com esse ianki não sei o quê. De saveiro vamos chegar ao nosso destino do mesmo jeito, não precisamos de um carro como esse ianki...” “Yom Kippur, é o dia do perdão, já passou, mas você ainda pode perdoar, senão Deus vai apagar o teu nome do Livro da Vida”. “De quê eu deveria pedir perdão?”

O judeuzinho que me perdoe, antes que seja tarde, chama-lo judeuzinho, mas ele é judeu mesmo, o nome dele é Yosef. Eu o chamo judeuzinho devido sua origem e a baixa estatura que não passa de 1,55 metro de altura, mas agora vou apenas chama-lo pelo nome, Yosef, parece que ele sabe a Torá de cor, isso às vezes atrapalha nossa conversação, pois eu sou cristão não praticante e pouco entendo da cultura judaica. Se há um trabalho a ser realizado na sexta-feira e se estende para além do pôr-do-Sol, o judeuzinho, quero dizer, Yosef, para imediatamente e não há quem o faça concluir o trabalho. “Por nada deste mundo. Shabat!”, é sempre a resposta. “Eu sou crente, nós guardamos o domingo” é minha argumentação. “Então peça perdão por não cumprir o quarto mandamento”.

Para que as coisas fiquem bem, eu evito confrontar a Torá, não adianta, é como mastigar pedra brita, você nunca vai conseguir tritura-la para engolir. Quer ficar bem com o Yosef, então é melhor guardar o quarto mandamento. “Mas, o que esse Yomki...?” “Yom kippur. Você disse: As coisas sempre andam bem quando tudo está bem. Para tudo fiar bem, tem que perdoar, até os textos adaptados e os que cantam sertanojo”. “Tá bom” eu disse “eu perdoo os textos adaptados e os que cantam sertanojo, só não me obrigue a ouvi-los”. Pronto, dei o assunto por encerrado e liguei uma música do Pink Floyd no blue tooth do rádio do carro.

Meia hora mais tarde parei a saveiro para abastecer e fomos tomar café na lanchonete do posto de gasolina. Yosef fez uma reverência ao Deus da Torá e comeu um pastel de queijo, eu comi um pão de queijo. “O queijo nos unifica” ele disse e propôs um brinde a isso. Rimos e tomamos nosso café com leite, que também nos unificava, e saímos conversando alegremente. Do lado de fora da lanchonete um casal fazia seus ajustes de alguma conta sentimental que não fechava. “Me desculpa, isso não vai mais acontecer” dizia o marido, ou namorido, seja lá o que for. A mulher ainda argumentava raivosa quando entramos na saveiro e partimos, havia trabalho a fazer e era sexta-feira, tinha que terminar antes do pô-do-Sol.

Acho que o jud... Yosef queria falar algo sobre a discussão do casal do pátio da lanchonete do posto. Acho que eu não dei muito espaço para ele falar, primeiro aumentei o volume da música e disse que amo Pink Floyd, depois reclamei dos livros adaptados e do sertanojo e finalmente lembrei que deveríamos chegar logo porque era sexta-feira e o serviço tinha que ser concluído antes do pôr-do-sol e que o tempo estava formando para chuva e isso poderia atrapalhar. “Não vai atrapalhar, HaShem é poderoso e cuida de tudo para os que são fiéis” Tenho que reconhecer, Yosef é mesmo um homem fiel!

Às dez e meia estacionei a saveiro no canteiro de obras e fomos direto ao escritório onde um engenheiro fazia a programação do sistema de automação. A obra da construção dos silos estava praticamente concluída, agora era hora de verificar se todo o sistema de automatização estava funcionando. Eu não entendo nada de automação de silos, mas vi Yosef e o engenheiro de programação discutindo sobre o tempo, algumas nuvens bem escuras ameaçavam a conclusão das obras e o pedreiro tinha cometido um erro que estava atrapalhando o funcionamento de uma correia de transmissão. O engenheiro esbravejava raivoso, Yosef, calmamente pedia que ele o perdoasse.       “HaShen está do nosso lado”. “É, mas se a obra atrasar e passar das seis da tarde você não trabalha e fica tudo para a semana que vem!” Dito isso, o engenheiro se desculpou e Yosef o perdoou, assim Deus não apagou seu nome do livro da vida.

