CAPÍTULO UM
A vida no sítio é uma maravilha!
Contato com a natureza, criação de animais domésticos, produção de alimentos
orgânicos, um lago de peixes logo abaixo das nascentes de águas límpidas e o
mais importante: sossego. No sítio não há o incômodo barulho dos automóveis e nem
a miséria que bate à porta pelos pedintes de rua que carregam mais necessidades
do que precisam para viver. É uma maravilha! Seu Amantino é dono do Sítio
Alvorada, a 24 quilômetros da sede do distrito de Itahum que, no idioma
guarani, significa Pedra Preta.
Lá no Alvorada, Seu Amantino produz
de quase um tudo que precisa para viver e vende uns excedentes da produção para
poder comprar a coisas que não produz, como roupas, eletrodomésticos,
ferramentas e alguns alimentos industrializados. Numa pequena granja, o
sitiante produz galinhas que todas as semanas o feirante Josimar compra para
revender na feira livre do distrito, junto com as galinhas, que são levadas
vivas, também leva verduras, legumes, milho verde, mandioca, queijo e mel.
Somando as rendas e descontando as despesas, numa conta que o sitiante faz
olhando o dinheiro que lhe resta quando vai para a cidade, ume vez por mês, com
a esposa, o lucro gira em torno de uns dois mil e trezentos reais. Esse valor é
muito bem administrado pela esposa. Dona Esmeraldina, depois de abastecer o
Fiat Uno, compra tudo que consegue com os recursos disponíveis e assim, cada
mês se acaba com o saldo zero no bolso do marido, mas sempre fica umas moedas
na carteira da administradora que se orgulha de nunca ter ficado sem dinheiro
nesta vida, desde que se casou com Seu Amantino.
Era dezembro de 2022 Seu Amantino
disse que não ia poder levar dona Esmeraldina para a cidade porque os olhos
dele ‘estavam muito curtos’ para
dirigir o Fiat Uno. “Mas homem, daí é que tu tens que ir, pra ver um oculista”,
respondeu a mulher, e foi empurrando o marido para dentro do carro. O ‘oculista’ concordou em atender, mas Seu
Amantino deveria aguardar para fazer ‘um
encaixe’ entre um atendimento e outro, então não daria para saber quanto tempo
isso demoraria. Enquanto o marido esperava pelo encaixe, dona Esmeraldina foi às compras, que delícia essa
liberdade de escolher o que quisesse, ainda mais que nesse ano ela fizera
reserva mensal de dinheiro, escondida do marido, desde julho, então o natal
seria reforçado.
Dia vinte de dezembro é feriado na
cidade, mas as lojas abriram porque estava perto do Natal e parece que nesse
dia as tentações eram ainda maiores que nos outros meses. Cada loja tinha
enfeites, uns mais bonitos que os outros, luzes piscando, Papai Noel esbanjando
felicidade e distribuindo balas, músicas falavam de Jesus pelos alto-falantes e
essa mistura do real com o imaginário, do religioso com o profano, confundia um
pouco a cabeça da sitiante. Ela amava Jesus justamente porque ele era humilde,
se Jesus fosse sitiante, ninguém ia pregar ele na cruz! A não ser que ele
resolvesse passar um tempo na cidade. A cidade é o contrário do sítio, tem
tanta tentação na cidade que é quase impossível não pecar. Mas as tentações são
tão atraentes! Só que custam dinheiro. “Eu queria ser muito rica”. A igreja da
frente da praça estava aberta e tinha um presépio grande, Jesus parecia um bebê
de verdade! Tinha as vacas no curral onde Jesus nasceu, tinha também umas
ovelhas. No sítio também tinha duas ovelhas que Seu Amantino comprara do
Juvenal, que mora no sítio Alto Alegre. Dona Esmeraldina ficou um tempo olhando
aquele presépio. Tão pobre o menino Jesus! Dona Esmeraldina agora se sentia até
orgulhosa de ser pobre, se parecia com o Salvador!
O Padre, que acabara de ouvir e
perdoar todos os pecados de uma prostituta, ao ver a mulher comovida diante do
menino Jesus, aproximou-se e perguntou se queria confessar os pecados, ela
disse que não, daí o Padre perguntou se estava só, se não tinha marido, filhos...
“Marido?” então lembrou-se do marido no consultório do oculista, “Jesus Amado”
falou para o menino na manjedoura, e saiu às pressas. Parou no meio da igreja e
perguntou ao Padre que horas eram, “Virgem Maria!” exclamou aos bancos onde
alguns fieis oravam ajoelhados, quando o Padre lhe informou serem quase onze da
manhã.
Seu Amantino fora atendido às nove
horas mais quinze minutos, a consulta demorou exatos vinte e oito minutos, às
nove horas e quarenta e três minutos sentou-se novamente numa cadeira da sala
de espera, desta vez não mais aguardando o médico, mas a esposa que prometera
estar de volta antes das dez. Quando dona Ermeraldina chegou ele já a esperava
do lado de fora do consultório, mas não a reconheceu até que se aproximasse,
seus olhos estavam mesmo ruins. O médico receitou óculos, era miopia, as lentes
seriam de dois graus para o olho esquerdo e um e meio para o direito. Era
preciso ir na loja dos óculos para mandar fazer as lentes e comprar os óculos.
Dona Esmeraldina chegou esbaforida, carregando
sacolas de compras, pedindo perdão pelo atraso, mas era que tinha encontrado o
menino Jesus no curral da igreja e as compras que fizera também demoraram mais
do que pensava. Seu Amantino não queria saber das compras e nem do menino
Jesus, a menos que ele fizesse o milagre de fazer a esposa não ter gasto todo o
dinheiro porque agora tinha que mandar fazer os óculos e o médico lhe disse que
não ia ser muito em conta. Dona Esmeraldina abriu uma sacola e tirou umas
roupas novas que comprou para o Natal, queria que o marido aprovasse a compra,
elas eram bem bonitas! Seu Amantino tirou do bolso a receita dos óculos e
mostrou para a mulher. “É miopia, tem que fazer óculos”.
Quando o ano de 2022 terminou os
bolsos de Seu Amantino estavam vazios e os trocados que tinham sobrado das
compras de fim de ano ainda garantiam que dona Esmeraldina jamais teria ficado
sem dinheiro em toda sua vida de casada. Os óculos foram comprados em dez
prestações de cem reais cada uma e Seu Amantido estava feliz com seus olhos,
agora já podia ver tudo conforme era o certo de se ver, inclusive tudo que a
mulher comprou na cidade. “Onde arrumou tanto dinheiro?”
CAPÍTULO DOIS
Às cinco horas da manhã o despertador
chamou do criado mudo e Seu Amantino foi atender. Desligou a campainha para não
atrapalhar o sono de Esmeraldina e foi ao banheiro, lavou o rosto e fez as
necessidades que o corpo pedia, daí vestiu as roupas de trabalho e foi para a
cozinha preparar o café da manhã, os óculos não foram junto, então voltou ao
quarto, abriu a porta bem devagar para não acordar a esposa e foi entrando como
se fosse ladrão, pôs os óculos em cima do nariz e viu uma claridadezinha que
vinha da cama. “Ué, nunca vi vagalume brilhar tanto assim!” Foi ver mais de
perto, a claridade estava bem próxima do rosto da Esmeraldina, chegou ainda
mais perto, nem respirava para não acordar a esposa, de repente Esmeraldina deu
um pulo e ficou de pé ao lado da cama com o celular na mão. “Que tu tá fazendo
aqui homem, tu já não tava lá na cozinha?” Seu Amantino não sabia o que dizer,
nem sabia dizer quem agora estava mais assustado. “Eu não queria... queria...,
mas não queria... vou tirar o leite da jasmira...” Na cozinha, a água do café
fervia, Seu Amantino tomou uma xícara com leite, comeu pão e foi pro curral onde
jasmira mugia.
