PARTE I
Minha doença estava fazendo
aniversário quando tive a real compreensão da situação que eu estava vivendo,
melhor dizer: morrendo. Um ano, que aí na Terra se contam os dias, meses e
anos. Cá onde estou o tempo é dispensável. No infinito as doenças não podem
fazer aniversário porque elas não existem e nem mesmo o tempo. Tá ficando com
inveja, simples: morra!
Eu morri, e foi num dia esplêndido!
Mas não foi no aniversário da doença, que eu não ia dar essa moral pra ela.
Quando deixei esse mundo, o Sol brilhava no horizonte e entrava pela janela do
meu quarto no hospital e projetava na parede a sombra de uma árvore, desenhando
uma paisagem em preto e branco. Na mesinha, um vaso de flores dava o colorido
ao ambiente e os meus filhos e netos e a Cléo não sabiam se ficavam tristes ou
se se alegravam, afinal, eu estava prestes a deixá-los e me preparando para ir
ao o Paraíso! Não tenho do que reclamar, morri cercado de amor e afeto, isso é
quase um privilégio nesse mundo onde o tempo produz ansiedade e intolerância.
Não foi surpresa para ninguém eu ter
morrido, todos já sabiam, eles só não estavam de acordo que fosse “neste” dia.
O dia fatídico pareceu surpreender a todos com algo que já era de seu pleno
conhecimento. A morte é assim, todo mundo espera por ela a vida inteira, mas
quando ela chega, mesmo com ampla publicidade, parece surpreender até os mais
convictos crentes. A vida eterna, que só pode vir com a morte, é um desejo pelo
qual ansiamos a vida toda, mas quando ela se anuncia, a repudiamos como se
fosse a própria morte!
PARTE II
Não posso dar muitos detalhes deste
lugar onde estou para toda a eternidade, mas posso dizer que ando assistindo
alguns filmes que foram feitos de mim. É curioso saber que estamos sendo
filmados o tempo todo! Hoje fiquei um tempão vendo o dia em que me despedi dos
meus netos no Paraná, foi um dos dias mais emocionantes que vivi! Nesse dia vi
olhinhos brilhando, corações apertados e sorrisos sinceros, vi também lágrimas
puras descendo escondidas pela face da minha doce garotinha de quarenta anos.
“ –
Vim me despedir, eu disse com a maior naturalidade do mundo, porque foi
isso mesmo que fui fazer. Então sorri para eles.
- Por que Vô, você mal chegou, já vai embora? – Esse foi o Rafa.
- Vou, eu
disse, e talvez esta seja a última vez
que nos vemos.
Então falei para eles um pouco da
doença que estava deteriorando minhas carnes. O Lelê disse que não aceitava
isso porque era injusto. Eu concordei por realmente não ser justo eu ir para o
Paraíso e eles ficarem nesse lugar imundo, quer dizer nesse Mundo! Se me
permite uma semântica mais prosaica, eu diria que se o Mundo anda meio Imundo
então talvez seja a hora do Imundo refletir sobre suas próprias sujeiras e
voltar a ser Mundo. Tá, isso é difícil!
A Kari brincava com uma boneca de
pano fazendo ela dançar uma música religiosa muito bem ensaiada. Quando a
música acabou, ela sentou a boneca no colo e me perguntou se eu estava muito
triste. Eu disse que não e chamei os três para mais perto.
-
Vamos fazer um acordo, eu disse e todos concordaram que um acordo seria
possível de ser acordado. Então puxei uma folha de dentro da pasta que estava
comigo e comecei a ler todas as restrições alimentares que o médico me indicou,
quando acabei, o Lelê falou que acabara de entender porque eu não comera carne
na janta.
- Vô,
disse a Kari, não pode comer carne de
gado, nem de porco nem frango com pele, nem peixe de couro, camarão, frutos do
mar, nem bolo, nem pudim, nem nada de sobremesa, nem tomar cerveja, nem
refrigerante, ...
Enquanto a Kari ia falando eu ia
pensando, pela primeira vez, que tudo que eu não podia comer ou beber eram as
coisas que me pareciam as mais prazerosas na alimentação e o que eu ‘podia’
comer eram as coisas naturais, tipo sementes, verduras, frutas, legumes, sucos
naturais, essas coisas sem graça!
- Desse
jeito o vô vai morrer de fome! Disse Lelê e o carro que ele estava dirigindo sobre o sofá despencou num despenhadeiro da altura de pelo menos dez vezes a sua, e depois
de capotar duas vezes ficou em pé sobre as rodas sem um amassado sequer. Olha vô, ficou em pé!
- Se eu estivesse aí dentro,
sobreviveria!
A doença é um carro desgovernado...