Às seis da tarde a obra foi dada por finalizada, enquanto toda a equipe se preparava para um churrasco e muita cerveja, Yosef retirado para um espaço distante, iniciava suas orações. Não adiantaram os insistentes convites, já era Shabat e o judeuzinho não iria festejar. Tentei convence-lo de que ali, naquele lugar ermo, talvez o Shabat pudesse iniciar no dia seguinte, mas ele não cedeu e ainda me chamou a atenção perguntando se eu agora já não ligava de ouvir sertanojo. É, sertanojo rolava solto e o churrasco era servido em porções e a cerveja estava bem gelada e era infinita, assim dá para perdoar facilmente o sertanojo. Tentei argumentar que o proprietário da fazenda, que era também um grande empresário em Ponta Porã, iria chegar mais tarde para confraternizar pela obra concluída, ao que Yosef me respondeu: “Shabat Shalon”.

Eram nove e meia da noite quando foi anunciado que Hussein estaria chegando. “Hussein?” Perguntou Yosef, desconfiado. O mestre de obras, intrigado com a pergunta fez questão de explicar que Hussein provavelmente seria seu compatriota, já que ele viera da Palestina há anos e fixara residência em Ponta Porã onde abrira lojas e ficara rico, muito rico! “Palestina” disse Yosef e saiu para longe de todos. Logo em seguida chegou Hussein acompanhado de quatro seguranças armados, cumprimentou a todos e agradeceu pelo empenho de cada um, fez de conta que comeu e até pegou um copo de cerveja e bebeu. Passado algum tempo, despediu-se de todos e rumou com seus capangas para o carro blindado, antes que entrasse no carro ouviu-se um barulho, algo tinha sido atirado contra o carro de Hussein, era uma pedra, uma enorme pedra, a maior que um ser humano muito raivoso seria capaz de atirar de uma distância de dois metros. Quem mais poderia ser, senão ele, o judeuzinho Yosef. “Ele é palestino, é terrorista” e atirou outra pedra certeira na cabeça de Hussein, abriu uma cratera atrás da orelha do empresário.

Uma semana depois fui visitar Yosef no presídio estadual, ele não estava abatido, achava que tinha comprido seu dever religioso de eliminar um incircunciso que ocupava a terra prometida. Antes de sair, olhei com ar compreensivo e disse: “Yom Kippur”.

Agora penso: Faz algum sentido?

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

AS RUAS DE DOURDOS

 



Dourados é considerada uma cidade modelo por ter uma excelente qualidade de vida, infraestrutura completa e uma vasta oferta de lazer e entretenimento. Essa é a visão geral criada por IA, a tal da inteligência artificial. Essa visão da IA é bem animadora porque eu moro em Dourados há quase quarenta anos e ainda não tinha percebido que era isso tudo! De qualquer forma, fiquei feliz de saber que eu moro há tanto tempo numa cidade tão boa, fiquei feliz e fui curtir todas as possibilidades que a cidade oferece, segundo a IA.

Logo de cara fui para a avenida mais importante da cidade, a Marcelino Pires. Dizem que esse Marcelino teria doado partes de suas terras para a fundação da cidade de Dourados, lá pelos idos de mil e novecentos. Dizem também que ele não doou coisíssima nenhuma, porque as terras que ele teria ocupado eram públicas, as tais terras devolutas, e por tanto pertenciam ao estado que, aí sim, pelo Decreto nº 402, de 3 de setembro de 1915, fez a reserva das terras públicas para a criação do patrimônio de Dourados, foram 3.600 hectares, segundo o historiador Carlos M. Amarilha, publicadas no jornal Campo Grande News.

A avenida Marcelino Pires foi uma das primeiras ruas que conheci quando vim para Dourados nos idos de 1.985. É uma bela avenida! Quando desci do ônibus, na rodoviária, e meus pés pisaram pela primeira vez na Marcelino, meus sonhos encheram esse lugar com os mais lindos desejos de uma vida nova, próspera e feliz! Neste tempo, a cidade já era Modelo, reconhecida pelo Governador de Mato Grosso, Fernando Correia da Costa, através da Portaria nº 314, de 27 de dezembro de 1.965. Vinte anos depois, eu pisava este chão para estudar na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e trabalhar para sobreviver e quem sabe até viver um pouco se o dinheiro fosse suficiente.