Os pensamentos não saíam da cabeça,
até atrapalhavam no serviço, “Que que Esmeraldina tava no celular às cinco da
manhã? E pra que aquele susto? Até parece que eu era um estranho ameaçando
ela”. Enquanto jasmira comia a ração do coxo, Seu Amantino pôs o balde no chão
embaixo dela e começou a tirar o leite, jasmira era boa de leite, dava 12
litros. Já tinha tirado uns cinco quando jasmira resolveu aprontar, encolheu o
corpo fazendo uma curva na coluna, ergueu o rabo e soltou uma mijada daquela
bem forte. A urina bateu no piso e respingou para todo lado levando sujeira de
bosta que tava no chão, junto com a urina, para dentro do balde de leite, mas
isso não era problema porque Seu Amantino sempre coa o leite depois que tira e
ele fica limpinho, o problema foi que a merda espirrou nos óculos. Seu Amantino
resolveu isso limpando com a barra da camisa, não ficou bem limpinho, mas dava
pra enxergar, e assim continuou o trabalho. O balde encheu, doze litros, e os
óculos estavam em condições de ver. “Que será que Esmeraldina tava vendo no
celular às cinco horas?”
O dia foi trabalhoso, de tardezinha
Josimar passou para pegar os produtos da feira, Seu Amantino trabalhou muito
para deixar tudo preparado, o dia foi de calor, desses que dá em fim de maio
quando tem isso que se chama de veranico. Logo vem o inverno e agora só tem
mais duas linhas de milho verde, a que colheu hoje, Seu Amantino plantou em 25
de fevereiro, as que ainda falta colher são as plantadas em 04 de março e a
última em 11 de março, tem milho para mais duas semanas de feira, daí leva o
mel que vai ser colhido no início junho. O tempo foi bom e as espigas estão
bonitas. O calor do dia fez o suor escorrer pelo rosto e sempre pingava nos
óculos que eram limpos na barra da camisa meio empoeirada. Não ficava bom, mas
dava para ver. Umas seis horas da tarde Seu Amantino voltou da roça com os
milhos na carroceria do Tobata, vinha devagarinho que é a velocidade do trator,
de longe viu a mulher que conversava na frente da casa com alguém, devia ser o
Josimar. Andou mais um pouco e viu a mulher abraçada com o homem, parecia que
beijava ele. “Não pode ser, eu é que sou o marido dela, se quiser beijar, beija
eu!” Limpou os óculos na barra da camisa suada e olhou de novo, agora não estava
beijando, só conversando, riam.
De noite, falou pra mulher que tinha
visto ela beijando o Josimar, ela ficou vermelha, virou as costas, falou umas
coisas que ele não entendeu, ele disse que os óculos estavam sujos e depois que
limpou olhou de novo e ela estava só conversando, mas que parecia que tinha
visto eles se beijando, ah, sim, parecia. Esmeraldina aproveitou a deixa e
pegou os óculos, “homem, tu fez esses óculos têm seis meses, não deve ser os
óculos, tu deve estar é com catarata”. “Catarata, é só pode ser!”
CAPÍTULO TRÊS
Seu Amantino ainda era novo para ter
catarata, fez aniversário de 57 anos em abril, mas como o sol anda ficando cada
vez mais forte e ele não tem costume de usas óculos escuros, pode ser que seja
catarata mesmo! Pelo sim, pelo não, decidiu esperar mais um tempo antes de
consultar o oculista outra vez, “quem sabe a vista melhora sozinha”. O inverno
passou, a primavera também, Seu Amantino sempre limpando os óculos na barra da
camisa, mas parece que tinha uma nuvem esbranquiçada nos olhos que atrapalhavam
a vista. “É o sol muito forte!” Escorou o sovaco no cabo da enxada e olhou a
fazenda do Seu Antônio Scorched Earth, um americano que comprou terras na
região para produzir soja para exportação e milho para uma usina de álcool em Maracaju.
O americano derrubou todas as árvores que tinha na fazenda que antes era de
gado, deixando só um capãozinho perto das nascentes porque foi obrigado por lei
e fiscalização. Scorched é vizinho e lindeiro. A soja estava bem desenvolvida
graças às boas chuvas que vieram este ano e ao veneno que Seu Scorched manda
passar.
“Desgraçado!”, o grito
ecoou pelos campos afora, um sinal de protesto e revolta de quem estava
sofrendo por culpa de uma situação causada pelo outro, no caso, o Seu Scorched.
Na lavoura de soja ainda se via claramente a marca dos pneus do pulverizador,
mas não era isso que aumentava a temperatura e a incidência do sol nos olhos do
Seu Amantino, era o desmatamento, até onde seus olhos alcançavam não se via pé
de árvore. Verdade que já não enxergava longe por causa da catarata, ou dos
óculos que estavam sujos. Limpou os óculos na barra da camisa e olhou: bem
longe, mas bem longe mesmo, viu um capãozinho de mato, de onde antigamente saía
um riozinho que afluía para o Rio Dourados. A nascente secou de tão ralo que
ficou o mato. Antes, quando ali era fazenda de gado, ninguém falava em
catarata. “Desgraçado!” gritou outra
vez e bateu com a enxada tão forte no chão que o cabo se quebrou.
Na reserva de mata colheu um galho de
guatambu de uns quatro centímetros de diâmetro e dois metros de comprimento,
levou para casa e queimou palha de milho e pedaços de galhos e sobre eles pôs o
galho de guatambu para secar a seiva. Descascou o galho, verificou se estava
reto e levou para o galpão onde trocou por outro que tinha preparado no ano
anterior. Encabou a enxada e ia voltar para a roça, mas já era tarde demais
para ir e muito cedo para voltar para casa. Ficou pensando no que fazer e
decidiu que para tomar água ainda era tempo.
A casa estava vazia, silenciosa, mas
da varanda onde Seu Amantino tomava água dava para ouvir uma conversa que não
se entendia bem o que era. Vinha do outro lado da casa, lá da sombra do bambu
perto da estrada, conversavam e riam. Seu Amantino aguçou o ouvido, parecia que
era Esmeraldina, foi ver do canto da casa, mas a vista não era boa, deve ser a
catarata! Andou mais um pouco e viu a mulher dando pro Josimar. “Mas, justo o
Josimar? Não podia ser outro? O Josimar, se quiser tem que pagar, ele é
feirante”. Andou devagarinho para não ser notado. Agora dava para ouvir
claramente Esmeraldina dizer: “Eu dou para você com gosto!” Josimar ria, assim
meio sem graça, e passava a mão, Esmeraldina também passava a mão. Eles estavam
ali, quase na beira da estrada, meio escondidos pelo bambuzal, Seu Amantino
estava zangado, mas não queria fazer caso com Josimar, era ele que vendia os
produtos da roça na feira e garantia a renda do sítio.
De noite quando Esmeraldina pôs a
janta na mesa, Seu Amantino disse que não estava com apetite, ia comer alguma
coisa depois, ela que jantasse sozinha. “Que foi homem. Aconteceu alguma
coisa?” “Aconteceu”. O assunto não era para ser agora, era para depois da
janta, mas a pergunta veio tão de repente que a resposta andou junto, no mesmo
repente. “Então diga” disse Esmeraldina, “que eu não quero jantar sozinha,
não”. “É o Josimar, você está dando para ele”. Esmeraldina percebeu o flagrante
e virou de costas como sempre fazia nessas situações, ficou totalmente corada,
ajeitou a saia como que para encomprida-la, puxou a blusa para cima para
garantir que cobria bem os seios, gesticulou no ar, virou-se e disse resoluta,
como a defender sua causa: “Dei sim, ele tava necessitado, pediu com jeitinho,
tu não tava em casa, daí eu dei”. “Mas tu deu de graça? Assim, sem cobrar
nada?” “Dei, ele disse que tava com vontade, que queria, eu não resisti, ia
perguntar se você concordava, mas tu tava muito longe na roça”. “Mas, pro
Josimar!, ele é feirante, tem dinheiro, fosse para outro até que eu não ligava,
peixes tem bastante e eu não deixo faltar, só não concordo que tu dês de graça
para quem tem dinheiro”.