A avenida Marcelino Pires corta a cidade de Oeste a Leste, dividindo-a praticamente ao meio. A metade ao Norte é mais aburguesada, onde se encontram conjuntos residenciais com casas maiores e mais luxuosas, cercadas por muros altíssimos e cheias de câmeras de segurança e empresas de vigilância atuando vinte e quatro horas por dia com medo de que os residentes em outros bairros lhes possas causar algum mal enquanto nadam em suas piscinas olímpicas ou praticam esportes ou, ainda, fazem suas festas em grande estilo.

No lado Sul, tradicionalmente se localizam bairros mais populares e algumas áreas de ocupação e, de vez em quando, algum princípio de favelização, um horror para os do Norte, uma ponta de esperança para os do Sul. Mas, uma avenida não é um muro. Por mais que se queira construir muros ideológicos e sociais, não se pode fazer leis que impeçam a ocupação geográfica urbana, assim, já não se pode afirmar que as classes sociais estão dividas pela Marcelino Pires. Antes que esta se prolongasse até o rodovia BR 163, bairros populares já tinham atravessado a linha imaginária da divisão e, hoje, a burguesia luta para se esconder atrás de muros e cercas elétricas, o pobres já se aproximam demasiadamente dos condomínios!

Deixei a Avenida e fui até onde onde ela termina, ou começa, e adentrei num enorme parque semiabandonado pelo poder público. É o Parque Antenor Martins. O Parque homenageia o pecuarista do mesmo nome, que foi também vereador por três mandatos. Um homem de posses, representante da burguesia douradense. Curiosamente (?) a burguesia que esse nome representa não frequenta o Parque. O local é apreciado por pessoas da classe trabalhadora que residem em bairros populares próximos. Andei pela borda do belo lago, por entre as árvores que sombreiam parte do gramado e fui me refrescar na pequena reserva de mata num canto do Parque, próximo de um posto de polícia da guarda municipal.

Andando tão silenciosamente quanto é possível numa trilha, entre árvores e arbustos, ouvi uma conversa animada. Um grupo de pessoas pareciam estar se divertindo, eu reconheci algumas das vozes, eram pessoas amigas, aproximei-me e eles, ao me verem, nem tentaram disfarçar o que faziam, estavam fumando tranquilamente seu cigarro de maconha. Me chamaram para a roda e perguntaram se eu queria ‘dar um tapa”... Eu... disse... que sim.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

DE CONCHINHA

 



Eram cinco horas da manhã e o dia mal dava sinal que clareava pelas frestas da veneziana que protegia o quarto de amanhecer junto com o dia. Joana mexeu levemente o rosto, mas não abriu os olhos, não queria abrir, queria continuar dormindo, acordara de um sonho e queria continuar sonhando, era um sonho bom. Como qualquer sonho, esse também se parecia com um filme que estamos assistindo, mas do qual também somos atores em cena. Joana estava numa festa, dançando e bebendo, a música começou a tocar lenta e um homem que já a observava, veio dançar com ela, ele era lindo, falava coisas agradáveis e, do nada, lhe beijou na boca. Delícia de beijo!! De repente estava em casa e o cara da dança lhe falava coisas familiares, era o mesmo cara da festa, mas era o seu marido, e lhe dava flores e ela o beijou como mesmo beijo da festa e, então fizeram sua festinha particular, beberam cerveja e estavam alegres, andavam para o quarto deixando peças de roupa pelo corredor. Quando ela acordou e tomou consciência de estava mesmo no quarto e com pouquíssimas peças de roupa, o marido ainda dormia. Talvez dormia.

Joana passou a mão levemente pelo corpo e sentiu a presença da camisola de seda, sem abrir os olhos tirou-a lentamente pensando em como seria o sonho se não tivesse acordado. Talvez continuasse o sonho se o marido acordasse e colocasse sua perna esquerda entre a suas como ele gosta de fazer, encostando o peito nas suas costas e passando a mão por baixo do seu braço... Joana estava excitada. Quis acordar o marido, mas não queria mudar de posição, passou a mão por detrás de si para tocar levemente o marido, não o alcançou. Mediu a distância em sua frente, um braço, então estava no meio da cama e um braço para trás... não alcançou o marido? Esticou mais um pouco o braço e alcançou a lateral da cama. Então abriu os olhos sobressaltada.

- Marcelo? – Chamou Joana quase num susto.