CAPÍTULO QUATRO
“Já é dezembro” disse Seu Amantino,
querendo dizer, sem dizer, que estava no tempo de colocar os enfeites de Natal.
As rezas já iam começar pelas vizinhanças e, quem sabe, a novena não ia passar
pelo Sítio Alvorada! “Este ano vou fazer presépio” retrucou Dona Esmeraldina,
lembrando do ano passado quando foi na Igreja de Dourados e viu Jesus tão
bonitinho no curral da igreja na frente do altar. Lembrou do padre, tão bondoso,
que confessou a prostituta, perguntando se ela também queria confessar os
pecados. Lembrou também do Josimar e dos pecados que tinha que confessar se
tivesse um padre nas novenas. “Sexta-feira vamos pra Dourados, quero ir na
igreja ver Jesus e confessar pro padre”, “Confessar o quê?” Quis saber o
marido. “Pecados, ora, tu não tem pecados? Todo mundo tem. E tu bem que podia
aproveitar e consultar o oculista”.
A consulta outra vez não estava
agendada e Seu Amantino teve que esperar pelo encaixe, enquanto isso Dona
Esmeraldina aproveitou para ir às lojas fazer as compras de Natal e, claro
passar pela igreja da praça para ver Jesus e confessar os pecados. “O padre
perdoou os pecados da prostituta, vai perdoar os meus também, são quase
iguais”. Na loja da Big encontrou com o Juvenal do Sito Alto Alegre, ele
perguntou se ainda tinha peixe, queria comprar para o Natal, ela disse que sim,
tinha limpo no congelador, podia ir amanhã. “O Josimar falou que vocês tinham
para vender”. Esmeraldina lembrou do pecado, comprou os enfeites de Natal e foi
para a igreja, queria confessar. Jesus estava no mesmo lugar do ano passado, as
mesmas ovelhas, o pinheirinho, José e a Virgem Maria e até os Reis Magos que
Esmeraldina não tinha reparado quando veio da outra vez. Ela só interessava por
Jesus, tão bonito e tão pobre naquela estrebaria! Quando ela vai na estrebaria,
lá no sítio, e vê o marido tirando leite, sempre olha em redor para ver se
Jesus não está por ali. Como que Maria era virgem, se estava casada com José e
Jesus era filho dela? Algumas coisas eram bem difíceis de entender!
O padre escutou a confissão, falou
umas coisas para ela sobre fidelidade no casamento, daí perdoou os pecados e
fez o sinal da cruz com a mão no ar em frente da cabeça dela enquanto determinava
a pena que ela devia cumprir: rezar três pai-nosso, e três ave-marias.
Esmeraldina saiu aliviada do confessionário, nunca tinha se confessado, não
sabia que era tão fácil ser perdoada, “três pai-nosso, e três ave-marias”,
Jesus deve ter escutado porque ela falou isso bem perto do presépio, querendo
pegar o menino Jesus no colo. Esmeraldina sempre quis ter um filho, mas Deus
não quis, os médicos falaram que era o marido que não podia ter. “Quem sabe o
Josimar”. Teve um ímpeto de voltar para o confessionário. “Será que pensar já é
pecado?”
Saiu da igreja e foi andando
lentamente para o consultório do oculista, os enfeites de Natal e as roupas
novas dentro da sacola maior, os sapatos novos em outra sacola. Só faltava ir
pro mercado fazer as compras de comida e cerveja, tava com vontade de beber.
Mal se importava se o marido já fora atendido, os pensamentos estavam longe
dele, “quero aprender a dirigir o Fiat Uno, andar por aí”.
O oftalmologista, ou oculista como
quer Seu Amantino, disse que ele não tinha catarata, ao que Seu Amantino se
opôs com firmeza. “Eu sei que é catarata, é o sol forte que está causando isso.
Depois que o Scorched derrubou todas as árvores da fazenda, o sol ficou mais
forte, até o córrego secou, é isso que trouxe a catarata!” Esmeraldina poderia
confirmar se ela estivesse ali, mas ultimamente ela andava tão estranha que
parecia nem se importar mais com a catarata do marido. O médico insistiu, disse
que olhando nos aparelhos só aparecia a miopia, e também um pouco de astigmatismo.
A miopia aumentara, ia receitar novos óculos.
Na volta para casa Dona Esmeraldina
não tirava os olhos dos pés do marido enquanto dirigia e também prestava muita
atenção nas trocas de marcha. “Que que você olha tanto pros meus pés?” “Quero
aprender guiar o Fiat Uno!”. “Semana que vem os óculos ficam prontos, não era
catarata, era só a miopia que aumentou e os óculos que estavam sujos!”
CAPÍTULO CINCO
Depois que confessou os pecados pro
padre, Esmeraldina prometeu que se o marido a ensinasse a dirigir o Fiat Uno
ela não ia pecar de novo, não esse mesmo pecado. O marido prometeu, e até explicou
umas coisas enquanto voltavam para casa e depois, no sítio, ensinou ela a ligar
o Fiat com a marcha no ponto morto. Depois do ano novo ia ensinar mais, até que
ela dirigisse sozinha. Esmeraldina ficou excitadíssima! De noite presenteou o
marido com dose dupla de carinho, igual nem nunca tinha acontecido. De manhã,
Seu Amantino levantou cantando, estava feliz. Voltou mais cedo da roça, “vim
mais cedo para você treinar dirigir o Fiat Uno”. Três dias depois já era Natal
e Dona Esmeraldina já sabia até trocar marcha do Fiat Uno, só não sabia, ainda,
dar marcha ré. As noites eram boas e Esmeraldina vivia em santidade com o
marido, até que o pecado veio desejar feliz Natal.
O médico ensinou Seu Amantino a
limpar os óculos com um spray limpa
lentes da visiolux e usar paninho próprio para secar, e proibiu que
limpasse os óculos na barra da camisa. “Se o senhor continuar limpando os
óculos na camisa vai ter mesmo catarata”, e deu dois frascos do spray e dois
paninhos de microfibras de presente. Seu Amantino prometeu que ia ensinar a
mulher a dirigir o Fiat Uno e o Natal foi comemorado com cerveja, luzes
piscando, champanhe e muita alegria. Seu Juvenal, do sítio Alto Alegre veio
jantar com a família e trouxe um frango assado e pudim de sobremesa, também
veio o Anísio, vizinho de sítio do Juvenal, com a esposa e os dois filhos e
trouxe um lombo de porco e um bolo que a esposa fez. Trouxe também uma caixa de
cerveja da Brahma. Era quase meia-noite quando Josimar chegou, só gaguejou um
Feliz Natal e foi embora, não quis se demorar porque tinha compromisso cedo no
dia seguinte, Seu Amantino ficou sem saber se insistia para que ficasse,
enquanto Esmeraldina tomava, de um gole só, mais um copo de cerveja Brahma que
o Anísio trouxe.
Quando acabaram as latas de Brahma,
começaram a abrir as garrafas de Antarctica que Seu Amantino comprara no
mercado em Dourados no dia que mandara fazer os óculos novos. À meia-noite
comemoraram oficialmente o Natal abrindo champanhe e logo as visitas foram
embora que sitiante acorda cedo. Ninguém se lembrou de Jesus, também ele não estava
ali, não tinha presépio nem curralzinho com vacas e ovelhas de enfeite. Tinha o
curral de verdade, mas Jesus não estava lá, devia estar na igreja onde o padre
escuta e perdoa os pecados das prostitutas. Esmeraldina ainda quis tomar mais uma cerveja,
o marido achou que tinha tomado que chega, mas atendeu o pedido da esposa,
queria agrada-la, daqui a pouco iriam para a cama.
Na véspera de ano novo, dia 31 de
dezembro de 2023, é bom que se registre esse dia, foi quando, pela primeira vez,
Esmeraldina viajou sozinha no Fiat Uno, saiu do sítio às duas da tarde e foi
até a vila de Itahum, vinte e qutro quilômetros de distância. “Que aventura
maravilhosa! Agora sou dona de mim!” Andou devagar, máximo de 40 quilômetros
por hora, chegou na vila e foi direto pro mercado comprar as cervejas para o
ano novo, que era só o que ia comprar, mas lembrou que a erva de chimarrão estava
acabando então comprou um quilo, viu um pano de prato bonito com FELIZ 2024
escrito, não resistiu e levou dois, pegou também umas caixinhas de gelatina
para fazer sobremesa, dois quilos de batatinha, fermento de bolo, farinha de
tapioca, café instantâneo, dois refrigerantes, um par de chinelos havaianas,
quatro cachos de uvas e se dirigiu ao caixa para pagar. “Virgem Maria, a
cerveja!” Decidiu levar duas caixas de latas, mas a não conseguia decidir entre
as da Brahma e as da Amstel. Ainda sem saber qual levar, sentiu uma mão passando
levemente pela cintura e uma voz bem no ouvido: “Amstel é melhor!”
Esmeraldina já sabia bem engatar a
marcha a ré, mas errou três vezes e quando conseguiu engatar saiu tão de pressa
que bateu contra a mureta do estacionamento amassando o para-choque traseiro,
“É o diabo que atenta a gente, só pode ser”. Entrou pela Rua Coronel Tibúrcio e
foi até a rodovia, parou depois da curva para respirar e tentar pensar. Quis
voltar para Itahum e confessar o pecado na Igreja Doutrina dos Apóstolos, mas
já era tarde demais, e uma coisa tão boa nem pode mesmo ser pecado!
CAPÍTULO SEIS
Depois de beber muitas cervejas com o
marido, Esmeraldina lembrou que já sabia dirigir o Fiat Uno e resolveu
agradecer pelas aulas de direção de um jeito muito especial, mais especial que
no dia das primeiras aulas. Estava vestindo uma saia jeans curta de cor verde e
camiseta branca de gola V com bordados na frente. Enquanto seu Amantino pegava
a cerveja na geladeira, Esmeraldina sentou-se no sofá, de repente pensou ter
ouvido Josimar lhe falar e olhou para trás com os olhos arregalados, o marido
sorriu, “que foi mulher? Parece assustada!” Parecia, e estava assustada. Não
respondeu, só pegou o copo de cerveja e ficou um tempo a pensar que podia ser
Josimar, talvez ele dissesse: “É uma amstel, essa é da boa”. O Corpo aqueceu,
Esmeraldina automaticamente passou a mão nos seios, tomou um gole de cerveja e
sorriu. “Você bebeu muito hoje”. A voz do marido parecia com a do Josimar,
Esmeraldina propôs um brinde, e puxou a saia para cima para poder afastar as
pernas uma da outra e sentou-se no colo, de frente para o marido. “Vamos
brindar um ano de felicidade!” Tomou mais um pouco da cerveja e derramou,
maliciosamente, o restante na camiseta, sobre os seios. Amantino não sabia o
que fazer, mas ela pediu que ele a ajudasse a tirar a camiseta que estava
molhada.
A madrugada estava silenciosa no
sítio Alvorada. Se o galo cantou, ninguém saberia dizer. Se estivesse acordado,
Seu Amantino diria que essa foi a noite
mais feliz do seu casamento, Esmeraldina estava muito sexy, depois de tirar a
camiseta, afastou um pouco mais as pernas para a saia subir e deixar a calcinha
bem à vista, Amantino desabotoou calmamente os três botões que prendiam a saia
à cintura e a tirou pela cabeça da esposa, ela estava linda, mais até do que
quando a viu nua pela primeira vez na noite do casamento no apartamento do
Bravo City Hotel que o padrinho Argemiro alugou para passarem a Lua de Mel.
Tinha bebido demais? Seja lá o que for, a felicidade se renovara. Era preciso
procurar uma autoescola para Esmeraldina tirar a carteira de motorista.
Esmeraldina parecida estar acordada
quando ouviu alguém que andava pela casa, foi ver quem era, saiu do quarto sem
abrir e nem fechar a porta, passou pela sala sem perceber os móveis e viu uma
claridade na cozinha para onde foi sem pensar uma única palavra se quer. Uma
caixa de som tocava ‘Meu mundo e nada
mais”, mas não era Guilherme Arantes que cantava, era o Josimar, ele
cantava lindamente, Esmeraldina sentiu o corpo aquecer outra vez, transara com
o marido pensando em Josimar, agora ele cantava para ela. Josimar apareceu ao
seu lado com uma Amstel e dois copos. Antes de servir a cerveja abraçou-a
carinhosamente e beijou seus lábios, Esmeraldina perdeu o chão, flutuava nos
braços do amado que também estava a meio metro acima do piso, começaram a
dançar no ar e Josimar cantava em seu ouvido: “Eu queria tanto estar no escuro do teu quarto, à meia-noite à
meia-luz, sonhando...” Josimar propôs: “Brindemos um ano de felicidades!”
Beberam e Esmeraldina derramou um pouco de cerveja na blusa, sobre os seios,
Josimar a ajudou a tirar a blusa e fizeram amor sobre a mesa da cozinha.
Esmeraldina gemia de prazer, gemeu tão alto que acordou Amantino. “Que foi
mulher, tá passando mal?” Esmeraldina levou um susto que sacudiu todo seu corpo,
acordou, parecia atônita.
Amantino dormiu outra vez, foi só um
pesadelo, ao seu lado Esmeraldina espantava o sono com seus pensamentos
acelerados. Olhou o relógio do criado mudo: três horas! Olhou o marido que
roncava e tentou dormir. Josimar estava mesmo na cozinha? Olhou o marido outra
vez e se convenceu que fora só um sonho, sonho não, um pesadelo. Um lindo
pesadelo! Virou para o outro lado, agora pensava que Josimar talvez estivesse
mesmo na cozinha, ficou com vontade de ir até lá. Puxou o trino da porta, a
dobradiça rangeu, Amantino respirou fundo e resmungou qualquer coisa
ininteligível, Esmeraldina saiu para a sala, foi até a cozinha e viu a chave do
Fiat Uno sobre a mesa, pegou para guardar na estante, ficou com a chave na mão
um longo tempo se imaginando na direção do Fiat Uno, viajando sem destino pelo
mundo afora. Colocou as chaves na estante, outra vez se imaginou viajando, mas
desta vez não era sem destino, ao contrário, viajava feliz pois sabia que no
final da viagem iria encontrar o destino, o lugar onde seria feliz para sempre,
e Josima a esperava de braços abertos.