“Deve ter ido ao banheiro”, pensou. “É isso que dá tomar cerveja antes de dormir, depois da primeira não sabe a conta da última”. Joana estava agora com os olhos bem abertos, sem nenhuma chance de o sonho continuar, “talvez ele volte do banheiro animado...”. Voltou a se deitar de lado, deixou a perna esquerda um pouco afastada para quando o marido voltar já ter o espaço para a sua perna entre as dela. Esperou assim por um tempo, mas nada dele aparecer. Nada, nem um barulho sequer que viesse do banheiro. Nada. Joana sentiu vontade de se virar na cama, mas queria que o marido a encontrasse ‘nessa’ posição, ele não resistiria e o sonho teria continuidade! Mas ele não vinha! Do banheiro não vinha nenhum ruído. “Será que desmaiou?”

Sentou na cama e olhou para o relógio no celular, cinco e meia. Já não adiantaria voltar a se deitar de lado com a perna esquerda um pouco afastada, angustiada como estava, mesmo que Marcelo voltasse para o quarto cantando Roberto Carlos, não adiantaria, a ansiedade acomodara os hormônios, cada um em seu berço. O que Marcelo estaria fazendo no banheiro até esta hora? Foi lá para ver, o banheiro estava vazio, ninguém por lá. Decerto estaria na cozinha. Joana olhou-se no espelho do banheiro e se achou muito bonita! Ensaiou uns passos de dança sensual e puxou levemente a calcinha para baixo como se fizesse um strip, os hormônios acordaram e saltaram do berço num pulo só, olhou em volta, estava só. Voltou ao quarto e vestiu uma calça de abrigo rosa e uma blusa de malha fria, pôs os hormônios de volta no berço e foi até a cozinha.

Os passos ligeiros e a pisada firme denunciavam o mau humor! A luz apagada indicava que não havia ninguém preparando o café da manhã.

- Marcelo? – Agora Joana chamava em voz alta.

Olhou o relógio da parede e viu os ponteiros marcarem quinze para as seis. O dia já estava claro. Dentro de casa ele não estava, então só podia estar no quintal. A brisa fresca da manhã apanhou Joana de frente, ela sentiu aquele ar puro com cheiro das plantas. Como é bom morar numa casa com quintal grande! Os pés de acerola cheios de suas pequenas flores, as jabuticabas carregadas de frutos maduros, delícia! A goiabeira esperando pelo fim do ano e as bananeiras dando cacho. Uma pequena horta produzindo verduras para as saladas e até umas galinhas proibidas já ciscavam o quintal, tudo cuidado pelo Josimar, trabalhador que há dois anos toma conta do quintal para Joana. De agora em diante quem vai mandar nele será o Marcelo. Marcelo? Cadê o Marcelo?

- Marcelo? – Joana perguntou, mas ninguém respondeu.

Joana sentiu fome, voltou à cozinha para o desjejum. Esquentou o leite, juntou uma colherinha de café instantâneo e tomou comendo duas fatias de pão integral com geleia de amora e uma fatia de queijo prato, comeu, também, uma banana e uma maçã e foi escovar os dentes. Quando entrou no banheiro foi olhar-se no espelho e lembrou da cena de streep que ensaiara há pouco. Não resistiu e foi tirando as roupas ao som de uma música imaginária, primeiro tirou a blusa de malha fria, depois a calça de abrigo, passou a mão suavemente pelo corpo e ameaçou tirar a calcinha. Joana sentiu-se muito atraente, os hormônios estavam outra vez acordadíssimos! Daí pensou em Marcelo, por que ele não estava ali? O telefone chamou, Joana saiu em disparada para atender. Era Marcelo.

- Marcelo? Onde você está? – A voz estava aflita!

- Bom dia meu amor! Como assim, onde você está? Estou em casa, acabei de acordar.

- Em casa, como assim, eu te procurei por todo canto.

- Estou em casa, na minha casa. Bom, minha, mas só até hoje. Logo mais à tarde, quando nos casarmos, então a minha casa será aí, na tua casa e a tua casa, então, será a nossa casa. Daí você não precisará mais me procurar, pois eu vou te acordar cada dia daquele jeito que te acordei antes de ontem, de conchinha, com a minha perna entre as tuas e minha mão passeando pelo teu corpo. Ah, não vejo a hora!