O dia amanheceu e Amantino continuava
dormindo, sonhava com Esmeraldina, no sonho ele a via sendo coroada rainha da
beleza de Dourados! Recebia a coroa e o cetro das mãos do prefeito, daí
desfilava usando um maiô verde-claro, tinha uma capa sobre o corpo, aberta na
frente, dava para ver as curvas da cintura, ela sorria e mandava beijos para
ele. O vento fez a janela do quarto ranger e uma trovoada indicando chuva fez
Seu Amantino acordar, jasmira mugia no curral. Amantino sabia das obrigações de
sitiante, mas queria dormir e continuar sonhando, voltar pra casa com a rainha
da beleza, tirar a coroa lentamente, passar o cetro pelo corpo todo, tiraria o
maiô beijando o corpo inteiro da rainha, então ela se deitaria na cama usando
os sapatos de salto alto, estes ela continuaria usando enquanto fizessem amor.
Não conseguiu dormir, procurou Esmeraldina na cama, mas ela não estava.
CAPÍTULO SETE
Jasmira estava inquieta, também
pudera, com duas horas de atraso seu Amantino abriu a porteira para a vaca
entrar na estrebaria. O dia estava chuvoso, antes de sentar embaixo da jasmira,
seu Amantino passou a mão pelas costas dela para escorrer a água acumulada, daí
tirou o leite enquanto a vaca comia a ração no coxo. Chamou a boneca e depois a
estrela, total trinta litros. Tampou os tarros, bateu o coador para limpar a
espuma, pôs tudo no carrinho de transporte e rumou para casa, “Esmeraldina já
deve estar esperando para fazer os queijos”.
Seu Amantino largou o leite no lugar
de sempre no puxado da casa e saiu para cuidar dos serviços, levou as vacas
para o pasto, fez limpeza da estrebaria, tratou as galinhas, recolheu os ovos,
cuidou dos porcos e foi dar ração para os peixes. Já era pouco mais que dez
horas quando voltou para o galpão e descansou sentado num saco de farelo de
arroz que misturava na ração dos animais para suplementar proteínas e fibras.
“A essas horas o queijo já deve estar no coalho”, pensou enquanto acendia um
cigarro. A fumaça subia formando uma nuvem em sua frente, trazendo a lembrança
da catarata, “ainda bem que não era”, e riu. Ficou com vontade de ver
Esmeraldina, a chuva ainda caia no quintal. Entre as vigas do telhado viu o
cabo de enxada que fizera ano passado quando xingara o Seu Antônio Scorched,
culpando-o pela catarata que, afinal, não existia. Olhou no relógio: dez e
meia! “Ainda dá tempo de consertar a cerca”, levantou e foi buscar o esticador
de arame que guardara na garagem do Fiat Uno.
Com o alicate e um pedaço de arame
para fazer a emenda da cerca na mão, seu Amantino permanecia parado em frente
da garagem sem entender o que estava acontecendo. O Fiat Uno, que estivera ali
desde ontem quando Esmeraldina chegou de Itahum trazendo as cervejas para
comemorar o Ano Novo e estava com o para-choque traseiro amassado, agora já não
estava na garagem. “Será que Esmeraldina foi comprar mais cerveja? Nesse tempo
de chuva? Decerto volta logo”.
O conserto da cerca foi mais
trabalhoso que seu Amantino imaginara, quando voltou para casa era mais de
meio-dia. Tirou a capa de chuva e as botas e entrou chamando por Esmeraldina,
que não respondia, os tarros de leite ainda estavam no mesmo lugar e a garagem
vazia. Na cozinha, nem sinal de almoço, andou pela casa chamando pela mulher e
só recebia silêncio por resposta. Esmeraldina não estava em casa. Foi ver o
celular e não tinha mensagem da mulher. Ligou, mas o celular dela estava
desligado, de certo estava sem bateria! Seu Amantino ficou preocupado, com esse
tempo de chuva era perigoso ela ter se acidentado, “Porque foi sair de carro se
mal sabe dirigir?”
Sem notícias da esposa, o jeito foi
fazer o almoço e esperar, com esse tempo chuvoso não dava para sair por aí de
bicicleta e além do mais, se algo de grave tivesse acontecido alguém já teria
vindo avisar. Com o chimarrão pronto, jogou o toco do cigarro no fogo e tirou
da geladeira as sobras do dia anterior, “dá que chega para mim”. O rádio ligado
na 94 FM dava as notícias policiais informando os piores acontecimentos das
últimas 24 horas, noticiou três acidentes automobilísticos, mas nenhum era Fiat
Uno.
Duas da tarde seu Amantino decidiu
buscar ajuda no vizinho, seu Juvenal tem uma Pampa, “de certo que vai me levar
para Itahum”. Quando embarcou na bicicleta chegou o Josimar para dizer que essa
semana não ia pegar os produtos para a feira, ia viajar para Campo Grande
visitar os parentes e só voltaria dia 13. Depois de saber da notícia, seu
Amantino falou que Esmeraldina tinha sumido e o Fiat Uno não estava na garagem.
“Só pode ser que ela saiu de Fiat e aconteceu alguma coisa”. Josimar ficou
apavorado, quis saber mais notícias, pegou o celular para ligar, tentou
disfarçar que não sabia o número, mas seu Amantino disse que não adiantava
ligar que o celular dela estava desligado. Josimar se ofereceu para ir atrás e
ver se tinha acontecido alguma coisa na estrada. “Não se preocupa que eu vou
ver se aconteceu alguma coisa”, e foi sem dizer mais palavras.
Anoiteceu e não chegou notícias, nem
de Esmeraldina, nem de Josimar. O rádio ficou ligado direto na 94 FM, “notícia
ruim é ali que sai”. Dez da noite o telefone tocou: “Seu Amantino, estou em
Dourados, até agora ainda não tenho notícia da sua esposa. Amanhã vou para
Campo Grande, então não vou poder mais procurar”.
Sem conseguir dormir, seu Amantino só
tinha uma pergunta que girava sua cabeça: “Cadê a Esmeraldina?”
CAPÍTULO OITO
No terceiro dia sem notícias de
Esmeraldina, seu Amantino começou a ficar desesperado. Depois de procurar por
toda a vizinhança e ligar para cada hospital de Dourados, foi aconselhado a
procurar a polícia. O delegado do Primeiro Distrito disse que ele deveria
registrar um boletim de ocorrência do desaparecimento, mas isso não parecia
bom, iam mandar a notícia para as rádios e as fofocas iam ser piores que o
sumiço da mulher. Esmeraldina sumiu dia primeiro, cinco dias depois o pão
acabou e seu Amantino não sabia fazer outro, a comida do almoço saia e voltava
para a geladeira quase sem diminuir, as louças deixaram seu lugar no armário e
estão se acumulando na pia sem serem lavadas, as cervejas que sobraram do ano
novo já terminaram, ainda tem uma garrafa de vinho e duas de pinga, “tem que
dar para o fim de semana”. Josimar disse que não ia levar os produtos para a
feira porque ia para Campo Grande. Esmeraldina sumiu na segunda-feira, um dia
depois o Josimar foi para Campo Grande. “Não, se quisesse fugir com o Josimar,
não ia sair de Fiat Uno”.
Nos primeiros dias seu Amantino tirou
o leite das vacas e fez todas as tarefas do sítio, só não limpou a casa e mal
fez comida para as refeições. Aos poucos foi relaxando, deixou de fazer os
queijos e de se alimentar, sempre bebia no fim de tarde e à noite, “a companhia
da bebida é melhor que a companhia da solidão”. Já não tomava mais banho e nem
jantava, bebia até espantar o desespero e caía na cama com a roupa do serviço.
Cada dia ao acordar olhava o calendário, já fazia dez dias que ela se fora,
“Esmeraldina é muito corajosa e forte para ficar desse tanto de tempo sem
voltar para casa. Donde será que se meteu?” Seu Amantino lavou o rosto e viu no
espelho o tanto que a solidão lhe fizera mal. A barba crescida, os cabelos em
desalinho e a cara emagrecida carregando um olhar desesperado fizeram seu
Amantino arrancar o espelho da parede e joga-lo com violência para fora da
janela. Nesse dia não fez nada no sítio e quando anoiteceu e a cachaça
finalmente trouxe algum consolo, seu Amantino refletiu que o quarto era o pior
lugar da casa, decidiu nunca mais entrar lá e passou a dormir no chão da sala.
No dia seguinte acordou com alguém
chamando da porta, era Juvenal, queria saber se tinha notícias da esposa e
também queria comprar uns peixes. Quando seu Amantino apareceu no vão da porta
Juvenal quase saiu correndo, não imaginava o vizinho tão mal assim. Que Esmeraldina
não voltara isso era óbvio pelas condições em que se encontrava a casa e o seu
morador, perguntou pelos peixes, seu Amantino pediu que pegasse quantos
quisesse no freezer, Juvenal pegou três e pesou, separou o dinheiro e pôs sobre
a mesa onde restos de comida apodreciam. Amantino estava visivelmente abatido,
magro, sujo, cabelos desalinhados, barba crescida e olhos afundados na cara.
Mal conseguia articular as palavras e o corpo enfraquecido mal se movia.
Juvenal decidiu leva-lo para sua casa e cuidar dele, mas Amantino recusou, não
sairia dali até que Esmeraldina voltasse. “Se Esmeraldina voltar e eu não
estiver aqui, vai dizer que eu a abandonei”.
Juvenal pegou os peixes e foi embora,
voltou uma hora depois acompanhado da esposa e fizeram uma faxina na casa,
mesmo sob os protestos de Amantino, trouxeram também um prato de comida e
asseguraram que dali em diante trariam pelo menos uma refeição diária, Amantino
disse que não queria, era desperdício, mas com a presença dos vizinhos deu até
fome. Depois que comeu, sentiu voltarem as energias e decidiu que iria cuidar
das tarefas do sítio, mas desistiu depois de sentir tonturas. Desse dia em
diante Juvenal vinha todos os dias à hora do almoço com uma marmita de comida
que seu Amantino dividia entre as refeições do almoço e da janta, ainda bebia sempre
depois de jantar. Às vezes passava mal e vomitava, mas não conseguia evitar a
bebida. Um dia pediu que Juvenal lhe trouxesse um pão, queria voltar a tomar
café com pão de manhã. Vinte dias sem Esmeraldina!
CAPÍTULO NOVE
O dia 25 de janeiro amanheceu
abafado, com sol forte pela manhã, mas previsão de tempestade para o final do
dia. A grama ao redor da casa estava coberta pelas folhas das árvores
frutíferas do pomar entre a casa e a lavoura de milho e mandioca que Seu
Amantino deveria ter colhido para que Josimar vendesse na feira livre de
Itahum. Há duas semanas que o comerciante vem e não encontra nada pronto para
levar. “Semana que vem, pode vir que vou deixar tudo pronto”. O mato crescendo
no quintal não era nenhuma garantia de que o sitiante teria ânimo para
trabalhar na roça.
O sol quente de janeiro e o tempo
firme o dia todo não foram suficientes para tirar Amantino de dentro da casa.
Juvenal apareceu por volta do meio-dia, deixou o almoço na mesa e tentou animar
o vizinho. Amantino permanecia imóvel na cadeira à um canto da cozinha onde
pitava um cigarro de palha sem demonstrar nenhuma importância ao que o vizinho
falava. “Come um pouco, vizinho” foi o apelo final do Juvenal antes de ir embora.
No meio da tarde Amantino tentava levantar do colchão onde dormia no chão da
sala, mas a dor na cabeça e no corpo era tão forte que desistiu, urinou ali
mesmo, quis defecar, mas o intestino estava tão preso que não conseguiu. Sentia
dores pelo corpo, já nem se reconhecia mais como ser humano. Sentiu fome,
engatinhou até a cozinha, ergueu-se até a mesa e puxou a marmita para o chão,
comeu com as mãos algumas gramas do alimento e não quis mais. Afastou a marmita
e se arrastou de volta ao colchão na sala onde ficou olhando para o nada da sua
vida sem Esmeraldina.
Às sete horas da noite viu uma
claridade invadindo a casa seguida de um barulho ensurdecedor. Pensou estar
nalguma guerra, mais clarões e mais bombas, depois ouviu um forte assobio,
pensou ser uma sirene, a casa parecia se mexer, o assobio aumentava e diminuía,
Amantino pensou estar girando no ar, sendo levado para um lugar muito estranho,
para o céu, para o inferno, era difícil definir. O assobio aumentava e Amantino
se viu outra vez no meio de uma guerra, as bombas continuavam a explodir e ele
combatia o bom combate dos guerreiros de Deus. Uma legião de diabos tentava
mata-lo e tomar o reino dos céus, mas ele não se intimidava, avançava
corajosamente contra o poder do inimigo e ia matando os anjos do mal, até que
ouviu outra vez um assobio muito forte, mais forte que os anteriores e em
seguida outra explosão seguida de uma rajada de balas, daí viu uma Santa que
lhe estendia a mão e dizia: “Não tenha medo, Amantino, eu cuido de você”,
depois disso não ouviu mais nada.
No outro dia, bem cedo, Juvenal veio
ao Sítio Alvorada acompanhado de Anísio para ver como Amantino tinha passado a
noite após o temporal, talvez precisasse de ajuda. O vento foi muito forte,
destelhou grande parte da casa e da garagem que eram cobertas com telha de
barro. No curral não sobrou nenhuma das telhas de Eternit e o galinheiro ficou
destruído. “Aqui foi pior”, disse Anísio
que mal acreditava no que estava vendo, “parece cenário de guerra”, respondeu
Juvenal temendo pela vida do dono do sítio.
A varanda tinha pedaços de telha
esparramados por toda extensão, galhos de árvores, folhas e muita sujeira
também se acumulavam por ali. Juvenal empurrou a porta da cozinha e viu a
marmita no chão, a casa estava em silêncio. “Será que ainda dorme?” Perguntou
Anísio, receoso pela resposta que Juvenal não teve coragem de dar. Lentamente
adentraram à sala onde Amantino parecia desacordado. “Morreu!” Exclamou,
alarmado, Juvenal, mas foi tirar a dúvida tomando o pulso. “Tá vivo! Chama a
ambulância, liga pro SAMU”.
Amantino chegou desacordado no
Hospital da Vida em Dourados, mal respirava e o pulso era fraco. O médico de
plantão atendeu de urgência, aplicou soro e vários remédios na veia. Aos poucos
a vida foi voltando ao corpo do sitiante, o médico achou por bem deixa-lo na
UTI por um dia até que apresentasse melhoras mais significativas. Questionado
sobre algum parente que pudesse ser avisado, Juvenal disse que não tinha, a
mulher sumira há quase um mês e filhos não tinha, outros parentes ninguém
sabia, mas, se precisasse, ele podia ser referência para contato, só não podia
ficar porque tinha que tocar o sítio.
A internação durou cinco dias, dois
na UTI e mais três num quarto coletivo, onde se recuperou bem e teve alta.
Juvenal foi avisado e veio buscar o amigo. O médico recomendou e insistiu que
Amantino não ficasse sozinho em casa, seria bom se pudesse ficar com alguém de
companhia para garantir que se alimentasse e tomasse os remédios nos horários
determinados na receita, mas principalmente porque a solidão poderia ser fatal
dado o estado psicológico do paciente. Juvenal propôs que Amantiono passasse
uns dias com sua família, mas o sitiante protestou que não poderia deixar o
Alvorada porque, se Esmeraldina voltasse, era importante que o encontrasse em
casa, principalmente agora que estava bom outra vez, “Ela vai voltar e eu quero
estar lá”.