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

TAMBÉM SOU CANDIDATO

 



A eleição já passou, mas eu ainda estou em campanha.

Eleição é quase como uma prova de vestibular numa universidade pública, só que às avessas. Para entrar na universidade, pública, claro, o candidato tem que estudar muito e fazer a prova sozinho, deixando os professores do cursinho ou do ensino médio de fora. No processo eleitoral tudo se dá ao inverso, as questões das provas são geralmente respondidas pelos assessores e, candidatos incompetentes e sem nenhum mérito acabam sendo aprovados e ocupam vagas que deveriam ser ocupadas por pessoas mais competentes e comprometidas com a sociedade. Mais ou menos como nos cursos de Educação à Distância das faculdades privadas, onde as provas são aplicadas, também à distância, sem nenhum controle da instituição e o aluno é sempre aprovado porque as vagas são infinitas e o maior interesse da instituição é o valor da mensalidade que o aluno vai pagar a cada mês do curso, igualzinho os candidatos que estão comprometidos em receber, a cada mês do mandato, o salário destinado ao cargo eletivo. Mas, só alguns passam na prova das urnas.

Eu já fui candidato a muitas coisas: no movimento estudantil, associação de moradores, sindicato, produtores rurais da agricultura familiar e até a vice-prefeito da minha cidade, só esta última não fui eleito, a única em que seria remunerado! Acho isso uma grande injustiça. Me candidatei a marido algumas vezes, mas aí só deu despesas, e grande! Ultimamente ando me candidatando a ganhador da mega-sena, é uma eleição difícil, eu sei, mas se ganhar, ah, se ganhar, até para marido me candidato outra vez, mesmo sabendo do prejuízo. Nem ligo!

Sábado joguei na mega-sena, domingo votei para prefeito e vereador, não ganhei em nenhum dos pleitos, nem eu nem meus candidatos. Dizem por aí que se apostar muito dinheiro na mega-sena a probabilidade de ganhar aumenta, dizem também que para ganhar uma eleição se gasta muito dinheiro, às vezes mais até do que o valor total do salário durante o mandato. Sei lá, é o que dizem. Pela estrutura de algumas campanhas, eu até acredito neste dito, cada um que se explique. Ontem me disseram que era dinheiro do fundo eleitoral. Então a dinheirama que gastam nas campanhas é meu também? Pera aí, se parte desse dinheiro é meu, então que seja gasto com os candidatos que eu apoio. Que história é essa de pegar dinheiro do orçamento público para fazer campanha contra o público! Será que tem dinheiro público para campanha de candidato a marido? Depois é só se inscreve no Bolsa Família...

Administrar uma cidade e quase como administrar uma família, é preciso cuidar para que todos sejam atendidos em suas necessidades e ela, a cidade, é como uma esposa, gosta de estar bonita e receber o carinho do administrador, em suma, é bem um casamento. E família é mesmo um negócio complicado, tem gente que não dá conta de administrar a família e se candidata a administrar a cidade! Quando ganha a eleição e toma posse faz festa e começa a Lua de Mel, mas quando os problemas surgem, logo dá um jeito de juntar os amigos correligionários e começa a pensar no divórcio, é preciso organizar outro relacionamento, outro cargo, deputado, talvez, daí o dinheiro que seria para a saúde, educação e segurança vai para a jogatina. Milhões de reais do dinheiro público são gastos na aposta de uma nova eleição. Isso é traição?

Me disseram que aqui em Dourados isso não acontece. Eu acreditei, mas que seja a última vez! Agora vou me dedicar a minha candidatura, eu quero ser marido, mas primeiro vou ganhar na mega-sena.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

A VIDA NÃO É GENTIL

 



Algumas pessoas são extremamente gentis. O Padre Júlio Lancelotti parece ser uma dessas. Pelo seu trabalho diário em atenção às pessoas que tem necessidades muitas pelas ruas e avenidas de São Paulo, dá para se dizer que Padre Júlio é um sério candidato à Santo da Igreja Católica. Sua gentileza produz dezenas de milagres todos os dias. Gentileza é o produto mais valioso que alguém pode dar a um ser humano perambulando pelas ruas, com fome, com sede, vestindo trapos, cabelos e barba do ano passado e cheirando a cachorro molhado. Em determinado período da minha vida eu já estive bem perto disso. Nessa hora, quando alguém trata um ser desses, quase desumano, com alguma dignidade, isso parece um ato revolucionário. E é. Pessoas fedendo e sem nenhuma capacidade de alimentar o sistema capitalistas não devem ser tratadas com dignidade, elas atrapalham a vida de quem produz riquezas materiais. ....??.... .