CAPÍTULO DEZ
O asfalto da estrada passava por
baixo da pampa do Seu Juvenal , mas a viagem que Amantino fazia era de volta à
casa do pai. Agora tinha dezoito anos e o pai é que dirigia a Pic-up Fiat 147, usada,
adquirida na concessionária da Fiat na Marcelino Pires, vinha orgulhoso do
carro ‘novo’ e disse que ensinaria o filho a dirigir assim que terminassem a
colheita do milho. O pai estava muito animado e cantarolava ao volante, a
estrada que passava por baixo era de terra e alguns solavancos faziam o carro
derrapar aqui e ali causando medo no jovem Amantino. “Pode confiar que eu sei
dirigir!”, “Mas, você bebeu pinga, devia andar mais devagar”, “Um homem precisa
beber de vez em quando, agora que você fez dezoito, vai beber comigo”. Um mês
depois, um acidente fatal ceifou a vida do pai e da mãe, não sobrou nada da
Pic-up, perda total. Amantino fez o velório no sítio e enterrou os pais no
cemitério de Itahum.
Juvenal diminuiu a velocidade e
entrou pela estrada vicinal, “é o mundo que passa por baixo da gente”, Amantino
via a vida de um jeito novo, cada sítio tinha um pedaço de natureza e outro de
lavoura e gado, “Deus e o Diabo”, os pensamentos enchendo a Pampa de um modo
que até Juvenal se sentia oprimido. “Tá tudo bem, Amantino?” “Sim, agora eu
vejo o Céu e o Inferno, antes eu só via eu e Esmeraldina”. Juvenal teve vontade
de levar Amantino de volta ao hospital. “Decerto foi a Santa que me abriu os
meus olhos para ver o que antes era impossível”. Amantino parecia delirar, por
precaução, Juvenal levou o carro direto ao sua casa, Amantino não quis descer
do carro, insistiu que não ficaria ali, mas Juvenal garantiu que seria só para
um café. Desceram, Amantino olhou longamente para o quintal, um gramado bem
cuidado ao redor da casa, horta, árvores frutíferas e o laguinho dos patos,
“esse é o pedaço do Céu”. Mais adiante a lavoura...
Dona Maria Aparecida chamou da porta
da cozinha, “entrem, vou passar o café”. No canto da mesa Juvenal abriu a
receita e verificou quais remédios poderia dar nessa hora. Amantino concordou
em tomar todos que era preciso, mas depois do café, e assim fez, daí pediu para
voltar logo para casa que queria rezar para a Santa e pedir ajuda para estar
bem quando Esmeraldina voltasse, “ela me disse que ia cuidar de mim”. Maria
Aparecida não entendeu nada, Juvenal menos ainda, Seu Amantino nunca fora
religioso, nem sequer uma ave maria ele rezada quando tinha novena e ainda
falava que santo nem existia, agora queria rezar para santa, “que santa?” “Não
sei”, respondeu Juvenal, ele agora anda devoto dessa santa, só ainda não
revelou qual.
Quando ficaram sabendo que Seu
Amantino estava hospitalizado, os vizinhos de sítio resolveram se unir para
ajudar na reforma do telhado da casa, da garagem e do curral, a jasmira, a
boneca e a estrela Juvenal já tinha levado para tirar leite e cuidar com os
bezerros. Levou também os quinze porcos do chiqueiro. As galinhas estavam
soltas pelo quintal. A lavoura ficou abandonada, desde ano novo que o mato
crescia livre e nada se colhia dali. No dia que Amantino foi levado de
ambulância para o Hospital da Vida, Seu Anísio visitou cada um dos vizinhos
para explicar a situação e convidou para uma reunião, queria unir as forças
para ajudar, organizou um mutirão para consertar os telhados e já estavam
finalizando o serviço quando Juvenal encostou a Pampa no pátio.
Amantino caminhou lentamente até o
curral e perguntou por que estavam tirando o telhado, “Não estamos tirando, mas
colocando de volta. A tempestade arrancou tudo, Seu José tinha umas telhas de
sobra e cedeu para repor, a garagem destelhou quase a metade e a casa ficou um
lado quase descoberto.” “Tempestade! Que tempestade?” Aquilo tudo parecia uma
grande novidade, mal se lembrava do curral; da jasmira, da boneca e da estrela
nenhuma lembrança, nem dos porcos, das galinhas ou dos peixes, a lavoura
parecia nunca ter existido. Lembrou-se da casa e foi entrando calmamente, olhou
para o tanque e a máquina de lavar roupas na varanda, os bancos e a mesa de
tábuas onde Esmeraldina fazia os queijos, duas folhagens plantadas nos vasos, a
cozinha estava limpa e arrumada, olhou as paredes e entrou na sala ondo dormira
desde que Esmeraldina foi embora, o colchão não estava mais ali, só o sofá, uma
mesa de centro e a estante com a televisão e uns enfeites de porcelana. Passou
a mão cuidadosamente pela parede ao lado da estante, no canto da sala, “foi
aqui que a Santa apareceu.”
CAPÍTULO ONZE
Desde que Esmeraldina foi embora sem
dar notícias, as famílias da vizinhança especulam sobre os porquês de ela ter
sumido. Primeiro havia uma unanimidade sobre uma fuga com Josimar, ela dava pra
ele mesmo que o marido a repreendesse por ser ele feirante e ter dinheiro, “não
se dá de graça para quem tem dinheiro”. Logo no dia seguinte do sumiço de
Esmeraldina, Josimar viajou para Campo Grande e ficaou ausente por quase duas
semanas. Desde antes do Natal já se falava que Esmeraldina teria demonstrado
interesse por ele, eram flagrantes os olhares de desejo entre ambos, Seu Anísio
estava no mercado em Itahum quando viu Josimar abraçando Esmeraldina e a
aconselhando a comprar Amstel. Não havia dúvida que teriam fugido para ficarem
juntos. Mas, duas semanas depois Josimar voltou para Itahum e dizia não saber
nada do paradeiro dela.
O mistério do desaparecimento de
Esmeraldina intrigava a todos, mas a fé que Amantino passou a depositar na
Santinha do Itahum despertou o interesse da vizinhança porque parecia que a
Santa exercia um controle sobrenatural sobre o sitiante. Cada decisão era
levada ao altar onde a imaginária santinha estaria. Só havia o altar, nenhuma
imagem ou escultura, o altar e a fé, até
o Padre Márcio, da Igreja Doutrina dos Apóstolos de Itahum, ficou a pensar se a
devoção a santos católicos deveria ter mesmo imagens de adoração, Amantino
adorava a Santa que não tinha imagem, apenas um altar, e sua fé parecia maior
que a das beatas do Itahum, que rezavam centenas de ave-marias para, logo em
seguida, saírem da Igreja fofocando abundantemente sobre a vida vulgar dos
habitantes pecadores do povoado.