Mulheres boas são as perfumadas, sorriso pronto nos lábios pintados de batom e rosto enfeitado por cabelos alisados na chapinha, tratados com shampoo e condicionar, sem contar a pele bem hidratada e a lipoaspiração em algumas partes do corpo. E a gentileza? Mulheres tem que ser bonitas, os homens é que tem que ser gentis! Em geral não são. E quanto mais poderosos, mais se tornam uns brutamontes. É bíblico que os seres humanos nascem maus, e continuam sendo maus porque o meio onde vivem é mau, o sistema social é excludente e concentrador. Ficamos maravilhados com o capitalismo Norte Americano, onde o país mais rico do mundo patrocina o horror que está sendo cometido por Israel contra os Palestinos. Quem se importa? O Estado Judeu investe aproximadamente US$ 270 milhões, isso mesmo, de dólares, o equivalente a R$ 1,3 bilhão, por dia na guerra contra um povo que nem sequer um país é. Se, gentilmente, investisse metade disso, ou ainda mentos, em projetos de desenvolvimento daquele povo, jamais teria que fazer guerra nesse local.

As guerras são a vitrine do sistema, juntos Israel e Rússia gastam o equivalente a aproximadamente 8 bilhões de reais por dia nas guerras atuais. Dinheirama que vai para a indústria bélica, me faça a gentileza de entender que isso não tem nada a ver com gentileza! Tem a ver com gentileza o pãozinho que o Padre Júlio distribui nas ruas em São Paulo, mas isso não dá lucro para a indústria de armas e nem poder aos que se acham os donos do mundo. Padre Júlio é um pouco daquilo que gostaríamos de ser, mas não somos. Somos muito mais os brutos que jogam bomba em cima das pessoas pobres, das mulheres e crianças, para alimentar o sistema que mata e exclui.

Estou escrevendo este texto com raiva, então faça a gentileza de me perdoar, estou com raiva de ver a instituição religiosa que canoniza pessoas gentis se transformarem em defensoras de uma elite estúpida que odeia as pessoas que mais precisam de gentileza. Estou com raiva de ver instituições religiosas que dizem amar o salvador dos mais pobres e das viúvas, pedindo, exigindo o dízimo de quem não tem pão para comer e construindo templos luxuosos onde Deus não habita, pois Deus não habita em santuários feitos por mãos humanas. (At 17-24). Estou com raiva de ver um povo que se diz povo eleito matar milhares de homens, mulheres e crianças inocentes e ainda ter coragem de se prostrar diante de um muro e lamentar a maldade humana com o texto sagrado nas mãos. Estou com raiva, muita raiva de saber que as igrejas estão cheiras de pessoas gananciosas que dizimam povos originários e no domingo batem no peito dizendo: Minha culpa, minha máxima culpa, mas na segunda-feira continuam cultivando o ódio. Eu estou com muita raiva desse sistema que dá mais valor ao capital que às pessoas e à natureza de Deus. Eu estou mesmo com muita raiva!

Gentileza é uma pequena ilha num oceano de estupidez. Quero fazer morada nessa ilha, plantar canteiros de desejos, alimentar bichinhos de estimação, cultivar o fruto proibido e morrer de amor pela pessoa que se disponha a ser a mais próxima. Estou de malas prontas!

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

AS PESSOAS E AS ABELHAS (Conto)

 



Marisvaldo é um sitiante e tem uma propriedade rural no distrito de Vila Vargas, próximo do Córrego que passa pelo distrito, onde planta uma roça de mandioca que é o principal produto de comercialização. Diariamente ele arranca os pés de mandioca e leva para casa na carreta do trator Massey Ferguson 50X que comprou há três anos quando o preço da mandioca estava elevado e a safra foi muito boa, juntou o lucro da safra com as economias de anos anteriores e realizou o sonho de comprar o trator, para o que ainda faltou, fez um financiamento em 24 parcelas no Banco do Brasil. Que maravilha! Agora o trabalho está mais fácil, mais ágil e Marisvaldo  não precisa contratar trabalhadores para tantas diárias como antes.

Sentado ao volante do seu Massey Ferguson 50X, Marisvaldo vai alegremente para casa, onde Dona Marilei o espera na sombra do pé de manga para lavar as mandiocas, depois descascar, daí lavar outra vez e separar em pacotes de um quilo cada. É serviço para o dia todo. Vários dias, até o congelador se encher e Marisvaldo levar para os mercados onde os vende por R$ 3,50 o quilo, o mercado vende ao consumidor por R$ 6,50 sem ter o trabalho que Marisvaldo teve de arar a terra, plantar, capinar, colher, descascar, embalar, congelar e ainda transportar até o mercado.

- Se os humanos fossem como as abelhas, não seria desse jeito – disse Marisvaldo, no outro dia, para Dona Marilei, enquanto tomavam chimarrão antes de ir para a cidade entregar as mercadorias.

- Abelhas não plantam mandioca – respondeu Marilei, rindo e sem entender o que o marido queria dizer.

- O mercado, - disse Marisvaldo - depois que apareceu essa palavra, os animais humanos se diferenciaram dos outros animais, e para pior. Quem dera fôssemos como os outros animais, ou como as abelhas.

- O que tem as abelhas? – Perguntou Marilei ocupada com a leiteira que já fervia o leite.

O que tem as abelhas? A resposta era tão óbvia que Marisvaldo até se irritou. Será que a mulher não é capaz de pensar? Basta observar as abelhas! Enquanto a mulher esperava por uma resposta, o marido puxou do bolso uma palha de milho, encheu com o fumo cortado, enrolou a palha sobre o fumo, pôs na boca e acendeu com uma brasa do fogão, deu uma baforada bem longa e olhou para a fumaça que se ia por cima das panelas. Estava mais calmo, até sorriu.

- As abelhas, elas são insetos voadores que produzem mel com o alimento que elas tiram das flores...

- A água está quente, - observou Marilei - puxa a chaleira mais para o canto.

Marilei levantou-se da cadeira e foi coar o café, a leiteira já tinha fervido o leite e estava na beira da chapa do fogão para não derramar por cima.

- As abelhas, Mari, você me perguntou sobre as abelhas...

- Eu sei, elas fazem mel, aqui na mesa tem um pote do que você colheu em junho, ainda tem mais lá dentro, na dispensa.

- É uma metáfora, Mari. As abelhas, elas têm uma filosofia de vida melhor que os humanos.

- Filosofia? Plantar mandioca para vender e comprar coisas boas para nós e você me agradar que eu dou par você, isso é filosofia, isso é a vida!

- Antropização...

- Também não precisava me xingar, eu estava brincando, eu gosto de dar para você porque você sempre me agrada, quando vai no mercado e vende as mandiocas, sempre traz um presente para mim. Vamos tomar café que tem muita mandioca para vender.

Marilei ficou em casa e aproveitou que o marido foi para a cidade e ia demorar por lá e fez uma limpeza geral, botou roupas na máquina, limpou o banheiro e passou pano por todos os cômodos. Embaixo da cama encontrou um livro que Marisvaldo estava lendo: Introdução à Sociologia. “Esse homem ainda vai endoidecer com esses livros que anda lendo, agora deu de falar coisas que não entendo. Filosofia! E aquele palavrão, antro... não sei o quê”. Abriu o livro e ficou um tempão olhando as palavras diferentes que estavam lá. Elite, Capitalismo, Instituição, Sociedade Estamental, Alteridade, Antropologia... “Antropologia? Foi essa a palavra que o Mari me falou?” Sentou-se na cama e foi ver significado de antropologia. Leu, releu, mas não achou o que queria achar. “Que que isso tem a ver com as abelhas?

- Oi Mari, já estou de volta. Eu trouxe um presente para te agradar!

- O que tem a ver Antropologia com as abelhas?

- Antropização, a palavra é antropização, que é como o ser humano se relaciona com o meio onde vive... Deixa prá lá, depois, mais tarde, eu te agrado com o presente.

CHIFRE EM CABEÇA DE CAVALO. EXISTE? EXISTE!

  Já botei no título o que poderia ser uma mentira, a ciência diz que cavalos não tem chifre, nem as éguas, mas na fazenda do Romero, que ...