Foi depois de orar fervorosamente
diante do altar que Seu Amantino decidiu que as vacas jasmira, boneca e estrela
e também os porcos deveriam ficar com o Juvenal, em troca este concordou em
trazer de Itahum, e até de Dourados se fosse o caso, tudo que Amantino
precisasse até o valor combinado pelo arrendamento dos animais, o que sobrasse
seria pago em dinheiro. O Anísio propôs arrendar os tanques de peixe e também a
roça, a Santinha aprovou e o contrato foi feito pelo prazo de três anos com a
inclusão do chiqueiro, tudo gerando renda à base de 15 por cento em favor do
proprietário. Anísio quis incluir o galinheiro e a horta, mas a Santinha tinha
outro propósito, eles seriam deixados aos cuidados da Dona Maria José, uma
viúva de uns cinquenta anos que morava com o filho Marcelo e a nora no sítio
Esperança, lindeiro com o sítio do seu Anísio. Desde que o filho se casara, a
nora tomou conta da casa e Dona Maria José vivia desconfortavelmente dentro da
própria casa. À noite, no mesmo horário em que Amantino orava pra Santinha,
Dona Maria José teve uma visão que fez seus olhos brilharem. “Que foi mãe?
Parece que viu Jesus?” Perguntou o filho quase rindo. “Jesus não, mas eu ouvi
uma voz de mulher, uma voz feminina, tão suave que parecia que flutuava no ar,
ela me dizia que eu deveria ajudar o Amantino, que ele tá precisando de minha
ajuda. E sabe? Acho que lá eu vou ter lugar para fazer o que eu quero, que aqui
já não tem mais lugar para mim, né?” A resposta desconcertou o filho que
imediatamente passou a se sentir culpado por ter casado e permanecido na casa
da mãe. A intenção era ajudar a mãe, fazer-lhe companhia e cuidar dela, mas aos
poucos a nora foi tomando conta da casa e a companhia, que de início era
agradável, passou a ser um incômodo, dona Maria José passou a ser um estorvo
para quem nunca fora importante.
Dona Maria José entrou no Fiat Uno
que herdara do marido decidida a só voltar no final do dia, tinha muito o que
fazer na casa do Seu Amantino. O filho não sabia o que estava acontecendo com a
mãe, mas a nora sabia, sabia que agora seria a verdadeira dona da casa por pelo
menos um dia. Sabia também que, sem a sogra em casa, teria que limpar a casa e
lavar as louças e as roupas.
O Fiat Uno entrou no Sítio Alvorada e
estacionou na garagem onde costumava estar o carro que Esmeraldina levara no fatídico
dia de ano-novo. O barulho do motor esparramou-se pelo quintal e foi levado
pelo ar pela casa a dentro até chegar na sala onde Amantino fazia sua prece
matinal diante do altar. O ronco do motor do Fiat Uno fez o coração pulsar
dentro do peito, quis sair correndo, mas a Santinha o proibiu. O coração
acelerado e o rosto vermelho do sangue que se lhe explodia pelas faces, o pelo
todo arrepiado. Seria Esmeraldina voltando? “Não
Amantino, não é Esmeraldina, é só um presente que mandei para você!”
CAPÍTULO DOZE
Maria José bateu a porta do Fiat Uno
e andou lentamente para fora da garagem, olhou para a casa e calculou a
distância: 10 metros, uns quinze passos, então voltou o olhar para o carro que
silenciosamente ficara estacionado na garagem, pensou em como isso podia ser
tão familiar se era a primeira vez que guardava o carro ali, tão familiar que
nem se quer se dera ao trabalho de
perguntar se poderia mesmo guarda-lo neste lugar privativo. Balançou a cabeça e
até sorriu, além da garagem, mais dez metros estava o galinheiro. Havia algumas
galinhas ciscando pelo quintal, pensou em trazer uma choca com pintinhos de
casa, talvez umas galinhas poedeiras e um galo para reproduzir e encher o
galinheiro, frangos caipiras para comer e até vender os excedentes! “Vou falar
com Seu Amantino, se ele concordar...” Enquanto seu olhar voltava para a casa
onde desejava trabalhar nesse dia, viu a horta completamente abandonada, o mato
crescia sobre os canteiros e já davam semente, nenhuma verdura além de uns
teimosos pés de couve com as folhas completamente destruídas pelas lagartas.
“Se Seu Amantino concordar...”
Entrou pela varanda e parou na área
de serviço, estava suja, mas não era o abandono de que se falava antes que
Amantino fora hospitalizado em Dourados, a máquina de lavar roupas estava
coberta com um pano florido meio encardido, de certo para proteger da poeira, o
tanque tinha um pouco de água dentro e panos de limpeza pendurados na borda, as
folhagens pediam água, sobre a mesa da varanda não havia nada além de uma fina
camada de poeira. Num armário ao lado do tanque Maria José encontrou produtos
de limpeza, tomou um balde e foi enche-lo na torneira do tanque, pôs sabão em
pó na água e, com um pano de limpeza na mão começou o que seria a nova rotina
para sua vida.
No primeiro dia Seu Amantino mal
balbuciou algumas palavras, disse um bom
dia acanhado, considerou a comida do almoço boa e falou tchau acompanhado de um leve aceno de
mão. Três dias depois perguntou se Dona Maria José gostaria de cuidar das
galinhas, desde que não faltasse para a casa, poderia fazer o que quisesse com
o excedente. Ela quis, trouxe uma choca com pintinhos e algumas poedeiras e um galo
da raça Plymouth Rock, ela não sabia
dizer corretamente o nome, então só dizia plimut,
que como se diz mesmo. Trouxe também ração para os pintinhos e quirera e
milho para os adultos, assim iniciou a criação de galinhas caipiras que logo
começaria a dar lucro, além dos pratos deliciosos preparados para as refeições
com Seu Amantino.
Um mês depois a horta já dava as
primeiras verduras para salada do almoço, “almeirão produz rápido”. As alfaces
de verão já estavam no ponto de replantar, cenoura e beterraba crescendo e a
cebolinha e a salsinha que vieram com as mudas desenvolvidas, já temperavam a
comida na mesa do Seu Amantino. As plantas cresciam na horta e a alegria se
renovava a cada dia no espírito de Maria José que agora já não era mais ‘Dona’,
mas apenas Maria José. Seu Amantino também não era mais ‘Seu’, agora ela o
chamava apenas de Amantino, “assim é melhor!”
Dia 10 de março Amantino pôs, pela
primeira vez desde que voltara do hospital, os pés para fora da casa. A
princípio aceitou dormir no quarto, desde que ninguém mais entrasse lá, do
quarto ia ao banheiro, à sala onde fazia as orações, à cozinha para as
refeições e de volta ao altar, seu lugar preferido, diante da Santinha
imaginária, daí voltava ao quarto e assim passava cada dia sem ver sequer a luz
do sol. No dia 10 de março apareceu pálido na varando onde viu surpreso que
Maria José fazia um queijo. Trouxera um tarro com dez litros de leite que agora
já estavam talhados e ela já prensava a coalhada na forma para escorrer o soro,
apertou bem de um lado e virou a forma para apertar do outro, repetiu esse
movimento várias vezes então colocou na prensa onde deixaria até o dia
seguinte. Amantino olhava para ela, ora vendo a nova companheira de cada dia,
ora vendo Esmeraldina, sentiu um mal-estar e procurou uma cadeira, Maria José o
viu pálido, mas que diferença isso fazia? Pálido ele já estava desde que ela
ali chegara há um mês. Amantino titubeou pela varanda, quase caiu, agarrou-se
como pode ao varal que atravessava o ambiente, o arame cedeu, ele deu mais um
passo e agarrou-se ao pilar de madeira, Maria José correu em socorro e levou-o
abraçado para dentro, deu-lhe um copo de água e fez vento no rosto com a aba do
avental. Quando recuperou o ânimo, Amantino quis ver o quintal, admirou-se de
como a horta estava bem cuidada e as verduras crescendo saudáveis. Perguntou
das galinhas e daquele galo de raça, “é plimut”. Amantino voltou os olhos para
ela e, de novo, a confundiu momentaneamente com Esmeraldina, na garagem o Fiat
Uno. “Onde será que ela está?”
CAPÍTULO TREZE